SOLIDARIEDADE, FORMAÇÃO DO CIDADÃO E SEUS AGENTES SOCIAIS

Julieta Beatriz Ramos Desaulniers

RESUMO:

Procura-se destacar o papel do campo religioso na criação de meios e práticas de cunho pedagógico voltados à formação do cidadão de segmentos populares, que habitam Porto Alegre. Tal empreendimento tem sido sustentado pelos representantes da Igreja Católica, desde o final do século XIX, através de estratégias desencadeadas para mobilizar os interesses de inúmeros agentes dos demais campos sociais. O impresso tem constituído um meio importante na obtenção de solidariedade em torno de tal propósito.

PALAVRAS-CHAVE: Solidariedade, formação do cidadão, impresso

ABSTRACT:

One seeks to highlight the role of the religious field in the creation of means and practices of pedagogical character that aim toward the formation of lower class citizens who live in Porto Alegre. Such an enterprise has been supported by the representatives of the Catholic Church since the end of the 19th century, through strategies unleashed in order to mobilize the interests of countless agents from the other social fields. Printed matter has constituted an important medium for obtaining solidarity toward such purpose.

KEYWORDS: Solidarity, formation of citizens, printed matter

Os representantes do campo religioso, enquanto uma das esferas sociais preocupadas com a formação do cidadão, desencadearam inúmeras ações de cunho pedagógico, em Porto Alegre, a partir do século XIX. Suas iniciativas visavam "produzir um homem novo", através de um processo amplo, capaz de atingir o formando em todas suas dimensões e, assim, instaurar uma formação resistente às intempéries. Tais características são acentuadas pelas relações de disputa com os demais campos sociais, em especial com o campo do poder, evidenciando que esse processo é portador de uma forma inconfundível de construção de cidadãos e da própria cidadania, ao ser comparado com a formação proposta por outros agentes, instituições ou organizações sociais.

Inúmeras congregações religiosas que se instalaram no Rio Grande do Sul, em especial em Porto Alegre, desde o final do século XIX, fundaram escolas em regime de internato fechado para abrigarem meninos órfãos ou carentes, com o intuito de torná-los "úteis a si e à Pátria". Nessa perspectiva, formar cidadãos e construir cidadania implicava a transmissão de saberes morais, éticos e técnicos, para se garantir uma adequada inserção desses meninos no mercado de trabalho. E foi assim que, por muitas décadas, os Liceus de Artes e Ofício prepararam um número significativo dos trabalhadores das tipografias, mecânicas e indústrias de Porto Alegre e de outras localidades do estado. Após a década de 60, a maioria das escolas entram em crise por diversas razões, retomando o crescimento, de maneira bastante gradual, a partir dos anos 90.

As considerações apresentadas a seguir referem-se à trajetória de várias escolas de ofício católicas, desde a fundação até a década de 70, procurando salientar especialmente como os representantes do campo religioso têm garantido o desenvolvimento das bases materiais e de gestão das entidade ques dirigem, já que elas foram sempre indispensáveis à formação de segmentos populares atendidos por instituições, por apresentarem condições sócio-econômicas bastante pauperizadas.

2. A DISPUTA DE INTERESSES PELA FORMAÇÃO DO CIDADÃO

Os impasses gerados pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, desencadeados inicialmente no contexto europeu, provocaram rupturas no campo religioso, dando origem ao novo discurso da Igreja Católica, formulado na Encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891. Em outras palavras, as disputas entre o campo do poder e o campo religioso determinam algumas tomadas de posição da Igreja, que lhe permitem garantir e mesmo ampliar suas esferas de ação, dispondo assim de novos elementos para exercer uma de suas principais funções sociais: justificar uma determinada estrutura social e as diferentes posições dos agentes, atendendo, ao mesmo tempo, a seu interesse particular - o interesse religioso.

Com a redefinição do "espaço de possibilidades" do campo religioso, ampliaram-se as chances de a Igreja obter apoios e de estabelecer certas cumplicidades com os demais campos, mesmo sem eliminar as tensões e conflitos entre ela e, por exemplo, o Estado, já que tais poderes apenas exercem uma complementaridade na divisão do trabalho de dominação.

No Brasil, nesse mesmo período, verifica-se o empenho de vários setores sociais em promover a formação do cidadão trabalhador. Esse movimento expandiu-se, efetivamente, após o Estado Novo, com a consolidação do capitalismo no país, que contou, desde o início, com a atuação efetiva da Igreja Católica e de seus representantes, igualmente engajados nos interesses mais universais dessa Instituição milenar, que privilegiavam, entre outros empreendimentos, a criação de meios e práticas de cunho pedagógico. Desse modo, tais representantes tinham a expectativa de se colocar no centro, em relação aos outros poderes, além de abrir espaços que lhe permitissem atribuir a si o direito de impor certas exigências a esses mesmos poderes.

