Apogeu da inquisição portuguesa e sua repercussão no Brasil
A acomodação, tão bem levada a efeito pelos judeus brasileiros na segunda metade do século XVII, não logrou transpor o umbral do século seguinte, quando, afinal, a Inquisição de Lisboa, cujas garras até então mal haviam conseguido arranhar a população judaica do Brasil, acabou estendendo sobre este país a sua implacável rede de perseguições.
Essa onda de terror que, com algumas intermitências, se desdobrou por longos 70 anos, com especial virulência nos períodos de 1707 a 1711 e 1729 a 1739, conferiu à primeira metade do século XVIII as características de época negra da história dos judeus no Brasil.
Várias razões, entre essenciais e subsidiárias, contribuiram para esses trágicos eventos.
Em primeiro lugar, a perseguição aos cristãos-novos em Portugal atingira então justamente o seu apogeu, assumindo ali a obra vandálica da Inquisição aspectos verdadeiramente pavorosos. "Despovoavam-se extensas zonas do país e a Europa contemplava atônita uma nação que se destruía à ordem de broncos frades". Não admira, pois, que tal fúria infrene acabasse também repercutindo nesta banda do oceano.
Por outro lado, os judeus brasileiros, graças ao seu ajustamento econômico e social, operado na segunda metade do século XVII, haviam voltado a constituir uma parcela das mais opulentas da colônia; havia, pois, bens a confiscar, e com facilidade!
E, se isso não bastasse, fôra designado bispo do Rio de Janeiro - D. Francisco de São Jerônimo, que exercera, em Évora, o cargo de qualificador do Santo Ofício, ali se distinguindo pela sua intolerância religiosa e pelo seu rancor contra a raça hebréia.
Tão furiosa passou a ser então a caça aos judeus brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro e na Paraíba, que, só entre 1707 e 1711, mais de 500 pessoas foram levadas prisioneiras para a Inquisição de Lisboa.
O pânico se fez geral, paralisando por completo o desenvolvimento das relações mercantis da colônia com a metrópole, e a esta causando tão sérios prejuízos que a coroa portuguesa afinal se viu forçada a proibir que prosseguisse o confisco dos engenhos de açúcar, na maioria pertencentes a indivíduos de origem judaica.
Sucedeu então uma relativa acalmia, que, entretanto, não chegou a durar 20 anos. Tendo neste interregno os judeus se refeito dos abalos anteriores e mesmo voltado a enriquecer graças ao incremento da exploração das minas de ouro e do comércio de diamantes, recomeçou a sanha dos inquisidores, atraídos pelas renascidas perspectivas de maciços confiscos.
A nova fase de perseguições, mais intensa durante o decênio 1729-1739, prosseguiu, praticamente até 1770, quando outras condições vieram extirpar, e para sempre, o cancro da inquisição, que tanto manchara a história de Portugal e tanto fizera decair esse grande império dos tempos manoelinos.
Até hoje não se sabe ao certo quantos judeus oriundos do Brasil caíram vítimas da Inquisição de Portugal.
Há quem avalie em apenas 400 o número dos judaizantes brasileiros processados, dos quais não mais de 18 teriam sofrido a pena capital; são cifras relativamente modestas, não perfazendo senão 1 a 2% do total de processos e condenações da Inquisição nos seus 230 anos de funcionamento em Portugal. Mas, tal estimativa parece longe de dar uma idéia exata da extensão que na verdade a tragédia assumiu, pois que, ainda hoje, existem nos arquivos da Torre de Tombo, em Lisboa, 40.000 processos da Inquisição, cujos mistérios aguardam o trabalho paciente dos que se disponham a investigá-los para revelar à história toda a sua hediondez.
Antônio José da Silva: "O Judeu"
Entre as vítimas brasileiras da Inquisição portuguesa, na fase da sua mais nefanda atuação, figura Antônio José da Silva, nascido no Rio de Janeiro, em 1705, e que, por consenso geral, é considerado descendente de judeus.
Aos oito anos de idade, transladou-se ele com seu pai para Lisboa, aonde acabava de ser enviada como prisioneira a sua mãe, acusada como fôra de judaísmo pelos agentes da Inquisição.
Em Portugal, freqüentou Antônio José colégio e universidade, sempre revelando excepcionais dotes de inteligência e invulgar pendor literário. Em poucos anos, seu espírito criador enriqueceu a literatura portuguesa de numerosas peças teatrais de singular valor, galgando ele os mais altos degraus da fama e da popularidade.
Como de suas peças, genialmente arquitetadas, com freqüência extravasasse um sarcasmo sem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo.
E ela conseguiu o seu intento, não obstante o prestígio imenso do poeta. Tentara a princípio intimidá-lo, confiscando-lhe os bens e esmagando-lhe os dedos - ato este praticado na igreja de São Domingos em 13 de outubro de 1726 - na esperança de que assim não mais viesse a manejar a sua pena mordaz. Vendo, porém, que com isso ainda mais haviam acirrado o seu ódio ao monstruoso tribunal, os inquisidores enredaram Antônio José da Silva numa complicada trama de denúncias e falsos testemunhos, entre os quais o de que ele ria do nome de Cristo, jejuava às segundas e quintas-feiras, vestia roupa limpa aos sábados, e rezava o Padre Nosso substituindo, no fim, o nome de Jesus pelo de Abraão e do Deus de Israel.
E assim, inapelavelmente condenado à pena capital em 11 de março de 1739, foi Antônio José da Silva - cognominado "O Judeu" - queimado, em 21 de outubro do mesmo ano, na praça pública, não tendo faltado sequer alguns requintes de crueldade: foram obrigadas a assistir ao ato - a sua mãe, septuagenária, sua mulher e sua filha de quatro anos.
Uma das maiores expressões da genialidade judaico-brasileira acabava de pagar com a preciosa vida o seu inconformismo com a bestialidade da Inquisição!
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Última alteração: 30 de julho de 1998 |
Marcelo Ghelman |
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