AÇÃO CIVIL PÚBLICA: CONTORNOS DO INSTRUMENTO E ATUALIDADES

Juliana de Carvalho Ortolani
Aluna do 4º Ano de Direito da USP

Introdução: Conceito, evolução legislativa e diferenças entre a ação civil pública, o mandado de segurança e a ação popular

A Ação Civil Pública é o instrumento processual para a defesa dos interesses metaindividuais relativos ao meio ambiente, bens e direitos de valor histórico, turístico, artístico, estético, paisagístico, mais recentemente, dos interesses de deficientes físicos, investidores do mercado de capitais e direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes; ou seja, a ação civil pública ampara os interesses que interessam, não exclusivamente a um indivíduo, mas a toda a coletividade, esses interesses meta ou transindividuais desdobram-se em direitos difuso, coletivo e individuais homogêneos.

Inicialmente a matéria foi regulada pela Lei n° 7.347 de 24/07/1985 (Lei da Ação Civil Pública - LACP) sendo posteriormente complementada pela Lei n° 7.853 de 24/10/1989 que regulamenta os direitos dos deficientes físicos, Lei n.º 7.913 de 07/12/1989 relativa aos investidores no mercado de valores mobiliários, Lei n.º 8.069 de 13/07/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); a Lei n° 8.078 de 11/10/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), o Decreto n.º 1306 de 09/11/1994 que regulamenta o Fundo de Defesa de Direitos Difusos que tratam os artigos 13 e 20 da LACP; a Lei n.º 9.008 de 21/03/1995 que cria o Conselho Federal que trata o artigo 13 da LACP, e mais recentemente a Lei n.º 9.494 de 10/09/1997 que dá nova redação ao artigo 16 da LACP.

A Ação Civil Pública, assim como a Ação Popular e o Mandado de Segurança são instrumentos especiais, de procedimento ágil e legitimidade extraordinária visando corrigir problemas sociais anteriormente desamparados devido aos empecilhos das técnicas clássicas do processo civil. O quadro comparativo abaixo, contorna as principais características destes instrumentos.

AÇÃO POPULAR MANDADO DE SEGURANÇA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Conceito: é o instrumento constitucional que possibilita a qualquer cidadão anular ato ilegal ou lesivo ao patrimônio público (incluindo bens históricos, artísticos, paisagísticos, meio ambiente etc.). Conceito: é o instrumento constitucional para proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão por autoridade pública. Conceito: é o instrumento processual que visa a evitar danos ao meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor artístico, histórico e paisagístico, dos investidores do mercado de capital, deficientes físicos, crianças e adolescentes.
Objeto: Anulação de ato ilegal ou lesivo ao patrimônio público. Objeto: invalidação de ato ou omissão de autoridade ofensivos ao direito individual ou coletivo, líquido e certo. Objeto: proteção dos interesses transindividuais da sociedade.
Legitimidade: ativa: qualquer cidadão, ou seja, pessoa física, brasileiro, eleitor. passiva: diversas: pessoa jurídica de direito público ou privado, autoridades, funcionários administradores públicos, beneficiários, avaliadores etc. Legitimidade: ativa: toda a pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual (ex. comissões autônomas) ou universalidade reconhecida por lei (ex. espólio, massa falida). passiva: autoridade pública (administrativa, judicial, policial, eleitoral, militar, civil etc.) Legitimidade: ativa: Ministério Público, pessoa jurídicas estatais, autárquicas e paraestatais, associações destinadas a proteção do meio ambiente e defesa do consumidor. passiva: todos os responsáveis pelo dano.
Natureza Processual: ação civil de rito ordinário com algumas modificações, admite liminar Natureza Processual: ação civil de rito sumário especial Natureza Processual: ação civil de rito ordinário comum, admite medida liminar.

Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos: Conceituação

Como o objeto da Ação Civil Pública é bastante amplo pois tal instrumento visa proteger os interesses da sociedade, sua caracterização precisa é delicada. A dificuldade na estipulação dos conceitos de interessa difusos, coletivos ou individuais homogêneos existe, podendo suscitar dúvidas quanto ao cabimento da Ação Civil Pública em caso concreto.

A Lei da Ação Civil Pública não prevê a proteção dos direitos individuais homogêneos mas, por analogia e extensão, entende-se que eles possam ser defendidos por meio deste instrumento. Dita o artigo 1º da LACP:

Entendemos, como parte majoritária da doutrina, que a Ação Civil Pública não é o instrumento mais adequado para a defesa dos interesses individuais homogêneos, por reverter a pena pecuniária para um fundo de reconstituição dos bens lesados. Entretanto primeiramente precisamos compreender os conceitos de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos para que possamos escolher os instrumentos processuais mais adequados.

