Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor titular da
Universidade de Brasília
A interpretação jurídica reclama, antes de mais nada, definir o instituto analisado. Sem essa cautela, corre-se o risco de conferir a uma espécie a regra geral, o que afronta o comando lógico — norma specialis derogat generali. A prescrição visa a tornar estáveis situações jurídicas, muitas vezes, polêmicas, contestadas. Busca-se a paz social, consolidando-se relações que, com o passar do tempo, firmam-se em determinado sentido.
A classificação dos atos jurídicos registra a categoria "ato nulo" — não gera nenhum efeito. É repelido desde o nascedouro. Alguns autores chegam mesmo a equipará-lo aos atos inexistentes, embora a distinção se justifique. No primeiro, os elementos essenciais se fazem presentes, apesar do vício. No segundo, falta um deles. É nulo o casamento de pessoa casada, ao passo que inexistente, se contraído por pessoas do mesmo sexo.
O Código Penal, no art. 117, relaciona as causas interruptivas da prescrição. correspondem a decisões judiciais (recebimento da denúncia ou da queixa, pronúncia, decisão confirmatória da pronúncia e sentença condenatória recorrível) ou fato relevante (início ou continuação do cumprimento da pena e a reincidência).
A decisão judicial poderá ser confirmada, ou anulada. No segundo caso, repercutirá no curso da prescrição, aplicando-se a regra "ato nulo não produz efeito?" Em conseqüência, afetará a interrupção?
Impõe-se definir a prescrição. Sem dúvida visa a favorecer o indiciado, réu, ou mesmo condenado com sentença transitada em julgado. Tem, evidente, a sua explicação. O correr do tempo vai deixando o fato delituoso no esquecimento, afrouxa-se, quando não desaparece, a reação social ao delito. Busca-se, com a extinção da punibilidade, a paz social, ficando sem sentido movimentar processo, ou aplicar a sanção, transcorrido o tempo que o estado fixou para fazer efetivo o seu poder de punir.
A prescrição é, portanto, sanção (sentido de conseqüência pela não-realização do preceito da norma). A lei estabelece o prazo para o Estado concluir o processo criminal, ou executar a sentença penal condenatória. Não observado, opera-se prescrição, respectivamente, da pretensão punitiva e da pretensão executória.
O pressuposto da prescrição, assim, é a inação, ou retardamento da prestação jurisdicional, desrespeitado o respectivo lapso temporal. Pune-se (sentido vulgar) porque tardia a decisão judicial. Interessa, portanto, a data da decisão do juiz. Não há preocupação com o conteúdo dessa decisão. Certa, ou equivocada, justa, ou injusta, nada conta. Interessa o marco cronológico e nada mais. Tanto assim, se decisão de uma das causas de interrupção for anulada, ou reformada, não traz nenhuma relevância para efeito de prescrição. Tome-se, ilustrativamente, a hipótese do inciso IV — pela sentença condenatória recorrível. Interrompe o curso da prescrição apenas porque publicada. Não se examina, não se leva em consideração o conteúdo. Pouco importa, ademais, se vier a ser confirmada, reformada, ou mesmo anulada em 2ª. instância. Importa, insista-se, somente a data da publicação. A não ser assim, a sentença condenatória porque reformada, havendo o acórdão proclamando a inocência, retirando, pois, a sanção penal, passando a decisão absolutória, cancelaria o marco interruptivo. E assim seria porque a decisão absolutória cassa os efeitos da sentença condenatória. Resultaria o seguinte: em se fazendo o cálculo, considerando a pena cominada, se a sentença condenatória recorrível não continuasse a ser marco interruptivo, poderá acontecer de, antes do julgamento do recurso, restar configurada a prescrição, considerando a pena cominada. As causas interruptivas da prescrição são tomadas como dados cronológicos. Não se tem em conta a legalidade, ou ilegalidade da decisão judicial. A relevância se restringe a policiar o desenvolvimento do ius persequendi, impedir que a instauração, ou transcorrer do processo se alonguem de modo intolerável. Sabido, a relação processual confere ao sujeito passivo direito a solução em prazo razoável. Insista-se, no caso da prescrição, não interessa o conteúdo da decisão, mas a sua tempestividade. E a enumeração das causas interruptivas é taxativa. Não admite ampliação.