Já em meados do século XIX, Porto Alegre ressentia-se dos problemas sociais advindos do processo de industrialização. Algumas questões de ordem política também contribuíram para agravar as dificuldades sócio-econômicas de parte da população da capital do Estado do Rio Grande do Sul, que passou a depender cada vez mais da "boa vontade" de seus vários poderes instituídos.

As iniciativas da Igreja Católica, voltadas ao atendimento dessa situação constituem, possivelmente, a gênese de um movimento que se intensifica no interior desse mesmo campo, no final desee século. Registra-se, em 1864, a implementação de escolas de ofício católicas, que se antecipa ao acirramento dos problemas sociais decorrentes da industrialização, instaurando uma forma educativa composta de saberes associados às exigências ao novo perfil para o habitante do espaço urbano.

Somente em meados da primeira metade do século XX, desenvolveram-se ações e iniciativas voltadas a segmentos populares por agentes de outros campos sociais, com propósitos similares às obras dirigidas por representantes do campo religioso, que constitui a principal referência para tais processos de formação, visto a considerável experiência que acumulada por mais de meio século de atuação na capital gaúcha, formando cidadãos trabalhadores em moldes rigorosamente institucionalizados. Essa ampliação de formas voltadas à formação do cidadão, em Porto Alegre/RS, tende a intensificar as disputas em torno de tal tipo de interesse, entre os inúmeros agentes sociais envolvidos nesses processos.

Nessa perspectiva, verifica-se que a Igreja passou a interferir nas questões sociais ligadas à produção do cidadão, através do significativo número de escolas fundadas por seus representantes, baseando-se cada vez mais em ações concretas que oferecessem maior consistência ao seu discurso, assegurando assim as bases materiais e de gestão, imprescindíveis ao funcionamento das obras que dirigiam.

Dentre as principais iniciativas de cunho pedagógico instauradas por esses agentes sociais ligados à Igreja Católica, em Porto Alegre - capital do Estado do Rio Grande do Sul -, destacam-se:

* 1864 - Colégio Santa Tereza, , para meninas órfãs;

* 1881 - Asilo da Mendicidade, fundado pelo Pe. Joaquim Cacique de Barros, para mendigos e decrépitos;

* 1892 - a Sociedade Humanitária Pe. Cacique é fundada pelo próprio Padre, para congregar as obras por ele já fundadas ou que fossem instituídas a partir dessa data, como foi o caso do Asilo da Mendicidade, inaugurodo somente em 1898, assim como o Asilo São Joaquim, que teve a sua construção iniciada na virada do século, mas concluído somente em 1932;

* 1895 - Pia União do Pão dos Pobres de Santo Antônio, fundada em 1895 e dirigida pelos irmãos lassalistas de 1916 até hoje;

* 1921 - Escola São José, fundada pelos irmãos maristas (e fechada na década de sessenta)

* 1943 - Casa do Pequeno Operário, criada pelos padres salesianos;

* 1947 - Educandário São Luiz Guanella, ligada aos padres guanelianos;

* 1954 - Escola São José do Murialdo, fundada pelos padres murialdinos;

* 1962 - Centro Social Pe. Calábria, dirigido pelos padres da Congregação Calábria.

2. FORMAÇÃO, IMPRESSO E SOLIDARIEDADE

Iniciativas privadas que não visam ao lucro constituem, na atualidade, uma importante alternativa para se enfrentar a debilitação do Estado do Bem Estar Social, além de atender a outras demandas postas pela globalização da economia, como a criação de novos laços de solidariedade social, até então polarizados pelo mundo do trabalho, ao mesmo tempo que podem intensificar o exercício da cidadania.

Esse não é um empreendimento recente. Trata-se de uma prática secular que vem sendo desenvolvida por vários setores da sociedade, como é o caso de escolas de ofício católicas, voltadas à formação de futuros cidadãos e trabalhadores que, através de inúmeras estratégias, de os seus agentes sociais responsáveis procura despertar a solidariedade de representantes dos mais variados setores da sociedade em torno de interesses comuns, visando a sustentação das bases materiais e de gestão de tais empreendimentos.

Nesse sentido, todo impresso produzido e editado pela gráfica de cada escola de ofício constituiu um excelente veículo de comunicação com a comunidade em geral, especialmente com os seus colaboradores efetivos ou com potencial para sê-lo, para atenderem às insistentes chamadas de apoio feitas através de tais meios - os impressos. Vários assuntos relacionados às escolas são tratados nesse veículo, mas aqueles recorrentes referiam-se: - às principais atividades já desenvolvidas ou projetadas em prol da formação de futuros trabalhadores; aos nomes das pessoas da comunidade porto-alegrense e arredores que patrocinavam esses empreendimentos; - aos resultados atingidos graças à solidariedade de várias pessoas da comunidade; - à necessidade de mais pessoas colaborarem, para a superação das tantas dificuldades que tais instituições tinham sempre a enfrentar.