Com o intuito de facilitar o entendimento do tema, passamos a caracterizar os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, segundo a legislação em vigor. O CDC, em seu art. 81 parágrafo único define:

Do texto legal desprendemos que os interesses ou direitos difusos dizem respeito a um grupo de pessoas indeterminado entre as quais inexiste vínculo jurídico e a reparação quanto ao dano sofrido ou direito ofendido não é quantificável nem divisível. Exemplificativamente, a poluição de um rio.

Já os direitos ou interesses coletivos são característicos de um grupo determinado ou determinável de pessoas. Como os difusos, também são indivisíveis, mas seus integrantes possuem uma ligação jurídica entre si ou com a parte contrária, pois fazem parte de um grupo, categoria ou classe. Assim, por exemplo, o aumento ilegal das prestações de um consórcio é um direito coletivo, pois a ilegalidade do aumento é linear para todos, o aumento não pode ser maior ou menor para aquele consorciado que tenha pago duas prestações, por isso a ilegalidade é de natureza indivisível.

Por fim, os direitos ou interesses individuais homogêneos que podem ser chamados de direitos de segunda geração quando comparados com os difusos e coletivos, pois foram criados pelo CDC, dizem respeito a titulares determinados, ou determináveis e o dano sofrido caracteriza-se pela sua DIVISIBILIDADE atribuída individualmente e sendo, por isso variável. Exemplificativamente, no caso do consórcio, o direito a receber a indenização é proporcional à quantia despendida por cada consorciado na pagamento das suas prestações, apesar da ilegalidade ser linear para todos.

A dificuldade de classificação decorre em parte da insuficiente caracterização feita pelo CDC desta nova categoria de direitos, os individuais homogêneos, que de acordo com a legislação são aqueles "decorrentes de origem comum", ora, parece que tanto os direitos difusos entendidos como aqueles decorrentes de um fato comum assim como os direitos coletivos decorrentes de uma relação jurídica entre seus titulares ou entre estes com parte contrária, também derivam de uma chamada "origem comum" dessa maneira a caracterização revela-se, não só insuficiente como também confusa.

Entretanto, a partir de uma interpretação sistemática, devemos entender origem comum diz respeito à um dano originário de uma relação de fato, não jurídica.

Outro ponto a salientar é que cada direito ou interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo pode ser entendido em "strictu" ou "latu sensu". Justamente é a interpretação extensiva destes conceitos que gera a dúvida quanto a sua caracterização. Assim, de acordo com a interpretação extensiva de Hugo Mazzilli, os direitos difusos podem ser considerados feixes de interesses individuais com pontos em comum. Poderiam esses interesses individuais serem considerados homogêneos? Entendemos que sim; assim, através desta interpretação extensiva os direitos difusos englobariam os individuais homogêneos.

Entretanto diferença entre direitos difusos e individuais homogêneos repousa na indivisibilidade ou divisibilidade do ressarcimento do dano.

Segundo a mesma interpretação extensiva, os direitos individuais homogêneos dizem respeito a titulares individuais e determinados que por uma situação fática acabam possuindo os mesmos interesses. Essas pessoas consideradas ao acaso podem, perfeitamente, constituir um grupo determinado, por estarem vivenciando a mesma situação, destarte, os direitos individuais homogêneos encontram-se englobados nos direitos coletivos.

Novamente a diferenciação desses direitos repousa na divisibilidade ou não do ressarcimento do dano. Enquanto os direitos coletivos são indivisíveis os individuais homogêneos são divisíveis.

Tendo levantado estas questões, que são as dúvidas mais comuns em relação à matéria, a análise de um caso concreto pode ilustrar esta discussão. No caso da fabricação e comercialização de um carro com defeito de série onde vários consumidores tenham porventura adquirido estes produtos defeituosos encontramos direitos individuais homogêneos decorrentes da reparação variável de acordo com a situação de cada consumidor individualmente considerado. Também encontramos direito coletivo, pois existe uma relação jurídica básica: a relação de consumo onde os consumidores estão unidos entre si através de uma relação jurídica com o fabricante e tem direito, por exemplo, a que a produção e comercialização dos carros seja cessada. E, finalmente, considerando que o defeito apontado possa vir a prejudicar a segurança no trânsito e/ou a qualidade do ar, temos interesses difusos da coletividade indeterminada em sanar tal insegurança e/ou poluição.

