O DIREITO DE CIDADANIA - UMA FACA DE DOIS GUMES

Hans-Georg Flickinger

Resumo:

O debate atual em torno da luta pelo direito de cidadania pouco dá-se conta da lógica abstraidora que caracteriza o sistema do Direito liberal, ao qual se integra. Usando como meio de inclusão social das camadas desfavorecidas, esta luta vê-se encadeada aos trilhos do procedimento legal. Ainda que possibilite avanços no que tange ao reconhecimento de novas demandas sociais, não consegue garantir sua concretização material. É na complementaridade entre a luta pelo direito de cidadania e aquela dos movimentos sociais que, na sociedade liberal, revela-se a insuficiência dos procedimentos meramente legais.

Palavras-chave: direito de cidadania, direito liberal e movimentos sociais.

Abstract:

The debate concerning the struggle for civil rights seldom counts with the logic o abstraction that caracterizes the system of liberal Right, to which it belongs. Used as a mean for social inclusion of disfavored classes, this struggle is tight to legal procedure. Even making possible the recognition of new social demands, it can't garanty itself his material realization. The complementarity between the struggle for civil rights and the claims of social movements in liberal society demonstrates the deficiency of mere legal procedure.

Key words: civil rights, liberal Right and social moviments.

Considerando-se os caminhos abertos pelo sistema do Direito liberal, para dar chances de participar nos processos de decisões politico-sociais dentro dos trilhos da legalidade vigente, o debate em torno da necessidade de ampliar os direitos de cidadania vê-se marcado por duas vertentes principais. Há, por um lado, quem aposte cegamente nos efeitos positivos da luta pelo espaço disponível para o exercício da cidadania plena. Esses acreditam na possibilidade de assim promover a política abrangente de inclusão social de grupos sociais desfavorecidos. Por outro lado, outros há que não hesitam em denunciar tais caminhos de legalidade do agir (e o direito de cidadania deles faz parte importante) como manobras enganadoras que levariam a ilusões vazias. Esses alegam que o Direito liberal, desde sempre, teria compactuado, devido à própria racionalidade que lhe é inerente, com os interesses predominantes da sociedade capitalista, sobretudo na linha de sua concepção neoliberal. Quem se ocupar mais de perto com esta questão, encontrará certa dificuldade de dar razão exclusiva a uma ou outra dessas convicções.

Sendo assim, não é possível evitar a suspeita de que o debate tenha surgido exatamente devido a uma ambigüidade inerente ao próprio problema em questão. Em nosso caso, desconfia-se da esperança, talvez enganadora, de encontrar no direito de cidadania o meio por excelência para a articulação e o reconhecimento daquelas demandas sociais que, por serem tradicionalmente negligenciadas ou até mesmo reprimidas, deveriam através deles entrar em legítima concorrência com as dos demais grupos de interesse. E óbvio que a moderna sociedade burguesa não se funda em uma estrutura homogênea de sua população. Muito pelo contrário, sua fragmentação social dificulta sobremaneira a realização abrangente da chance de dar voz e peso a quem não esteja na crista da onda, ou seja, numa situação social favorável. Recorre-se, então, ao direito de cidadania para garantir a participação daqueles que se decidem a projetar suas demandas mais prementes no jogo dos interesses sociais. No entanto, a experiência vem demonstrando que este caminho raras vezes leva aos resultados visados, deixando rastros de decepção, devido ao fato de muitos impulsos legítimos verem-se dissolvidos ao longo do manejo legal, que os canaliza. Aí, nasce o fenômeno conhecido como perda da lealdade política.

Frente à difícil avaliação do problema do direito de cidadania, graças ao seu vínculo intímo com a lógica do Direito liberal, será necessário enfrentar, também, o perigo daí provindo, caraterizável como a identificação da legitimidade dos conteúdos materiais com a legalidade do procedimento. Legalidade e legitimidade sofrem, portanto, uma mútua determinação. Por isso, o percurso de minha argumentação dividir-se-á em três passos. No primeiro, tentarei desvendar a ambigüidade implícita ao sistema do Direito liberal no que tange à sua interconexão com os diferentes interesses materiais que se articulam na sociedade, para abordar, em um segundo passo, o efeito dessa lógica ambigüa do direito no caso do direito de cidadania que tem de se submeter à racionalidade deste mesmo sistema do direito. Finalmente, quero desvendar alguns aspectos daí provindos que me parecem caraterizar a interconexão entre a luta pelos direitos de cidadania e os movimentos sociais, principais impulsionadores de mudanças sociais de peso.

