A eutanásia fere o princípio de que enquanto houver vida há esperança de que a pessoa se recupere
Ives Gandra da Silva Martins
Advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie
e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente
da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos
Jurídicos da Federação do Comércio do Estado
de São Paulo.
Em face do avanço da engenharia genética, discute-se nos últimos tempos quais os limites da atuação da ciência na conformação biológica do ser humano e qual o comportamento a ser adotado pelos profissionais da saúde ao enfrentar desafios dessa natureza.
A matéria se torna mais confusa sempre que a questão se situa na zona cinzenta entre o lícito e o ilícito - ou, pelo menos, entre o ético e o aético-, desde a fecundação "in vitro", a clonagem e os transplantes de órgãos até o aborto terapêutico e a eutanásia.
Parece-me que a questão deve ser examinada à luz de princípios de direito natural. Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabeleceu princípios que transcendem a legislação pertinente a cada país, não fez senão impor o respeito à própria dignidade do ser humano.
De rigor, a declaração já fora forjada em 1º de outubro de 1946 -momento em que o tribunal de Nuremberg condenou um grupo de oficiais nazistas por crimes contra a humanidade, apesar de não haver nenhum texto escrito de direito internacional a respaldar tal condenação.
A própria justificativa dos oficiais nazistas -não queriam advogados de defesa por entender que estavam sendo julgados por ter perdido a guerra, e não por ter cumprido as leis de seu país, as quais impunham o extermínio dos judeus - pouco lhes serviu.
Os princípios do direito natural, um direito que nasce com cada ser humano e não é criado pelo Estado, que só o pode reconhecer, estão na base tanto da declaração universal como da condenação proferida por aquele tribunal. Por essa razão, o elemento essencial para que se examine se há ou não violência aos valores fundamentais do ser humano está em saber de que forma a dignidade do homem é preservada.
De início, o direito à vida é consagrado também na Constituição como princípio fundamental. Está no artigo 5º, "caput", com a seguinte dicção: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes".
Como se vê, nem a eutanásia nem o aborto são permitidos pelo texto supremo. A eutanásia fere o princípio de que enquanto houver vida há esperança de que a pessoa se recupere, até pela descoberta de novos medicamentos.
A pessoa que sofre, por sua vez, nem sempre tem pleno discernimento para decidir se quer parar o sofrimento ou manter a esperança. Por essa razão, a eutanásia não deve ser permitida - principalmente quando partes eventualmente interessadas em heranças sejam aquelas que pretendem abreviar a vida do paciente.
Em casos de morte cerebral, desligar os aparelhos que mantêm artificialmente a vida não gera problemas, na medida em que sem eles a pessoa não viveria. Não são recursos naturais que a mantêm viva. A morte provocada, diferente da morte natural, gera problemas éticos relevantes. O mesmo se diga do aborto, que é a execução de inocentes no seio da mãe. Tal homicídio uterino, na câmara de morte em que se transforma o ventre materno, não pode ser permitido. Lembre-se que desde a Constituição de 1988 não há mais aborto legal no país.
Tenho para mim que a fecundação "in vitro" se reveste da mesma falta de dignidade: os filhos nascem não como fruto do amor, mas de artificial concepção, em que o ato isolado de obtenção do óvulo e do esperma não dignifica a relação que deve gerar a prole.
A clonagem, decididamente, fere a ética. Nela, o ser vivo se reproduz a partir de células trabalhadas, como no filme de ficção em que se atribuía a Hitler a criação dos "meninos do Brasil", geneticamente perfeitos. Aldous Huxley, em "Admirável Mundo Novo", oferta solução semelhante.
No que se refere aos transplantes, não vejo problemas maiores. A retirada, após a morte, de órgãos doados em vida não altera a personalidade humana. Se um dia fosse possível, argumentando pelo absurdo, transplantar cérebros, nessa hipótese haveria violação; o transplante seria da própria pessoa e de sua personalidade.
A Constituição federal permite o transplante de órgãos, no parágrafo 4º do artigo 199, ofertando diretrizes para a sua realização, assim como para a transfusão de sangue.
Todos esses temas são relevantes na atualidade, mas o princípio que deve nortear as discussões é o que diz respeito ao direito natural, voltado exclusivamente para a dignidade do ser humano. Cabe ao Estado preservar esse direito, já que o ser humano é o verdadeiro destinatário da ordem social e jurídica de cada país.
(Artigo publicado no ano de 1998)