PRÁTICAS DE FORMAÇÃO DO TRABALHADOR - resultados e indicadores
Inês Amaro da Silva
Resumo:
O avanço científico e tecnológico e as transformações econômicas, políticas e sociais em curso colocam em um novo lugar a questão do trabalho e da formação dos trabalhadores, que passa a referir-se ao desenvolvimento humano global e abrangente, em níveis intelectuais, emocionais, sociais, políticos e comportamentais. As novas realidades demandam explicitar processos, relações e práticas de formação de forma a assinalar algumas rupturas necessárias e construir dimensões e indicadores que apontem caminhos para modelos sócio-pedagógicos voltados à instauração da competência e à ampliação da cidadania.
Palavras-chave: práticas de formação, resultados, indicadores.
Abstract:
The ongoing scientific and technological advance, as well as the economical, political and social transformation locates the issue of work and the training of workers in a new place. The issue begins to refer to the global and unabridged human development in the intellectual, emotional, social, political and behavioral levels. The new reality demands that one explain processes, relations and practices of formation, in order to signal some necessary ruptures and to build dimensions and indicators that will show ways to reach sociopedagogical models focused on the instauration of competence and on the broadening of citizenship.
Key-words: practices of formation, result,indicators.
Introdução
Em um mundo competitivo, plural, excludente e contraditório, marcado pela crescente necessidade de mobilizar a totalidade das capacidades , aptidões e habilidades humanas para desenvolver aprendizagem, conhecimento, informação e trabalho, os novos modelos de formação precisam construir formas de articular as demandas dadas pelo mundo produtivo, expressas na categoria competência, com as demandas sociais de fortalecimento e ampliação da cidadania, pois as condições materiais em que as pessoas vivem também formam ou deformam, humanizam ou desumanizam as relações sociais.
Este artigo apresenta, sinteticamente, alguns resultados da investigação "Competência e Cidadania: uma articulação possível?" onde procurou-se captar como o SESI-RS tem contribuído para a formação da competência e da da cidadania junto aos trabalhadores, no período de 1990 a 1996, através de práticas voltadas ao atendimento de carências e necessidades sociais constituídas nas relações sociais de trabalho. Embora a formação não apareça no discurso institucional, é sobre os aspectos sócio-emocionais e comportamentais do trabalhador que essas práticas incidem - aspectos esses hoje fundamentais para o capital - instaurando hábitos, atitudes e comportamentos sintonizados às demandas dadas nas relações de disputa entre os agentes dos campos político, econômico e social a cada momento histórico.
Os pressupostos epistemológicos da pesquisa implicaram articular teoria-método-dados de forma dinâmica e interdependente, de modo que as dimensões e os indicadores da fomação para a competência e para a cidadania, construídos a priori, foram relativizados ou fortalecidos no movimento contínuo de confronto entre racional e real. Os aspectos apresentados expressam alguns resultados e indicadores desse processo de instauração de práticas que tendam a formar competência e a ampliar o exercício da cidadania.
Instituição e agentes: propostas e práticas de formação
As relações de disputa entre os agentes sociais na dinâmica estrutural do campo do poder e suas expressões no processo institucional conferem um caráter de descontinuidade nas ações de formação desencadeadas pelo SESI/RS. A partir de 1989/90 essa descontinuidade se manifesta por uma nova orientação na instituição, traduzida por políticas, diretrizes e estratégias reveladoras de um discurso de modernização, qualidade, produtividade e competitividade e pela implantação ou reordenamento de programas e atividades que tem o potencial de instaurar competência e cidadania junto aos trabalhadores.
As atividades pesquisadas - Grupos de Trabalhadores, Educação de Adultos, Prevenção ao Uso de Drogas no Trabalho, Educação para a Saúde e Cursos de CIPA - possuem conteúdo formativo expresso na preocupação em incorporar as demandas do mundo do trabalho e capacitar o trabalhador como cidadão, nos diferentes papéis sociais que desempenha. Entretanto, é a realização dessas propostas pelos técnicos da instituição (assistentes sociais, médicos do trabalho, técnicos em segurança do trabalho e pedagoga), que dá "forma" às práticas de formação, a seguir analisadas.
Os agentes formadores mobilizam uma rica diversidade de saberes no perocesso de formação. São saberes formais e informais, advindos da formação profissional de cada um, de diferentes disciplinas científicas, das ações, normas e discursos institucionais, bem como da experiência profissional cotidiana e da totalidade das suas experiências no mundo social, visão de mundo e valores adquiridos pela participação em diferentes contextos formadores. É na múltipla articulação desses saberes e na relação estabelecida com trabalhadores que se constitui a formação.
Por outro lado, as práticas em equipes interdisciplinares e interinstitucionais, ainda isoladas e incipientes, revelam condicionantes intra e interpessoais, estruturais e da cultura institucional que são dificultadores para uma abordagem coletiva e cooperativa das práticas sociais.