0 Estado de Direito como horizonte do direito de cidadania

Falar dos direitos de cidadania faz sentido unicamente num ambiente sócio-cultural marcado por certa estabilidade de estruturas implantadas e garantidas pelo sistema do direito, o qual, por sua vez, é expressão da distribuição calculável de deveres e direitos, através dos quais o agir dos indivíduos encontra sua base de legitimidade. Em vez de depender de atos unilateriais de um soberano, cuja onipotência não sofre restriccões institucionais, a moderna sociedade burguesa criou, com seu sistema constitucional, um modo de síntese social diferente, visando atingir dois objetivos preminentes. Em primeiro lugar, a garantia da liberdade individual de todos deveria realizar-se pela atribuição de direitos fundamentais aos membros da sociedade, a fim de que estes possam defender-se contra as intromissões autoritárias do Estado. Assim, os interesses individuais podem fazer-se valer com apoio nas regras legais do jogo de interesses. Simultaneamente, ao mesmo conjunto de regras caberia a função de desenhar os caminhos pelos quais cada um escolheria sua maneira de participar ou não na vida em comunidade, tanto em nível social, quanto político. A identificação das pessoas com o bem comum, representado, por sua vez, pela organização ético-política, dá-se pela coincidência de deveres e direitos, mutuamente delimitadores. Quanto à relação do indivíduo com sua comunidade, o Direito liberal contempla o homem "com deveres na medida em que tem direitos, e direitos na medida em que tem deveres". Essa mútua determinação expressa apenas a dupla tarefa do Direito liberal, a ser levada em conta ao falarmos do Estado liberal de Direito, ao qual se vincula também o direito de cidadania. Para que se possa compreender melhor este último termo, junto à polêmica que o envolve, vale a pena investigar, antes, a racionalidade inerente à idéia do Estado de Direito propriamente dito. Em outras palavras, o direito de cidadania enquanto direito de gozar o espaço de agir, aberto pelo Estado de Direito, só pode ser adequadamente avaliado a partir do potencial estruturador deste último.

O próprio termo Estado de Direito já dá a entender a necessária vinculação do agir institucional às regras juridícas, legitimadas por leis. A legalidade do agir é a marca típica desse Estado. Ao falar assim, duas referências têm que ser feitas. A primeira parece ser a mais natural: ao Estado cabe a tarefa de garantir a ordem legal na sociedade, atribuindo-se-lhe, aí, a função de "guarda-noturno" com obrigação de impedir a atividade de elementos perturbadores da ordem pública. Na sua origem, o Estado liberal foi visto sob este aspecto. Há, porém, um outro lado da legalidade do agir, talvez ainda mais importante para fazer com que se entendam os problemas modernos do Estado. É que se exige, também, a submissão de suas atividades próprias às delimitações impostas pelas leis. O Estado, ele mesmo, é obrigado a respeitar as definições legais, restringindo-se no seu agir àquele espaço a ele concedido pelo legislador. Fala-se, neste contexto, de um "Estado de legislação" (Carl Schmitt).