Para sintetizar e clarificar o exposto, com base nos ensinamentos do mestre Mazilli, elaboramos o quadro analítico abaixo:

classificação/direito Difusos Coletivos Individuais Homogêneos
Origem do dano relação de fato relação jurídica relação de fato
Divisibilidade do ressarcimento indivisível indivisível divisível
Número de lesados indeterminado determinado ou determinável determinado ou determinável

Legitimidade

Segundo o art. 5° da LACP, são partes legítimas para propor a Ação Civil Pública: o Ministério Público (MP), a União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, associações destinadas à defesa do meio ambiente ou do consumidor. Especificamente, em relação aos direitos dos consumidores, o CDC ampliou a legitimidade ativa, incluindo, também o Distrito Federal e as entidades da administração pública sem personalidade jurídica.

Dentre todos os legitimados para propor a Ação Civil Pública, o MP é, até agora, o mais adequado para exercer tal função pois estamos diante de interesses metaindividuais. Isto ocorre, tanto decorrente de sua independência funcional e institucional, que os outros entes paraestatais e pessoas de direito público não possuem, quanto a isenção de custas e honorários no caso de improcedência da ação. Além da facilidade de investigação do MP devido à possibilidade de instaurar inquérito civil.(1)

Na realidade, o MP é, até agora, o órgão mais adequado para a defesa dos interesses metaindividuais, por que falta às associações civis a conscientização que os meios processuais oferecidos por nosso Código de Processo Civil, em especial a Ação Civil Pública, e também por nossa Constituição Federal (CF), são meios extremamente atuais e efetivos para a defesa de seus interesses. E, na medida em que a sociedade estiver mais familiarizada e mais Organizações Não Governamentais (ONGs) estivem formadas e atuantes, a Ação Civil Pública tenderá a ser um instrumento mais pulverizado e, com certeza, ainda mais eficaz. Mesmo assim, o MP não será desafogado de trabalho, pois, mesmo que não seja autor da ação, o MP sempre deverá atuar como fiscal da lei, devido à natureza da lide, para evitar abusos e extrapolações de uso do instrumento, conforme dita o parágrafo 1º do artigo 5ª da LACP.

Em relação à legitimidade ativa, polêmica a questão da competência do MP para defesa dos interesses individuais homogêneos.

A LACP não menciona expressamente que se destina à defesa dos direitos individuais homogêneos, entretanto menciona .os direitos dos consumidores, e, posteriormente, o CDC vem à elencar como uns dos direitos a ser defendido à titulo coletivo, os individuais homogêneos, bem como expressamente legitimar o MP. Para esclarecer a questão, analisaremos os art. 129 e 127 da CF. O art. 129 dita: "São funções institucionais do Ministério Público: ... III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; (grifo nosso)" não incluindo os individuais homogêneos. Entretanto o art. 127 esclarece: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (grifo nosso).

Desprendemos da legislação que o MP é parte legítima para defender os direitos individuais indisponíveis, mas quais são os direitos individuais indisponíveis no campo civil?

Para Arnaldo Wald e Hely Lopes Meirelles, os direitos individuais homogêneos caracterizam-se pela sua disponibilidade e o MP só tem competência para defender os interesses e direitos difusos, não individuais, mesmo quando homogêneos. Já Hugo Nigro Mazzilli afirma que a defesa de interesses individuais homogêneos depende da análise do caso concreto e que o MP não tem legitimidade para defender interesses individuais "sem maior repercussão na coletividade"(2) e cita a Súmula n.º 7 do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, que transcrevemos:

Mesmo assim, a questão é controvertida nos Tribunais e a falta de familiarização com os conceitos e com o instrumento já gerou exageros e imoderações, como, por exemplo, da propositura pelo Ministério Público de Ação Civil Pública para dissolver uma sociedade anônima.(3)

Quanto à legitimidade no pólo passivo, podem fazer parte todos os responsáveis pelas situações ou fatos ensejadores da ação, tanto pessoas físicas, quanto jurídicas, privadas ou estatais, nacionais ou internacionais.

Foro e Processo

A Ação Civil Pública deve ser proposta no foro do local onde ocorreu o dano, ou no foro do local onde possa ou deva ocorrer o dano, nas cautelares (Art. 2° da LACP). Sendo a União, entidades autárquicas ou empresa pública federal rés, assistentes ou oponentes, a competência é da Justiça Federal (Art. 109, inc. I da CF).