A natureza jurídica e a teleologia do Instituto jurídico não podem ser desprezadas pelo intérprete. Somente assim, situar-se-á, com precisão, no sistema jurídico.
O tema merece reflexão mais atenta. Repercute, sem dúvida, no sistema de validade dos atos jurídicos; entretanto, cumpre levar em conta as suas características. Caso contrário, como dito, a norma especial será tratada como norma geral, deixando-se de considerar o quid distintivo, aliás, a nota característica. Em outras palavras, o próprio instituto analisando.
Em Direito Penal e Processual Penal não é absoluta a afirmação "o nulo não produz efeito". Produz, sim. Aliás, com o abono da doutrina e da jurisprudência de todos os tribunais. A sentença condenatória, anulada por recurso do réu, não pode impor pena superior à anteriormente fixada. Nunca é demais relembrar: o Direito é uno; entretanto, cada setor dogmático tem seus princípios e normas específicas.
(Artigo publicado no mês de setembro de 1997)
----------------------------------------------- A difícil missão de quem defende, acusa ou julga
Nelson Gomes da Silva Juiz-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(Trechos de discurso pronunciado na cerimônia de inscrição de novos advogados e estagiários na OAB, Seção de Goiás, em 27 de junho de 1997)
(...) Distribuir a justiça é tarefa semelhante à ação do próprio Deus, justo, único e verdadeiro juiz, no dizer do profeta Davi: ''Judex solus Deus''. Julgar é função quase divina. E o advogado participa dessa função, pois é ele co-partícipe na entrega da prestação jurisdicional. Por isso, deve ser diligente e criterioso. A omissão de um pequeno detalhe, de caráter fático ou processual, de conteúdo ou de forma, pode ser fatal. Inocentar um culpado é tão terrivelmente aterrorizador quanto incriminar um inocente. É tanto censurável o comportamento do defensor que se utiliza de meias verdades para inocentar o culpado, quanto hedionda a atitude do acusador que usa sutilezas para condenar o inocente. (...) O direito só se conquista com luta e a defesa do direito é um dever imanente à natureza humana. Em conferência proferida na Sociedade Jurídica de Viena, em 1872, Rudolf Von Ihering realçava este caráter combativo da atuação do advogado: ''É uma concepção verdadeiramente romântica, isto é, que assenta sobre uma falsa idealização nas circunstâncias do passado, o admitir que o direito se forma sem dor, sem custo, sem ação, como a erva dos campos; a dura realidade ensina porém o contrário''. (''A luta pelo direito'', 15ªedição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág. 9). (...) No bojo de questões relevantes têm surgido críticas à atuação do Judiciário, seguidas de propostas de solução, entre as quais se destacam a adoção do efeito vinculante das súmulas e o controle externo. O primeiro tema envolve alguns aspectos a considerar. O efeito vinculante das súmulas é proposto como solução para o problema da lentidão na entrega da prestação jurisdicional. Esta realmente tem sido lenta, em que pese o ingente esforço desenvolvido pelos integrantes do Judiciário, no sentido de contornar a situação. Uma das causas dessa morosidade é, sem dúvida, a deficiência numérica constatada nos quadros funcionais do Judiciário, aliada ao reduzido número de varas e comarcas. O Brasil situa-se muito aquém da tranqüila realidade de outros papéis, no quadro demonstrativo da relação número de juízes e população. Com cerca de 160 milhões de habitantes, o país dispõe de apenas 5.895 juízes de 1ªinstância, conforme levantamento do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, realizado no final de 1995. A média é de um juiz para cada grupo de 26.400 pessoas. Para citar apenas um exemplo, na Alemanha a proporção é de um juiz para 3.000 habitantes. Outro aspecto a considerar, no tocante ao efeito vinculante, é a limitação da capacidade decisória do juiz. Não há negar ser esta uma barreira difícil de superar, porque