Tendo-se em vista essa dupla conotação do termo Estado de Direito, será de máxima importância conhecer o alcance e os limites objetivos de seu potencial estruturador, a fim de se poder identificar qual o espaço disponível, ou seja, quais as chances abertas para aqueles que apostam nos direitos de cidadania como caminho de articulação de suas demandas. Ora, no que diz respeito à capacidade estruturadora do Estado de Direito, não há como ignorar a lógica própria do Direito liberal. E com isso, os direitos de cidadania sofrem as mesmas restrições. Como se percebe, o uso que faço do termo "direito de cidadania" considera fundamental seu vínculo com o sistema do Direito liberal e à lógica aí vigente, no intuito de explorar sua função analítica, dentro do contexto da temática proposta. Porém não quero, com isso, negar que este termo traga ao debate político atual conotações visando também a certas utopias socias, por realizar-se à base do uso estratégico deste mesmo direito de cidadania. Desde o fim do século XVIII, a partir das conquistas das revoluções burguesas na Europa, o sistema do Direito liberal é considerado o meio por excelência para a instauração da idéia de liberdade como princípio organizador do mundo sócio-político. Proveniente da tradição iluminista, essa idéia causou euforia, certamente legítima, tendo-se em vista o mundo feudal que ela contrariava pela promessa de reconhecer cada pessoa, sem excessão, enquanto um ser livre racional. Liberdade e igualdade, as grandes visões do novo mundo desencantado (Max Weber), deveriam encontrar sua objetivação através das estruturas calculáveis do relacionamento social e institucional. Ninguém, a partir daí, deveria estar exposto ao livre arbítrio de outrem, nem do Estado ou de decisões por parte de corporações sociais. A transformação jurídica mais completa possível do espaço sócio-política foi concebida como tarefa premente no cumprimento dessa promessa. Ecoando na tese de G. W. F. Hegel, segundo o qual "o sistema do direito é o império da liberdade realizada" (§ 4 FdD), o Direito liberal parecia capaz de preparar caminhos adequados em direção à realização do sonho sustentado pela idéia do homem senhor-de-si, ou seja, pelo tópico da razão humana auto-fundante. Entretanto, no próprio Hegel, encontramos também os primeiros índices referentes às falhas de uma experiência que, por dois séculos, marcaria a sociedade liberal quanto aos seus fundamentos material-econômicos, cito: "Em suas oposições e complicações oferece a sociedade civil o espectãculo da devassidão bem como da corrupção e miséria." (idem, § 185). Sob a égide do Direito liberal, meio de implantação da liberdade e igualdade para todos, encontra-se, por sua vez, a "normalidade" da miséria e, ao mesmo tempo, do luxo exuberante? Seria esta afirmação compatível com sua nobre tarefa? Se não quisermos denunciar a Hegel como ingênuo, será ao próprio sistema que se deverá atribuir uma lógica capaz de assimilar os dois lados aparentemente contraditórios do direito, a saber, aquela que une o ideal da liberdade e o surgimento da miséria material para muitos grupos sociais.

Como não disponho de espaço suficiente para expor, de modo detalhado, os raciocínios capazes de fundamentar uma resposta à questão tão surpreendente, contentar-me-ei com a colocação de poucas observações quanto aos motivos que levaram Hegel a acreditar no mútuo condicionamento entre a realização da liberdade e o surgimento aparentemente "natural" da miséria material, dentro da mesma sociedade.

Ao interpretar a lógica do Direito liberal como processo de objetivação do princípio da liberdade, tão precioso à autoconsciência da sociedade burguesa, Hegel sabia que a questão da liberdade só poderia surgir dentro de uma sociedade em que houvesse espaço para o agir voluntário de seus integrantes. Pois, como ele mesmo afirmou, a liberdade e a vontade pessoal são indissolúveis: "O domínio do direito é o espirito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância..."(idem, §4). Observa-se nessa afirmação, sem dúvida, o que qualifica as determinações jurídicas do conjunto sócio-político. O direito organiza e protege de fato, nos mais diversos níveis do relacionamento pessoal e institucional, a articulação e concretização da livre vontade humana. Seja em nível do direito civil, cujas regras (p.e. referentes à propriedade privada ou ao contrato civil) nunca questionam os valores materiais que motivam o relacionamento entre os indivíduos; seja no contexto do direito da família, que não interfere nas relações intrafamiliares, na medida em que a instituição da família ela mesma não esteja colocada em risco; seja a determinação jurídica do mercado de trabalho, que pressupõe a equiparação entre os contratantes, sem levar em conta o desequilíbrio gritante entre os detentores do poder econômico e aqueles que buscam, hoje de modo cada vez mais desesperado, emprego. Ou ainda, em nível do agir politíco que segue, no processo da tomada de decisão por parte dos legisladores, o cálculo meramente quantitativo dos votos como base de legitimação, sem reportar ao mérito material das decisões legais (fiel ao critério da legitimação pelo procedimento, i.é, pela mera legalidade). Em todas determinações jurídicas vigora, como princípio último, o reconhecimento e a garantia da livre expressão das pessoas, negligenciando-se, por inteiro, todos os aspectos ligados aos interesses materiais em jogo. Essa lógica de abstração das condições materiais acontece em nome da pressuposta autonomia da razão humana que, na sua concretização prática, se articula como livre vontade individual.