Assim, via impresso, cada uma das obras educativas aumentou seu poder na medida em que fortalecia suas estruturas e, ao mesmo tempo, ampliava sua capacidade de estruturação. O que ocorreu , na realidade, foi uma transformação do capital religioso em outros capitais, obtidos junto aos demais campos, de modo a operacionalizar os interesses do campo religioso, assegurando-lhe sua expansão e, conseqüentemente, suas iniciativas.

As referências nos impressos de tais escolas sobre benfeitores, padroeiros, imprensa local e outros meios de divulgação utilizados por tais escolas constituem provas contundentes de que esse veículo, ao angariar solidariedades indispensáveis à formação de segmentos populares, significando uma forma de sustentação bastante decisiva à manutenção e mesmo ampliação das bases materiais e de gestão, garantiu a continuidade e desenvolvimento de tais processos.

Esse conjunto de estratégias e mecanismos, utilizados pelos administradores das escolas de ofício católicas - representantes da Igreja católica -, revelam o processo dinâmico de inserção das mesmas na cidade de Porto Alegre, ocorrendo através da estruturação de inúmeras atividades ritmadas e repetitivas. Estas se sustentavam num sistema de crenças religiosas, que serviu para produzir o interesse em torno de tais obras, garantindo-lhes os benefícios econômicos de que precisavam para consolidar a formação que se propunham instaurar a junto aos segmentos populares.

Mas, com a deterioração do capital religioso - que passa a ser desvalorizado por diferentes segmentos sociais - várias dessas escolas, durante a década de 60, começam a viver os primeiros sinais de declínio. Como bem alerta Bourdieu, a trajetória de cada campo está inscrita, a cada momento, em sua própria estrutura e nas relações que estabelece com os demais campos do espaço social.

Após a década de 90, verifica-se uma revitalização de algumas dessas escolas e, inclusive, a criação de novas escolas por outras congregações religiosas, que passam a se associar às novas formas de parcerias com agentes sociais que se manifestam interessados na formação de segmentos populares nas décadas mais recentes, articulados às exigências impostas pela globalização da economia.

A mensuração do impacto que esse fenômeno está provocando junto às escolas de ofício católicas constitui, no momento, um dos principais objetos das investigações em andamento. Parte do pressuposto de que a revitalização das relações entre o campo religioso com os demais campos do espaço social, após os anos noventa, sustenta-se em novas formas de parcerias entre os seus agentes, as quais vêm sendo aglutinadas em torno do Terceiro Setor. O impresso contribui para o fortalecimento de tais parcerias, estabelecidas em outros moldes, ao divulgar as estratégias e ações que tendem a se situar também no mundo do não-trabalho, procurando assim construir laços de solidariedade social que não dependam direta e exclusivamente do trabalho, já que esta é uma atividade social que vem perdendo a centralidade ocupada nos últimos séculos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização habilidosa de impressos por parte de representantes do campo religioso que atuavam nas escolas católicas investigadas, até 1970, demonstra que esse é um meio importante de obtenção de solidariedade aos empreendimentos voltados à formação de segmentos populares. Assim, ao divulgarem regularmente as ações e estratégias desencadeadas em tais processos, os seus responsáveis exerceram uma ação simbólica junto ao campo do poder e à sociedade civil, através da manutenção renovada de um sistema de crenças, que acabou gerando um habitus, fundado na responsabilidade participativa frente aos órfãos pobres. E, desse modo, agentes de vários campos foram envolvidos em favor da manutenção infra-estrutural dessas obras educativas.

Em outros termos, os representantes dos campos do poder encontravam no próprio discurso religioso, tão bem veiculado nos impressos, um respaldo para suas ações, e a Igreja, por sua vez, desempenhava, através dessas obras, uma de suas funções - a de justificar o status quo. A polarização de muitos interesses em torno de tais iniciativas dirigidas por representantes do campo religioso, possibilitou a construção de uma imagem consagrada e reconhecida, a ponto de tais escolas constituírem porta-vozes dos órfãos abandonados.

Desse modo, a Igreja Católica e seus representantes instauram através desse processo uma forma pedagógica de formar indivíduos cidadãos, que rompe com a tradicional assistência sócio-religiosa prestada aos pobres até àquela época - final do século XIX, início do século XX.

A partir dos anos 90, há indícios de que a crise vivida pelas escolas católicas de Porto Alegre, voltadas à formação de segmentos populares, esteja sendo superada através de novas formas de parceria que vêm se estabelecendo entre representantes do campo religioso e do campo do poder (aglutinada pelo chamado ‘terceiro setor’).