o processo decisório é o conjunto das três operações da mente e estas são faculdades inalienáveis da pessoa. Com a adoção do efeito vinculante, a idéia, o juízo e o raciocínio restariam sem valor e a autonomia judicante indiscutivelmente comprometida. Outra causa da lentidão na resposta jurisdicional é o número excessivo de recursos cabíveis, no atual sistema processual brasileiro, que retardam consideravelmente as decisões finais. Em média transcorrem oito anos entre a petição inicial e o trânsito em julgado na instância derradeira. São um a dois anos na primeira instância, mais dois na segunda. E, se houver recurso para o Superior Tribunal de Justiça e/ou para o Supremo Tribunal Federal, gastam-se mais dois anos. O tempo restante corre por conta da execução do julgado, com interposição de embargos, expedição e cumprimento de precatórios, se for o caso, e outras diligências. Qual a solução? O que de mais significativo surgiu, com esse objetivo, foi a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, (Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995). Entretanto, somente esta providência não solucionou o problema. Necessária se faz uma substancial alteração no sistema recursal, visando a simplificá-lo, o que não deve significar o abandono das garantias clássicas da ação e da defesa, especialmente a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e do contraditório. Poder-se-ia, por exemplo, estudar formas de imprimir maior efeito restritivo no art. 557 do CPC, no que se refere ao trancamento dos recursos manifestamente contrários à súmula, desestimulando a interposição de agravos repetitivos, que continuam atulhando as prateleiras dos tribunais. Mesmo quanto à apelação, valeria desenvolver estudos nesse sentido, tendo em mente as regras do julgamento antecipado da lide (art. 330 do CPC). O controle externo é outro ponto palpitante das discussões em torno do nosso sistema judiciário. Há manifestações conflitantes e emocionais sobre o tema, todas elas confluindo para o campo da independência dos Poderes da União. Entendo necessário o controle, mas através de Conselhos Superiores, nos próprios tribunais, com funções específicas e mais amplas do que as correcionais. Ao contra-argumento de que o espírio de corpo poderia desfigurar a atuação desses colegiados, indica-se a interposição de recurso para um colegiado superior, junto ao Supremo Tribunal Federal. Esta proposição tem a vantagem de não ferir a autonomia nem quebrar a harmonia entre os poderes. (...) As virtudes que se devem atribuir aos militantes do Direito são aquelas constantes no Decálogo do Advogado, elaborado por Santo Ivo, patrono espiritual dos homens e mulheres de carreira jurídica, cuja festa o calendário hagiológico registra a 19 de maio. São as virtudes da temperança, do equilíbrio, do temor de Deus, do zelo, do respeito à parte e da submissão aos ideais de justiça e aos anseios de paz. Nas mãos do advogado está a mais bela esperança de um país justo e pacífico. Sem justiça jamais poderá erguer-se uma nação. Sem justiça não se fazem homens, mas bandidos. Sem justiça, não se constroem personalidades, mas fantoches ou títeres em mãos poderosas e irresponsáveis. Sem justiça, o Estado não cresce, mas se amesquinha, à mercê da mediocridade e da irresponsabilidade. Recorro, uma vez mais, a Von Ihering, tomando-lhe o seguinte trecho como palavras de encerramento: ''A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça — e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo —, nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva''. (op. cit., pág. 1). É essa a luta de todos. Importa encetá-la com presteza e coragem, pois, no dizer de Goethe, ''só deve merecer a liberdade e a vida quem, para as conservar, luta sem cessar''. (Correio Braziliense) ----------------------------------------------- O porte de arma de fogo
