A EDIFICAÇÃO MODÉLICA DO PROFESSOR CIDADÃO: a imprensa (in)formando um discurso sobre ser docente

Maria Helena Camara Bastos

RESUMO:

Este texto reflete sobre alguns resultados da pesquisa - Imprensa Periódica e Pedagógica do Rio Grande do Sul: análise de discursos e práticas educativas. Enfoca a imprensa como dispositivo de orientação - intelectual e moral - do magistério, ou seja, de formação contínua de professores como autênticos cidadãos trabalhadores. Analisa a produção de uma retórica laudatória de idealização da docência, que não se traduz numa melhora da situação sócio-econômica dos professores.

Palavras-chave: Imprensa pedagógica
Formação de professores
Representação docente

Um dos dispositivos privilegiados para forjar o sujeito/cidadão é a impressa, portadora e produtora de significações. A partir da necessidade de informar sobre fatos, opiniões, acontecimentos, a imprensa procura engendrar uma mentalidade - uma certa maneira de ver - no seu destinatário, constituindo um público-leitor. Imbert, considera "a imprensa como um lugar estratégico de constituição do discurso; através dela é o social todo, inteiro, que fala, sendo o ponto de convergência de uma multiplicidade de falas. Dentro da esquematização do real, trabalho eminentemente formal, o discurso jornalístico informa sobre o mundo e sobre a maneira como se pode percebê-lo: informa e coloca em forma o real, introduz uma ordem no real, construindo o acontecimento, ao mesmo tempo, como produto do real ou, pelo menos, o reconstrói através dos efeitos do real"..

Pela prescrição de valores, normas e padrões de comportamento, a imprensa gera práticas concretas submetendo o leitor, sua consciência e conduta, ao mesmo tempo que controla o seu acesso ao conhecimento. Nesta função, reside o seu papel ideológico, pela veiculação de imagens, esterótipos, mitos e modelos, e porque constrói representações do social, difundindo visões de mundo. Como espelho do social e comércio da informação, permite ao pesquisador o contato com os modismos, com o curioso, o efêmero veiculado, ampliando a gama de análises da matéria jornalística.

Assim, a imprensa também é um instrumento privilegiado de pesquisa para a construção do conhecimento em História da Educação. A imprensa pedagógica - jornais, boletins, revistas, magazines- feita por professores para professores, feita para alunos por seus pares ou professores, feita pelo Estado ou por outras instituições - sindicatos, partidos políticos, associações de classe, Igreja - contém e oferece muitas perspectivas para a compreensão da História da Educação e do Ensino. Sua análise possibilita avaliar a política das organizações, as preocupações sociais, os antagonismos e filiações ideológicas, as práticas educativas.

O estudo do lugar da imprensa periódica da educação e do ensino no discurso social e das estratégias editoriais face aos fenômenos educacionais e sociais revela-se rico de informações ao pesquisador para o resgate do discurso pedagógico, das práticas educativas, do cotidiano escolar, do grau de submissão dos professores aos programas e instruções oficiais, da ideologia oficial e do corpo docente, da força de inovação e de continuidade que representa, das contradições do discurso.

Nessa perspectiva, Caspard considera que a imprensa pedagógica "constitui um meio indispensável para o conhecimento do que é o sistema de ensino, o que ele representa, por exemplo, no espaço onde se desenvolve e onde se localizam todos os sistemas, teorias e práticas educacionais, de origem tanto oficial quanto privada. (...) Entre as normas impostas pelo poder central e a prática cotidiana, em nível de classe, a leitura da imprensa pedagógica permite discernir o que se passa ou não, do centro até a periferia (ou do alto até embaixo), revelando, assim, as reticências ou os boicotes que opõem à instituição escolar as diretrizes que recebe. Inversamente, essa imprensa revela a força de inovação e de proposição que pode receber do sistema".

Ognier também refere-se à imprensa pedagógica como um corpus documental de vastas dimensões, constituindo um testemunho vivo dos métodos e concepções pedagógicas de uma época e da ideologia moral, política e social de um grupo profissional (...) sendo, assim, um excelente observatório, uma fotografia da ideologia que preside.