O processo é ordinário, comum do Código de Processo Civil, mas admite medida liminar suspensiva da atividade do réu. Outras peculiaridades são: multa cominada liminarmente só exigível após trânsito em julgado da decisão favorável ao autor, mas devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento (Art. 12, § 2° da LACP); havendo condenação em dinheiro, a indenização verterá para um fundo, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados (Art. 13 da LACP e regulamentada pelo Decreto n° 1306 de 09/11/1994); e a possibilidade do juiz conferir efeito suspensivo ao recurso para evitar dano irreparável à parte. (Art. 14 da LACP).

Responsabilidade do réu

Para analisar a responsabilidade do réu na violação dos interesses transindividuais da sociedade, faremos uma distinção em três categorias: (i) da defesa do meio ambiente, (ii) da defesa dos consumidores e (iii) dos outros interesses difusos ou coletivos.

I - Da defesa do meio ambiente: A CF reafirmou o princípio da responsabilidade objetiva em matéria ambiental, explicitamente quanto a exploração de energia nuclear: art. 21 inc. XXIII, alínea c : "a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa", e implicitamente em relação aos outros danos ambientais não nucleares, art. 225 § 2°: "aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com a solução técnica exigida pelo órgão público, na forma da lei." e § 3° : "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados.".

A responsabilidade objetiva em matéria ambiental foi instituída pela Lei n° 6.938/81: "é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e terceiros, afetados por suas atividades". Tal princípio não foi revogado pela LACP. Assim em se tratando de matéria ambiental; a responsabilidade do réu é objetiva e sua caracterização e argumentação de defesa serão explicadas mais adiante.

II - Da defesa dos consumidores: A tendência doutrinária para adoção do responsabilidade objetiva na defesa dos consumidores mesmo anteriormente à promulgação do CDC foi confirmada, não mais restando dúvidas à respeito da matéria. O CDC em seu artigo 12° dita que: "o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos."

III - Dos outros interesses difusos ou coletivos: Na defesa de outros interesses não ambientais ou dos consumidores é preciso fazer uma analise casuística, pois há hipóteses que a responsabilização depende da apuração de culpa e outras que não, conforme o regime material a respeito. Exemplificativamente, temos que a defesa do patrimônio cultural está, na maior parte das vezes englobada na defesa do meio ambiente, entretanto, a destruição de um quadro em uma pinacoteca, por si, não configura uma agressão ao meio ambiente assim depende da existência de culpa por parte do responsável.

Em suma, sendo o objeto da Ação Civil Pública bastante amplo, a responsabilidade do réu dependente ou não de culpa requer a análise mais detalhada do caso concreto, todavia vislumbra-se, na maior parte dos casos, a responsabilidade objetiva do réu, neste caso o autor não precisa demostrar dolo ou culpa do réu, apenas o nexo de causalidade entre a ação ou omissão lesiva do réu ao bem protegido no processo.

Nos casos de responsabilidade objetiva, a defesa do réu está restrita à demonstração de que (i) não é o responsável pelo ato ou fato argüido, ou (ii) não houve a ocorrência impugnada, ou ainda que (iii) a ocorrência não é lesiva ao meio ambiente e sua conduta está autorizada por lei e licenciada por autoridade competente.

Quanto à condenação do réu, esta pode ser tanto uma obrigação de fazer, não fazer, sob pena de execução específica e multa diária, como por exemplo a obrigação de cessar uma atividade poluidora, ou a veiculação de propaganda enganosa, ou ainda a obrigação de reflorestar uma área devastada, bem como pode ser uma condenação em dinheiro que reverterá para um fundo específico (Decreto n° 1.306 de 09/11/1994). Todavia, em se tratando de interesses difuso e da coletividade, mais interessante a obrigação específica de fazer ou não fazer, do que a condenação pecuniária.

Quanto à defesa dos interesses dos consumidores, que na maior parte das vezes, são interesses individuais homogêneos, a Ação Civil Pública não é o instrumento mais adequado para tal defesa, como já defendido por Ada Pellegrini Grinover, no campo da defesa dos consumidores, a Ação Civil Pública só é adequada como uma ação preventiva que vise a tutela inibitória, ou seja quando a reparação do dano possa ser uniforme, não para reparação variável de cada consumidor individualmente considerado.