O verdadeiro escândalo, no entanto, esconde-se pelo avesso desta lógica de abstração. Pois, em consequência da racionalidade econômica do capitalismo, a sociedade moderna produz modos de interrelacionamento social constituídos por meio de relações entre mercadorias que, por sua vez, escondem as verdadeira relações sociais forçadas entre os seres humanos. As mercadorias, produtos do trabalho, não apresentam mais sinais de sua origem humana, transformando os próprios sujeitos deste processo em meros elementos economicamente calculáveis, quantificados, sem nenhum respeito quanto ao seu ser essencialmente livre. Não é por acaso, que a análise da mercadoria moderna foi feita como análise das condições sociais que levam, dentro do sistema vigentes, à transformação do ser humano livre em mera coisa material. Se lembrarmos a tarefa do Direito liberal, de organizar a livre expressão dos indivíduos reconhecendo, simultaneamente, a constituição de um amplo espaço social submisso à racionalidade coisificadora do processo econômico-material, não nos restará outra conclusão a não ser a da impotência objetiva do Direito no que tange à estruturação das relações sociais, na medida em que estas encontram-se determinadas pela lógica da reprodução econômica da sociedade. De fato, constata-se, não só a mútua dependência entre a racionalidade vigente do sistema do direito e o desdobramento da lógica do capitalismo (Max Weber), mas também a perda do poder diretivo do moderno Estado liberal no que diz respeito ao desenvolvimento das economias nacionais. Na sociedade moderna, o Direito liberal está, na verdade, apenas "ao lado do poder". Esta a expressão mais adequada para indicar a distância do Direito quanto aos centros do poder efetivo na sociedade e, exatamente por isso, indicar também a função objetiva que ele tem, a qual é de apoiar, involuntariamente, essa mesma estrutura.

Temos aí o próprio calcanhar de Aquiles do Estado liberal de Direito. Sua incapacidade de exercer força estruturadora dentro do campo da sociabilidade material começou a ser percebida, sob o ponto de vista histórico, pouco depois do esgotamento da euforia que acompanhara a instauração do sistema liberal. Já a partir da primeira parte do século XIX, a separação rígida entre a Sociedade Civil, como espaço da reprodução material-econômica, e o Estado de Direito, apresentava-se como marca típica da visão liberalista. Poucos foram, porém, os autores que perceberam o fato de que essa distinção continha no seu bojo os gérmens, tanto da liberação individual, quanto da desigualdade material. Obviamente, os dois aspectos desdobram-se passo a passo, como indissociáveis. Não é exagero afirmar, hoje, que o sistema do Direito liberal fomenta, em sua lógica interna, este processo objetivo. Dito de outro modo, a concretização da idéia da liberdade efetua-se apenas na medida em que o Direito liberal renuncia à reflexão dos possíveis critérios materiais, valorativamente determinados, a serem reconhecidos no processo de estruturação do espaço sócio-político. Em sua expressão pura, este modelo do Estado liberal de Direito abstém-se de interferir no campo das atividades economicamente condicionadas. Em certo sentido, os assuntos da Sociedade Civil não são de sua responsabilidade. Não é de admirar, portanto, que a retomada radicalizada desta postura, formulada hoje na tese do Estado mínimo - defendida, p. e, por F. Hayeck e R. Nozick - jogue tudo em cima da retirada do Estado quando das crises oriundas dos mecanismos da sociabilidade material, é na Sociedade Civil.