Quanto à articulação entre as dimensões intelectual, emocional e do agir no processo de formação, são utilizadas estratégias que caracterizam criatividade e versatilidade metodológica, embora em graus diferentes em cada atividade. Os métodos, técnicas, recursos audiovisuais e lúdico-pedagógicos, na forma como são trabalhados, viabilizam integrar idéias, sentimentos e atitudes.
Ainda, os métodos e técnicas utilizados privilegiam a participação dos formandos no desenvolvimento das práticas e a construção de relações democráticas entre os agentes. Se "participar" muitas vezes limita-se a "fazer perguntas", tendo seu conteúdo sócio-político pouco trabalhado, outras vezes pode chegar a estimular um novo comportamento como trabalhador e como cidadão, pela autocrítica sobre a própria não-participação no cotidiano.
Sobre essa questào, os técnicos apontam que também os trabalhadores têm resistência para expressar saberes, percepções e emoções, em decorrência tanto da desconfiança ou da crítica em relação às propostas, quanto de uma vivência político-social e cultural marcada por relações sociais paternalistas e autoritárias e por uma percepção dissociada e fragmentada do homem no processo produtivo e na vida social. Às faltas de permissão externa associam-se as faltas de permissão interna; logo, trabalhar as dimensões afetivas junto com as dimensões cognitivas e desenvolver a participação crítica requer ampliar a subjetividade e construir novas relações sociais.
Nas relações de disputa entre agentes formadores e formandos movimenta-se o processo democrático e flexibilizam-se em alguma medida as relações de saber-poder. A relação democrática com uma figura de autoridade, representada no agente formador, contribui para que o trabalhador experimente novas relações também no trabalho, na família ou na comunidade.
As dimensões e indicadores da competência e da cidadania aparecem de diferentes formas e com freqüências e intensidades variadas, caracterizando uma heterogeneidade decorrente das diferentes naturezas de cada atividade investigada , das áreas do saber técnico-científico e do habitus dos agentes.
Essas diferenças enriquecem e dinamizam as práticas, bem como colocam o desafio da construção interdisciplinar, pois a heterogeneidade revela também a falta de uma visão sócio-pedagógica e de uma orientação valorativa e teórico-metodológica compartilhada entre os agentes nas práticas de formação.
Resultados das práticas de formação para os trabalhadores
O fenômeno social da formação se concretiza na articulação entre as estruturas objetivas que o compõe e as estruturas subjetivas, necessidades, desejos e motivações dos agentes, representados em formas de pensar, sentir e agir produzidas nesta relação interioridade/exterioridade. Os resultados das práticas de formação podem ser visualizados, assim, a partir dos saberes, capacidades e habilidades aprendidos e pelas mudanças na vida pessoal e profissional dos trabalhadores.
Os saberes apreendidos abrangem aspectos sociais, políticos e comunicativos, integrando a aprendizagem a nível da consciência (informação), da afetividade (sensibilização) e da atividade (ação) e ampliando capacidades e habilidades para enfrentar e resolver situações-problema vividas no cotidiano, através de mudanças atitudinais e comportamentais.
Tais mudanças ocorrem significativamente em termos da competência interpessoal - flexibilidade, confiança, reconhecimento e aceitação de diferenças, melhor conhecimento de si próprio, melhor interação com o outro - e da comunicação, pelo rompimento de distâncias e barreiras antes vistas como quase intransponíveis - da ruptura com um padrão de comportamento baseado no medo de expor-se e de não ser aceito à busca de melhor qualidade na comunicação estabelecida com os outros - instâncias essas que são fundamentais para a competência e para a cidadania, pois a expressão é uma condição para qualificar a participação social.
A reflexão sobre situações que afetam o cotidiano de vida e trabalho e o desenvolvimento de capacidades e habilidades possibilitam que o trabalhador se comprometa com a gestão de sua vida profissional, pessoal, familiar e comunitária, buscando garantir direitos, realizar necessidades e desejos e viver com mais qualidade. As práticas contribuem para ampliar as formas de ler a realidade, acessar o mundo e com ele relacionar-se, ter uma visão crítica das relações sociais e da responsabilidade na proteção da saúde e segurança individual e coletiva, idealizar projetos profissionais e assumir novos posicionamentos enquanto trabalhador e enquanto cidadão.
A participação nas atividades repercute também positivamente na auto-estima dos trabalhadores face ao "saber mais", confiar nas suas potencialidades e capacidades e sentir-se útil e importante. Os sentimentos positivos sobre si mesmo motivam a novas experiências no contexto imediato onde interage com outros agentes sociais, de seu grupo ou de outros grupos, por exemplo nas relações de trabalho e de autoridade dentro da empresa produtiva ou nas relações com instituições sociais com as quais entra em contato no cotidiano, ampliando também o acesso às mesmas. Especialmente quanto às relações de trabalho, algumas rupturas nos padrões de benevolência e autoritarismo em direção a relações participativas e democráticas permitem falar de uma incipiente politização do espaço da produção, no âmbito investigado.