Nesta perspectiva, tenho privilegiado como fonte de pesquisa a imprensa de educação e ensino. O projeto de pesquisa A Imprensa Periódica Pedagógica do Rio Grande do Sul: análise de discursos e práticas educativas, busca resgatar a trajetória dos principais periódicos de educação e ensino do Estado, editados a partir de 1945: da produção ao consumo. Assim, dá continuidade ao estudo do periódico Revista do Ensino (1951-1992); analisa a Revista Educação e Realidade (1976-1995); analisa a representação da organização sindical do magistério rio-grandense na imprensa periódica: Correio do Povo e Zero Hora (1945-1995); e estuda a imprensa produzida pelo CPERS/Sindicato (1945-1995)

O estudo dessa produção possibilita "entrever os processos discursivos que atuam na perpetuação e cristalização de determinados sentidos em detrimento a outros", as representações da vida escolar veiculadas e os projetos de intervenção educacional nela articulados. Nesta perspectiva, constitui-se num significativo dispositivo de educação continuada do professor, de orientação e direção - intelectual e moral, e de conformação de suas práticas sociais e escolares, construindo um perfil do sujeito educador e/ou do professor ideal/idealizado pela sociedade.

Dessa forma, é um dispositivo privilegiado para a reflexão sobre o modo de produção do discurso sobre ser docente. Os professores pensam o mundo da maneira que falam sobre ele, testemunhando o universo de crenças que permeiam seu cotidiano, através de relações metafóricas com a conjuntura social e histórica. Para Hameline, o discurso pedagógico é o mais metafórico, o que leva perpetuação de uma tradição ( conservação) e uma lógica de moralização histórica - a idéia da boa consciência pedagógica. A preocupação combinada de selecionar os professores e de (in)formá-los segundo um certo modelo de bom professor vem se constituindo historicamente e convergindo para o delineamento da representação da docência.

A análise da história das representações inscritas nos textos ou produzidas pelos indivíduos, permite melhor compreender como se estabelecem e circulam os discursos de formação da identidade do professor. Isto é, a historicidade do processo discursivo que idealiza a figura do professor na representação da docência.

Para Chartier a "construção das identidades sociais resultam sempre de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição de aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si mesma". Nesta perspectiva, " a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, um instrumento que produz uma exigência interiorizada".

A análise dessa produção discursiva - imprensa da educação e do ensino - busca desvelar as relações que interligam o discurso pedagógico e o discurso ideológico. O professor de que nos fala não reflete ou explica o professor que realmente existiu ou existe: não são necessariamente figuras coincidentes. A imagem perpassada pelo discurso não espelha a realidade, mas assume a função de espelho no qual o professor deve buscar sua imagem. O discurso não representa o real, mas cria uma idéia do real. Há coisas que não são ditas, mas fazem parte das práticas sociais - discursivas ou não discursivas, que recortam e configuram o sujeito. Assim, a imagem social do professor é um compromisso - ou o resultado de um conflito - entre a tradição e a situação presente. Ou seja, as atitudes e representações forjadas no passado interferem na definição e redefinição da profissão docente e de sua conscientização de classe e de cidadania.

Um discurso recorrente na imprensa sobre ser docente é um dever ser, ou seja, admite exclusivamente uma atitude doadora - que preserva, preocupa-se, assume responsabilidades, negando uma atitude desejante - que pede, reivindica. Nesta perspectiva, predomina o "exercício da ingenuidade, da idealização, do idealismo dependente e impotente, que procura emascular os fortes, os desejantes, os capazes. Seria algo aproximado do falso self, para designar a personalidade submissa, passiva e dependente, não criativa, presa a um papel social que a obriga a reproduzir um comportamento pré-traçado". Assim, a modelagem do professor conduz à repressão do sujeito, de modo que para melhor "suportar os sofrimentos que lhes impõe a sua repressão, fazem tudo para transformá-lo num valor e tratam de vendê-lo aos demais, na esperança de que quanto mais reprimido estiver, menos motivos têem para invejar a liberdade".

O professor, enquanto autoridade moral, é investido de dignidade e respeito, imagens às quais deverá se adequar, sob o controle dos seus pares. Temos então o exercício da cidadania - que deveria resultar, ao mesmo tempo, numa atitude reivindicatória e numa ofertante, avessa à alienação e à submissão - restrita à condição da assim chamada alienação política, constituída de desesperança ( quando se trata da classe dominada) ou de desinteresse ( quando o sujeito é da classe dominante). Assim, o discurso sobre e de ser docente resulta, em parte, na reificação do sujeito pela mistificação do conhecimento e pela mitificação daqueles que conhecem, produzindo uma maneira de pensar generalizável que aliena o sujeito de si e de seus valores próprios, intransferíveis, ao mesmo tempo que a confirma e a legitima pela perpetuação do próprio discurso.


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