O lugar sistemático do direito de cidadania

Se presupusessemos uma visão purista do Estado liberal de Direito como modelo sem alternativa, enquanto fio orientador do desenvolvimento da comunidade moderna, acho que já se poderia perceber quão utópica seria a luta pelos direitos de cidadania. Ao ter que admitir, dentro dos trilhos do liberalismo puro, a incapacidade das definições jurídicas, no que diz respeito à reformulação das condições materiais do convívio social, não haveria motivo para acreditar que o Estado de Direito, por si só, pudesse alterar o quadro desfavorável daqueles que lutam pelos seus direitos. Resultado este que nos faz duvidar, tanto mais da viabilidade desta luta, quanto mais a visão neoliberal, no sentido da imposição abrangente da lógica do mercado, assume a função de orientação exclusiva do desenvolvimento sócio-político. Onde se encontra, pois, a chance de identificar a função real da luta pelos direitos de cidadania? A resposta só a encontraremos buscando-a pelo lado complementar do Estado de Direito, ou seja, através da perspectiva do Estado do Bem-estar social.

Desde sua instauração, o Estado liberal de Direito vem sofrendo riscos por ele mesmo criados. Com sua abstenção forçada em relação à dinâmica imanente ao campo da sociabilidade material, ele não dispõe de meios capazes de enfrentar os casos de radicalização das contradições sociais, como já anunciadoas, de modo taxativo, por G. W. F. Hegel. O perigo mais grave nesse caso está na perda da lealdade política daquelas camadas sociais que se vêm excluídas dos bens da sociedade. Já na segunda parte do século XIX, quando a miséria de massas tomou conta da vida cotidiana, surgiu, na Europa, o debate em torno das medidas a serem aplicadas com o objetivo de moderar a precária situação social. A insuficiência no combate à miséria em nível meramente individual, conforme o espírito caritativo, forçou o agir do Estado que, preso à visão do Direito liberal, precisava encontrar soluções compatíveis com a ideologia a ele inerente. O modelo mais reconhecido e, por isso, até hoje várias vezes imitado, foi a colocação em ação das reformas de Bismarck. Uma reforma genial do ponto de vista estritamente liberal, pois o manejo dos riscos e das crises iminentes no espaço da Sociedade Civil foi a esta simplesmente devolvido. De fato, o modelo de seguro social internalizou, via determinação legal, a responsabilidade pelos problemas sociais aos próprios agentes da Sociedade Civil, sem participação explícita por parte do Estado de Direito. À própria Sociedade Civil caberia, segundo o modelo da "comunidade de risco" gerar, tanto os meios financeiros, quanto organizacionais para lidar com as dificuldades econômico-materiais. Como se percebe, a solução inicialmente favorecida pelas reformas sociais do fim do século XIX, na Europa, e mais especificamente na Alemanha, praticava-se em inteira consonância com as idéias fundamentadoras do Estado de Direito e sua estrita abstenção quanto ao manejo das constradições da Sociedade Civil. Tal modelo não pode, porém, esconder uma falha que, como nas atuais políticas social-democratas, sempre se agravou no momento em que as condições materiais da vida levaram a processos praticamente irreversíveis de segmentação social, com poucas chances de retorno para quem houvesse caído fora do sistema de inclusão social ou, nos casos mais graves, a ele nunca tivesse tido acesso. Quero lembrar apenas os casos cada vez mais frequentes, de pessoas que nunca tiveram a chance de abrir a porta de entrada ao sistema do seguro social, por nunca terem vivido a chance de participar no mercado de trabalho, isto é, no núcleo em torno do qual a Sociedade Civil se ergue. Tais crises, não mais manejáveis a nível meramente individual, exigiam solução estrutural e, antes de tudo, política, não submissa ao modelo de internalização dos riscos sociais na Sociedade Civil. É que esta perde, passo a passo, sua suposta homogeneidade que era, como estrutura calculável, a condição fundamental das reformas de Bismarck. O espaço social, de modo crescente fragmentado em camadas com orientações normativas diferentes, obrigou a uma opção desconhecida até a primeira Guerra Mundial. A saber, aquela de uma exigência de intervenção política do Estado de Direito nas crises sociais. Não se pode, portanto, subestimar essa nova dinâmica, oriunda a partir das idéias do Bem-estar social, considerado enquanto tarefa do Estado. Na época anterior, pelo contrário, qualquer forma de manejo das crises sociais respeitava a relativa autonomia da Sociedade Civil enquanto lugar da racionalidade econômica, à qual cabia definir, com exclusividade, as ferramentas sociais a serem usadas para resolver seus problemas. Fosse isso pensado enquanto princípio de subsidiariedade, espírito filantrópico, ou visão assistencialista, é-nos possível observar sempre de novo o desempenho em favor de uma auto-regulamentação da Sociedade Civil, baseada em suas próprias forças, ou seja, em uma capacidade inerente de auto-cura, fiel à racionalidade do espírito capitalista.