Waldemir Banja, advogado, professor da Escola da Magistratura do Distrito Federal, juiz de Direito do TJDF (aposentado)
A Lei Federal nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, em seu art. 10, diz que é crime possuir, deter, portar, ceder, transportar ou emprestar arma de fogo. A pena, para quem incorre no rime, é de um a dois anos de detenção e multa. O povo tem direito à segurança. O cidadão tem o direito de exigir do Estado garantias de integridade física, para si e para sua família. Quando o Estado negligencia o cumprimento desse dever, o cidadão busca uma solução alternativa, se necessário armando-se. Afinal, a busca de sobrevivência é um direito natural. No Brasil, nas últimas décadas, as pessoas armaram-se contra o marginal, o ladrão, o estuprador, o assaltante, na tentativa de suprir a omissão do Estado. À medida que o Estado mostrava sua impotência, sua incapacidade, sua negligência e, até, seu descaso com a segurança pública, os homens de bem, pais de famílias ameaçados, agredidos e acuados em seus próprios lares, armaram-se, levantaram muros e colocaram grades em suas casas. Mas não foi só o homem de bem que armou-se. Muito pelo contrário, pois o marginal, aqui e alhures, tem seu fuzil AR-15, sua pistola 765, sua organização criminosa e uma elevadíssima carga de periculosidade. Quantos menores de idade, desses que andam em duplas ou grupos pelas ruas do Distrito Federal, portam armas de fogo? Quantos as usam, diariamente, para agredir e assaltar trabalhadores honestos? O governo, admitindo sua incapacidade de enfrentar o ''monstro'' que ele próprio gerou, puniu a todos, homens de bem e criminosos, por portar, transportar, emprestar ou possuir arma de fogo, ainda que muito bem guardada nas residências de pais de famílias. Assim, o art. 5º da Lei nº 9.437 estatui que o proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo tem o prazo de seis meses, a partir da data da sua promulgação, para promover o registro da sua arma, sendo que o Regulamento da mencionada lei poderá estabelecer o recadastramento geral de todas as armas existentes no países (parágrafo único do art. 19). O prazo para o proprietário proceder ao registro de suas armas expira-se agora, no final, no final deste mês de agosto, salvo se o Poder Executivo resolver prorrogá-lo por mais seis meses. Vencido o prazo, será crime ter consigo, em sua residência, na sua empresa ou local de trabalho de que seja o titular, arma de fogo não registrada. Agora, pergunta-se: e o marginal por acaso vai se incomodar com isso? O marginal vai deixar de andar armado somente porque os homens de bem cadastraram suas armas? O marginal vai requerer registro ou porte de arma à autoridade policial? Vão ser apreendidas as armas não registradas dos marginais? Claro que não. É óbvio que não. Seria muito mais fácil retomar o controle de armas no país se houvesse uma legislação severa e uma efetiva fiscalização que coibisse a fabricação e a venda clandestina de armas. Não é segredo para ninguém que em Goiás se compra, facilmente, uma arma de fogo com trezentos reais e que, em Campina Grande-PB, existem inúmeras fábricas de armas de fogo em fundos de quintas. É na fabricação e na importação que se deve concentrar um real esforço governamental para conter a circulação de armas clandestinas e não sobre o pacato pai de família com ficha limpa na polícia. O governo não possui um plano nacional de segurança pública eficaz. E os estudos que atualmente estão sendo feitos, por força da rebelião generalizada dos policiais militares que clamam por salários condignos, caminham desastrosamente pela desconstitucionalização. A ''emenda'' vai ser pior que o ''soneto''. Quem já atuou por alguns anos, como juiz, promotor ou advogado, pelas comarcas do interior do país, sabe muito bem das pressões imorais e ilegais que são feitas sobre o policial. Sua única garantia é a Lei Maior, justamente o que querem lhe tirar. É difícil entender esses neoliberais. (Correio Braziliense)