Efeitos da sentença e coisa julgada e as novas alterações da lei nº 9.494

Segundo o art. 5º, inc. XXXVI da Constituição Federal: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.", podemos desprender diretamente do texto constitucional que a coisa julgada está ligada à segurança jurídica, assim uma vez tornado imutável a sentença, está não mais pode ser alterada.

A coisa julgada é uma qualidade da sentença de mérito e seus efeitos, no seu sentido formal é a preclusão máxima, não cabendo mais nenhuma forma de recurso, quando a imutabilidade se transporta para fora do processo, estamos diante da coisa julgada material.

No caso da Ação Civil Pública, os efeitos da sentença ultrapassam os sujeitos do contraditório, pois a sentença faz coisa julgada "erga omnes"(4). Tal extrapolação dos efeitos da sentença foi criada com o intuito de beneficiar todas as vítimas e sucessores, que não precisaram propor nova ação para também serem beneficiados dos efeitos da sentença condenatória se a ação for julgada procedente.

No caso de improcedência por falta de provas, conforme o art. 16 da LACP, a sentença não adquire o efeito "erga omnes" podendo nova ação ser proposta pela mesma ou por outra parte mediante a apresentação de novas provas. Assim, os efeitos da sentença da Ação Civil Pública sempre beneficiam as possíveis vítimas do dano mesmo que elas não tenham participado do contraditório e nunca cerceiam seu direito de ação.

Mesmo quando estivermos em face de direitos individuais homogêneos, os indivíduos podem aproveitar-se da sentença condenatória relativa ao bem indivisível e já ingressem com a liquidação e a execução quanto aos danos pessoais sofridos, sem a necessidade de um processo de execução. A doutrina tem entendido tal mecanismo como ampliação dos limites objetivos da coisa julgada.(5)

Contrariando o primeiro sentido dos efeitos da sentença, recentemente, a Lei n.º 9.494 de 10/09/1997, alterou a redação do artigo 16, restringindo os efeitos da sentença "erga omnes" apenas nos limites da competência territorial do órgão prolator. Realmente, tendo em vista que um acidente ecológico, por exemplo, ou a fabricação e distribuição de produtos com defeitos de fabricação podem atingir pessoas que não estejam situadas na orla de competência do órgão prolator, esta nova alteração é um retrocesso, diminuindo a eficácia do instrumento.

A restrição dos efeitos da sentença às fronteiras da competência territorial do órgão prolator, em última instância subdivide os interesses que estão sendo julgados, por que os efeitos da sentença não são matéria de competência mas sim de limites subjetivos da coisa julgada devido a natureza do direito material, não a formalidades processuais.

De acordo com a teoria da sede do fato de Savigny, um mesmo fato pode criar conseqüências jurídicas em várias ordens jurídicas, mas em se tratando única e exclusivamente de direito nacional a extensão das conseqüências de um fato é ainda mais gritante, o que não dizer, de um acidente ecológico radioativo, ou veiculação de propaganda enganosa pela televisão dentro de uma federação?.

Na realidade, de acordo com as novas tendências do processo civil, entendido sob o ponto de vista de sua instrumentalização, visando a resolução de controvérsias, a economia processual, a satisfação das partes, pacificação social, celeridade etc..., e mesmo as tendências modernas do direito, com as discussões mais atuais, como a da criação da súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal para desafogar a sobrecarga do Poder Judiciário com demandas fragmentadas e de teses já exaustivamente discutidas, não há dúvidas que tal restrição formalistas processual imposta pela Lei nº 9.494 é anacrônica, retrógrada, e desvinculada das novas tendências atuais.

Críticas, desafios e conclusão

A Ação Civil Pública é um remédio especial destinado a defesa de interesses coletivos e difusos da sociedade que juntamente à ação popular e ao mandado de segurança constituem os instrumentos processuais mais modernos destinados a defesa do indivíduo contra o poder público ou da sociedade globalmente considerada. Dada a relevância do tema, esses remédios desprenderam-se da técnica clássica do direito processual civil; possuindo um procedimento mais ágil, admitindo legitimidade extraordinária, substituição processual e produzindo efeitos de sentença e coisa julgada "erga omnes".

Entretanto, essas prerrogativas devem ser utilizadas com moderação e aos novos instrumentos não cabe a defesa de interesses não expressamente previstos em seu objeto, que em especial, no caso da Ação Civil Pública, apesar de ter sido alargado para a defesa mercado de capitais (operações fraudulentas, manipulação de preços, na revelação de informações privilegiadas - "insider trading:"), lembramos que o artigo 1° da LACP, inc. IV preceitua a defesa de "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" não estendendo essa prerrogativa aos interesses individuais homogêneos, o efeito prático do dispositivo é que descabe a Ação Civil Pública para a recuperação de impostos, anulação de operações financeiras e restituição de dinheiro desviado por autoridade pública.

