Nelson Gomes da
Silva
Juiz-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(Trechos de discurso pronunciado na cerimônia de inscrição de novos advogados e estagiários na OAB, Seção de Goiás, em 27 de junho de 1997)
(...) Distribuir a justiça é tarefa semelhante à ação do próprio Deus, justo, único e verdadeiro juiz, no dizer do profeta Davi: "Judex solus Deus". Julgar é função quase divina. E o advogado participa dessa função, pois é ele co-partícipe na entrega da prestação jurisdicional. Por isso, deve ser diligente e criterioso. A omissão de um pequeno detalhe, de caráter fático ou processual, de conteúdo ou de forma, pode ser fatal. Inocentar um culpado é tão terrivelmente aterrorizador quanto incriminar um inocente.
É tanto censurável o comportamento do defensor que se utiliza de meias verdades para inocentar o culpado, quanto hedionda a atitude do acusador que usa sutilezas para condenar o inocente.
(...) O direito só se conquista com luta e a defesa do direito é um dever imanente à natureza humana.
Em conferência proferida na Sociedade Jurídica de Viena, em 1872, Rudolf Von Ihering realçava este caráter combativo da atuação do advogado: "É uma concepção verdadeiramente romântica, isto é, que assenta sobre uma falsa idealização nas circunstâncias do passado, o admitir que o direito se forma sem dor, sem custo, sem ação, como a erva dos campos; a dura realidade ensina porém o contrário". ("A luta pelo direito", 15ª. edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág. 9).
(...) No bojo de questões relevantes têm surgido críticas à atuação do Judiciário, seguidas de propostas de solução, entre as quais se destacam a adoção do efeito vinculante das súmulas e o controle externo. O primeiro tema envolve alguns aspectos a considerar.
O efeito vinculante das súmulas é proposto como solução para o problema da lentidão na entrega da prestação jurisdicional. Esta realmente tem sido lenta, em que pese o ingente esforço desenvolvido pelos integrantes do Judiciário, no sentido de contornar a situação.
Uma das causas dessa morosidade é, sem dúvida, a deficiência numérica constatada nos quadros funcionais do Judiciário, aliada ao reduzido número de varas e comarcas.
O Brasil situa-se muito aquém da tranqüila realidade de outros papéis, no quadro demonstrativo da relação número de juízes e população. Com cerca de 160 milhões de habitantes, o país dispõe de apenas 5.895 juízes de 1ª. instância, conforme levantamento do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, realizado no final de 1995. A média é de um juiz para cada grupo de 26.400 pessoas.
Para citar apenas um exemplo, na Alemanha a proporção é de um juiz para 3.000 habitantes.
Outro aspecto a considerar, no tocante ao efeito vinculante, é a limitação da capacidade decisória do juiz. Não há negar ser esta uma barreira difícil de superar, porque o processo decisório é o conjunto das três operações da mente e estas são faculdades inalienáveis da pessoa. Com a adoção do efeito vinculante, a idéia, o juízo e o raciocínio restariam sem valor e a autonomia judicante indiscutivelmente comprometida.
Outra causa da lentidão na resposta jurisdicional é o número excessivo de recursos cabíveis, no atual sistema processual brasileiro, que retardam consideravelmente as decisões finais. Em média transcorrem oito anos entre a petição inicial e o trânsito em julgado na instância derradeira. São um a dois anos na primeira instância, mais dois na segunda. E, se houver recurso para o Superior Tribunal de Justiça e/ou para o Supremo Tribunal Federal, gastam-se mais dois anos. O tempo restante corre por conta da execução do julgado, com interposição de embargos, expedição e cumprimento de precatórios, se for o caso, e outras diligências.
Qual a solução?
O que de mais significativo surgiu, com esse objetivo, foi a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, (Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995).
Entretanto, somente esta providência não solucionou o problema. Necessária se faz uma substancial alteração no sistema recursal, visando a simplificá-lo, o que não deve significar o abandono das garantias clássicas da ação e da defesa, especialmente a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e do contraditório.
Poder-se-ia, por exemplo, estudar formas de imprimir maior efeito restritivo no art. 557 do CPC, no que se refere ao trancamento dos recursos manifestamente contrários à súmula, desestimulando a interposição de agravos repetitivos, que continuam atulhando as prateleiras dos tribunais. Mesmo quanto à apelação, valeria desenvolver estudos nesse sentido, tendo em mente as regras do julgamento antecipado da lide (art. 330 do CPC).
O controle externo é outro ponto palpitante das discussões em torno do nosso sistema judiciário. Há manifestações conflitantes e emocionais sobre o tema, todas elas confluindo para o campo da independência dos Poderes da União.
Entendo necessário o controle, mas através de Conselhos Superiores, nos próprios tribunais, com funções específicas e mais amplas do que as correcionais.
Ao contra-argumento de que o espírio de corpo poderia desfigurar a atuação desses colegiados, indica-se a interposição de recurso para um colegiado superior, junto ao Supremo Tribunal Federal.
Esta proposição tem a vantagem de não ferir a autonomia nem quebrar a harmonia entre os poderes.
(...) As virtudes que se devem atribuir aos militantes do Direito são aquelas constantes no Decálogo do Advogado, elaborado por Santo Ivo, patrono espiritual dos homens e mulheres de carreira jurídica, cuja festa o calendário hagiológico registra a 19 de maio. São as virtudes da temperança, do equilíbrio, do temor de Deus, do zelo, do respeito à parte e da submissão aos ideais de justiça e aos anseios de paz.
Nas mãos do
advogado está a mais bela esperança de um país justo
e pacífico.
Sem justiça jamais poderá erguer-se uma nação.
Sem justiça não se fazem homens, mas bandidos.
Sem justiça, não se constroem personalidades, mas fantoches
ou títeres em mãos poderosas e irresponsáveis.
Sem justiça, o Estado não cresce, mas se amesquinha, à
mercê da mediocridade e da irresponsabilidade.
Recorro, uma vez mais, a Von Ihering, tomando-lhe o seguinte trecho como palavras de encerramento: "A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça — e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo —, nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos.
Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva". (op. cit., pág. 1).
É essa a luta de todos.
Importa encetá-la com presteza e coragem, pois, no dizer de Goethe, "só deve merecer a liberdade e a vida quem, para as conservar, luta sem cessar".
(Artigo publicado no mês de setembro de 1997)