Uma vez experimentada a ruptura, novos comportamentos e atitudes tendem a reforçar a segurança para ousar, criar e ter iniciativas e o sentimento de "ter direito a ter direitos" como trabalhador e como cidadão, estimulando a participação crítica e criativa na realidade. Essa articulação entre saberes, capacidades e habilidades instaurados permite, no cotidiano, uma práxis mais competente. Considerando que é na vida cotidiana, nos espaços da empresa, da casa, da comunidade que se dão as relações sociais, as pequenas mudanças nessas relações e ações cotidianas contribuem para a construção de uma nova intersubjetividade e de uma relação entre ser competente como trabalhador e cidadão.
As práticas de formação, ao mobilizarem diferentes dimensões, aptidões e saberes dos trabalhadores, podem facilitar a descoberta e a colocação em ato de outras alternativas de inserção social e de trabalho que, do contrário, talvez sequer pudessem cogitar. Ou seja, as práticas ao mesmo tempo em que desenvolvem competência, ampliam e fortalecem o exercício cotidiano da cidadania e vice-versa.
Formar para competência e para cidadania - alguns indicadores
As práticas de formação pesquisadas tem a potencialidade de obter mais resultados na formação do trabalhador-cidadão, dentro das atuais exigências do mundo do trabalho e do mundo social como um todo, à medida que contemplarem sistematicamente as dimensões e indicadores investigados e que fortalecerem a construção de modelos sócio-pedagógicos de formação. Ainda que essas dimensòes e indicadores não dêem conta da totalidade dos elementos envolvidos na dinâmica das ações formativas, traduzem aspectos importantes para o desenvolvimento sócio-emocional, político e comportamental, com vistas à instaurar competência e cidadania São eles:
Instaurar práticas de formação que implementem essas dimensões e indicadores significa construir modelos sócio-pedagógicos pautados em novas relações sociais e trabalhar processos de mudança psicossociais, estruturais e culturais, a nível intra e interpessoal, grupal e institucional. É na articulaçào entre esses processos de mudança que vão constituindo-se as organizações que aprendem e as pessoas capazes de aprender a aprender, cenário e agentes da sociedade do conhecimento e da informação.
A complexidade dos movimentos do real permite variadas leituras e a expressão de múltiplos vieses, de forma que investigar cientificamente os fenômenos sociais é sempre um processo de aproximação para captar e revelar relações e vislumbrar tendências que ofereçam caminhos a percorrer para fazer avançar a história. Esse foi o objetivo que norteou a revelação das práticas de formação voltadas à competência e à cidadania desencadeadas pelo SESI/RS.
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ANEXO
Quadro resumido de operacionalização das categorias centrais
Categoria/Conceito |
Dimensões |
Indicadores |
Formação para a Competência: ações que visam desenvolver a capacidade de articular de modo eficaz uma diversidade e complexidade de saberes na ação, expressa em ser capaz de identificar e resolver problemas nas situações de vida e trabalho. Envolve uma diversidade de novas habilidades, atitudes e comportamentos superando o "saber-fazer" para a constituição do "saber-ser" ompetente, que é mensurado a partir de resultados na ação. | 1.Interdisciplinaridade 2.Articulação teoria-prática e cognição-afeto 3.Relações Democráticas entre os agentes sociais 4.Diversificação do aporte de saberes usados no processo e aprendidos pelos formandos. 5.Avaliação por resultados |
1. saberes disciplinares e de
outras formas de apreensão do real e atuação interdisciplinar e interinstitucional 2. uso de conhecimentos teóricos com situações práticas, vivências e experiências , razão, e emoção. 3. trabalho em grupo, participação no planejamento e desenvolvimento das atividades 4.saberes disciplinares, institucionais, da experiência, fteórico-práticos, formais e informais, sociais, comportamentais e comunicativos 5..competência interpessoal, criatividade; crítica ; iniciativa ; liderança ; trabalho em equipe; participação e gestão e impacto em hábitos, atitudes e comportamentos do trabalhador |
Formação para a cidadania: ações de capacitação para gestão do cotidiano de forma crítica, criativa e eficaz, a nível individual e coletivo, pelo desenvolvimento intra e interpessoal, educativo e cultural e pela participação na produção e no acesso aos bens e serviços e na gestão social, numa perspectiva de garantir direitos, ampliar alternativas e construir novas relações sociais. | 1 - Diversificação do aporte
de saberes no processo e de saberes aprendidos 2- Articulação entre teoria e prática e entre cognição e afeto 3 - Abordagem e práticas interdisciplinares 4 - Participação |
1. saberes sociais,políticos,
comportamentais e comunicativos, percepção crítica e global da realidade e capacidades
de comunicação, negociação,iniciativa e respeito às diferenças. 2. abrangência do sentir, pensar e agir, acesso à informação e reflexão sobre questões cotidianas capacitação para a ação e desenvolvimento da auto-confiança e da auto-estima 3. trabalho interdisciplinar, e/ou interisntitucional. 4. participação dos trabalhadores na gestão institucional e relações sociais de saber-poder participativas, respeito, horizontalidade, construção de aprendizagem compartilhada |