Ainda referente a impropriedade de sua propositura, este instrumento tem sido intentado, muitas vezes, com base na equidade. Entretanto, este não é seu fim. A Ação Civil Pública defende interesses difusos que a lei material transforma em direito, ou seja, a regulamentação processual não pode prescindir do direito material, principalmente no tocante aos interesses individuais homogêneos.

Com relação aos efeitos da sentença, como esta faz coisa julgada "erga omnes", ela não pode ser utilizada para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, como já primorosamente esclarecido por Arnaldo Wald, se possível fosse, estaríamos criando uma nova forma de controle de constitucionalidade, não prevista pela CF, que violaria os princípios básicos da Federação, dentre outros, o princípio da unidade do direito material e a usurpação pelo juiz de primeiro grau das funções do Supremo Tribunal Federal.

Mais recentemente, a Lei nº 9.494 veio restringir os efeitos da coisa julgada à competência do órgão prolator é anacrônica, retrógrada, formalista, desvinculada das novas tendências atuais do direito e diminui a eficácia do instrumento. Pois ao invés de estarmos facilitando e agilizando a solução de controvérsias, unificando decisões e desafogando o judiciário, estamos fragmentando-as, possibilitando a existência de decisões conflitantes e sobrecarregando os órgãos do Poder Judiciário que deverão julgar um mesmo fato anteriormente julgado.

Em suma, a utilização da Ação Civil Pública é excepcional, primordialmente para a defesa de interesses difusos e coletivos, devendo ser entendida dentro de seus limites, não deve substituir outras ações ou ser utilizada para toda e qualquer situação, fora dos casos legalmente previstos.


1. O inquérito civil é uma figura inovadora da lei, posteriormente consagrada pela Constituição Federal, que desempenha uma função instrumental relevante de investigação para evitar a instauração de lides temerárias. Trata-se de um procedimento administrativo preparatório, pré-processual e extrajudicial. Se o Ministério Público se convencer que inexistem fundamentos para a propositura da ação, prosseguirá ao arquivamento motivado e fundamentado do inquérito civil, remetendo os autos ao Conselho Superior do Ministério Público que poderá homologar ou rejeitar o arquivamento. Mesmo não sendo o Ministério Público autor da ação, deverá intervir no processo como fiscal da lei.
2. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo - 7ª ed. pág. 121
3. O Processo em Evolução - Ada Pellegrini Grinover - 1996 - pág. 442
4. Lembramos que a sentença mesmo antes de transitada em julgado já produz efeitos e atinge partes que não figuravam pólo ativo ou passivo da lide, entrentanto, somente com a qualidade de coisa julgada, seus efeitos tornam-se imutáveis.
5. O art. 103 do CDC tratou a matéria com mais precisão técnica ditando que a sentença faz coisa julgada "ultra partes" em se tratando de interesses coletivos, pois os efeitos da sentença atingem os outros membros da coletividade em questão, e não todo e qualquer membro da sociedade.

Bibliografia

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Costa, Célio Silva, A interpretação constitucional e os direitos e garantias fundamentais na constituição de 1988 - Rio de Janeiro, Liber Juris, 1992.

Cretella Júnior, José, Comentários à Constituição Brasileira de 1988 - vol. 2, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

Dinamarco, Cândido Rangel, Direito Processual Civil, São Paulo, 1975 - Editor José Bushatvky

Grinover, Ada Pellegrini, O Processo em Evolução, Rio de Janeiro - RJ - Forense Universitária, 1996

Mancuso, Rodolfo de Camargo, Interesses difusos: conceito e legitimação para agir - 2ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991

Medauar, Odete, Direito Administrativo Moderno - 1ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996

Mazzilli, Hugo Nigro, A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos - 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995.

Meirelles, Hely Lopes, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas Data" - 16ª edição atualizada por Arnoldo Wald, São Paulo, Malheiros Editores, 1995.

Savigny, Federico Carlo di, Sistema del Diritto Romano Attuale, Volume Ottavo, Torino Unione Tipografico - Editrice - 1898 - Traducione dall’ originale tedesco di Vittorio Scialoja.



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Copyright © 1998 Fernando Ribeiro Ramos
Última Atualização Feita em 27/02/1998
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