EFEITO VINCULANTE E EFEITO OBSTATIVO

Alexandre Nery de Oliveira
Juiz-presidente da 1ª. Junta de Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho, no Distrito Federal

Discute-se no meio judiciário, atualmente, o tema do efeito vinculante de súmulas do Supremo Tribunal Federal e de tribunais superiores em decorrência de propostas de emenda constitucional em debate tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, tendo inclusive sido aprovada, em primeiro turno, a emenda de autoria do senador Ronaldo Cunha Lima, que estabelece o efeito vinculante para as ações de (in)constitucionalidade, e agora também para outras decisões de mérito, a critério do STF, se assim o declarar por 2/3 de seus membros (oito ministros).

O Supremo Tribunal Federal tem avalizado as propostas de emenda constitucional (como a ora aprovada em primeiro turno pelo Senado Federal) que insiram a possibilidade do STF, ainda que por quórum privilegiado, dar efeito vinculante à súmula sobre questão reiteradamente decidida. Defende-se que, com a edição da súmula vinculante, o STF poderia ver-se desafogado da imensidão de recursos que lhe são submetidos para exame de questão idêntica, antes já reiteradamente decidida pela Corte em sentido contrário ao apelo extremo interposto. No bojo das propostas, variam o alcance da vinculação a juízos e tribunais e mesmo à Administração Pública em geral, inclusive quanto à responsabilidade de magistrados e outros agentes que ousem descumprir o enunciado pela Suprema Corte (e em alguns projetos, quanto a temas infraconstitucionais, também os tribunais superiores).

Ora, com a devida vênia das ilustradas vozes que têm defendido a súmula vinculante, venho tecer considerações que denotam a fragilidade de determinados argumentos ainda não muito debatidos.

Não há dúvida de que a súmula é essencial como instrumento indicativo e persuasivo do entendimento predominante existente no Supremo Tribunal Federal e nos tribunais superiores, devendo sempre ser homenageada como meio de indicação dos precedentes judiciários, como resumo dos inúmeros casos repetitivos julgados pela respectiva Corte, não apenas a outros juízos e tribunais judiciários, mas, também, em relação à Administração Pública e à sociedade.

No entanto, erra quem diz que a vinculação do entendimento nela contido faria sucumbir inúmeros casos idênticos, porque as partes continuariam a provocar o Judiciário (e segundo algumas propostas diretamente o tribunal editor da súmula, por via de reclamação) no sentido de argüir a indevida aplicação da súmula, ou mesmo a sua não-aplicação, em casos de duvidosa exegese ou mesmo por mera protelação. Assim, de que adiantaria ao STF deixar de analisar recursos extraordinários e agravos se passaria a ter que analisar número igual ou superior de reclamações, eis que estas não passam pelo juízo primeiro de admissibilidade nos tribunais recorridos, certamente filtro desestimulador a meras aventuras judiciárias?

Igualmente, pensar-se em conotar como crime de responsabilidade a interpretação divergente do magistrado de instância inferior é destruir a própria essência do Judiciário: a livre convicção no julgar o ato conforme o direito, e nem sempre o fato que leva determinada Corte a enunciar súmula de jurisprudência predominante se verifica integralmente noutro caso, tendo o juiz inferior que apreciar o direito que melhor se conforma à nova hipótese. Como, contudo, ficaria, se a súmula o obrigasse a contorcer o fato para adequar o direito enunciado? Como, igualmente, ficaria o juiz como agente político do Estado, se passasse a temer decidir, eis que a mera enunciação de hipótese jurídica em confronto a algum enunciado poderia acarretar a perda do cargo por crime de responsabilidade? Nem as bruxas de Salém temeram tanto as fogueiras... Nesse sentido, inclusive há que se ter na lembrança, sempre, que várias vezes enunciados, de mesmo ou diversos tribunais, adentram em conflito, e a escolha pelo juiz de qual enunciado estaria vigente ou sobreposto a outro passaria a ser tarefa lotérica na fuga da possível responsabilidade, senão criminal, talvez disciplinar, ao invés da devida investigação do caso e enunciação da hipótese jurídica que entenda mais adequada à expressão da Justiça. Mesmo o fato da proposta de emenda constitucional aprovada ter retirado a possibilidade de responder o magistrado por crime de responsabilidade não impede que outras ilações se façam ao modo pelo qual os juízes serão compelidos a vincular-se aos julgados, e ao modo, também, de evitarem-se recursos às cortes superiores, seja quando a parte pretende a aplicação da súmula, também, quando insiste em que a aplicação da mesma foi equivocada em relação ao caso concreto.

Com a devida vênia, o Supremo Tribunal tem pecado ao defender a súmula vinculante quando esqueceu há muito de sumular o direito por ele enunciado em casos vários, o que certamente poderia permitir que vários recursos fossem obstaculizados na origem pelos presidentes de tribunais inferiores, ou mesmo no tribunal por mero despacho dos ministros-relatores — não é preciso ir muito longe para verificarmos que o CPC permite isso, tanto quando disciplina o recurso extraordinário e o recurso especial (art. 541 e ss.) e, principalmente, quando fez estendida a regra de trancamento de recursos quaisquer (e não apenas agravos) manifestantes inadmissíveis, improcedentes, prejudicados ou contrários à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior (art. 557).

Se a intenção é dar relevo constitucional ao tema, melhor seria que a súmula tivesse explicitado o caráter obstativo de recursos interpostos contra decisões nela baseadas, sem impedir que o juiz ou tribunal, que emitisse pronunciamento contrário pudesse ver a questão alçada a nível superior, para possível reexame pela corte editora do verbete sumular contrariado, se no caminho inclusive outros tribunais a tal súmula não se curvassem. Porque não há nas propostas em debate qualquer alento à atividade judicante de primeiro grau, que mesmo com súmulas vinculantes permaneceria obrigada a julgar casos que se repetem. Assim, preferível que tais juízos inferiores possam, já que obrigados a julgar o caso repetitivo, denegar seguimento a recursos interpostos contra a decisão prolatada, se conforme a determina súmula. Se contrário o juiz a tal entendimento, o apelo poderia ser trancado por mera decisão do Relator, se este entendesse conforme súmula superior ou do próprio tribunal. No funil judiciário, casos protelatórios, com precedentes firmes, por via de súmulas respeitadas (inclusive e principalmente pelo tribunal editor), certamente diminuiriam, e a própria aplicação delas em primeiro grau de jurisdição também desestimularia proposituras de causas para meras aventuras judiciárias. Na linha da racionalização dos recursos, o agravo contra as decisões denegatórias de recurso por divergência com súmula poderiam, na forma do que presentemente ocorre no STF e STJ, ser de competência monocrática dos relatores, e os eventuais agravos regimentais passarem igualmente a ser decididos monocraticamente, necessariamente por relator diverso (eis que há que se ter como racional a hipótese de em havendo a manifestação conjunta de dois juízes no mesmo sentido, ou seja, o Relator originário e o Relator do agravo ‘‘regimental’’, ser desnecessário o encaminhamento do mesmo ao colegiado, em regra as turmas, compostas de três juízes.

Se efeito vinculante há de ser dado, com certeza é no campo das ações diretas de inconstitucionalidade, onde o Supremo Tribunal Federal (e os tribunais de justiça, no caso de afronta peculiar das constituições locais) age como verdadeiro legislador negativo, suprimindo (e não apenas suspendendo, o que ocorre efetivamente por ocasião da concessão de liminar em ADIn) a lei ou o ato normativo declarado inconstitucional, ou quando julga improcedente a ação, assumindo a plena constitucionalidade da norma questionada. Neste sentido, realmente é despropositado que juízos e tribunais inferiores ao STF continuem julgando contrariamente ao julgado em abstrato pela Corte Suprema no resultado da mais nobre expressão de sua qualidade de Corte Constitucional. HÁ que se verificar que as Cortes Constitucionais que serviram de modelo à remodelação do STF dada pela Constituinte de 1987 tem sempre a capacidade anulatória da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional, e se nula a lei ou ato, inadmissível que se possa invocá-lo em qualquer sentido, na mesma linha do que ocorre quando o Judiciário, no controle de legalidade dos atos administrativos, entende impróprio o ato emanado da Administração Pública.

Assim, concluindo, melhor que a reforma do Judiciário, sem prejuízo de outras questões (como a reformulação de competências dos diversos tribunais e ramos judiciários ou a própria reestruturação de algumas Cortes e ramos judiciários), (1) enunciasse o caráter vinculativo das decisões do STF nas ações diretas de inconstitucionalidade (como já ocorre nas ações declaratórias de constitucionalidade, com a qual detém nítida identidade), e (2) quanto às súmulas, estendesse o caráter obstativo (apenas, e não vinculativo) também ao exame dos juízos de primeiro grau, inclusive nas remessas de ofício, sempre que as decisões recorridas estivessem em consonância com o verbete sumular, na forma do consagrado atualmente pelo artigo 557 do Código de Processo Civil, sem qualquer efeito vinculante ou punitivo por parte das súmulas aos juízes e tribunais que dela divergissem, o que permitiria a oxigenação do Direito se os demais tribunais igualmente se curvassem à nova exegese data à questão, até a própria reformulação, se o caso, do enunciado em súmula pelo Tribunal Superior dela editor, denotando o exame singular, nos tribunais, dos agravos interpostos contra tais decisões denegatórias de recursos contrários às súmulas. Este o meu entendimento, com todo o respeito às opiniões divergentes.

(Artigo publicado no mês de agosto de 1997)



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Copyright © 1998 Fernando Ribeiro Ramos
Última Atualização Feita em 14/01/1998
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