Ora, com o surgimento da concepção do Estado de Bem-estar social, esse cenário por certo mudou. É que com a entrada do Estado de Direito no campo social, as soluções das crises aí emergidas sofreram um necessário processo de juridificação. Em outras palavras, deu-se a normativação dos direitos e dos deveres, que passaram a estar sujeitos a uma ampla transformação legal. Tal processo fez com que os indivíduos, em vez de se apresentarem como elementos qualificados dentro da visão meramente econômica (força de trabalho, desempregado, inválido, idoso, marginalizado ou excluído do mercado dos bens materiais) passassem a ser respeitados na sua qualidade de cidadãos, capazes de reivindicar seus direitos sociais frente ao próprio Estado. A questão social chegou a ser vista como política, exigindo, portanto, respostas políticas. A meu ver, esta é a época do nascimento dos debates sobre os direitos de cidadania, tal como os encontramos posteriormente, mas sobretudo nas últimas décadas, também no Brasil. Foi ademais no contexto das demandas sociais, vinculadas à revisão do papel do Estado liberal como instância antes despreocupada com a Sociedade Civil, que apareceu o lugar sistemático do debate em torno do direito de cidadania. Em outros termos, tanto as crescentes crises sociais, quanto a nova consciência reivindicatória dos direitos humanos e, como novidade, dos direitos sociais (enquanto direito de reconhecimento do cidadão como membro integral da comunidade político-social) passaram a ser consideradas as duas fontes principais em que se alimenta a questão dos direitos de cidadania. Direitos estes que visam a integração sócio-política e objetivam cumprir a expectativa de uma construção efetiva da justiça social.

Falando-se em termos históricos, a época entre as duas guerras mundiais - com sua miséria até então desconhecida por implicar níveis não diretamente conectados à lógica econômica (p. e, as familias dos soldados abatidos, os mutilados da guerra, etc.) - translocou a questão social de seu marco econômico para o nível do Estado exigindo uma intervenção política no campo social. Prova disto é a constituição da República de Weimar, na Alemanha, que, pela primeira vez, garantiria, enquanto direito constitucional, uma série de direitos sociais. Uma determinação política, portanto, que levou em seguida às primeiras controvérsias teórico-políticas em torno à compatibilidade entre a visão de Estado do Bem-estar social e aquela do Estado liberal do Direito.

Seria mesmo natural festejar a conquista dos direitos de cidadania como sucesso da luta por uma política em favor da inclusão social de todos aqueles ameaçados de caírem fora do sistema ou dos que, em estado ainda pior, já se encontram de algum modo exilados na periferia da sociedade. Desta perspectiva poderíamos considerar os direitos de cidadania enquanto um meio adequado para um passo importante em direção a uma sociedade materialmente mais equilibrada e justa. Acho, porém, que isto é apenas um lado da medalha. Cometeríamos um erro grave se concentrássemos a solução de tais problemas sociais - como os dos processos de marginalização ou aqueles de uma participação efetiva na vida política - exclusivamente na luta pelos direitos de cidadania. Segundo o exposto na primeira parte de minhas observações, o direito de cidadania, seu alcance e seus limites só se revelam a quem toma consciência de que ele é submetido à lógica inerente ao sistema do Direito liberal. Lógica esta que nos leva a perceber o desamparo das determinações jurídico-legais quanto ao seu próprio poder de interferir naquelas relações sociais amarradas ao cálculo econômico da racionalidade capitalista. Disfarçadas pelo mecanismo do mercado, lugar de mediação dos produtos do trabalho, as relações sociais coisificadas não estão ao alcance de um sistema de direito, cuja tarefa é a de garantir o livre exercício dos interesses sem ser capaz, entretanto, de levar em conta a adequação objetiva das transações sociais. A garantia dos caminhos legais, pelos quais os interesses têm que buscar sua realização, não inclui, de modo nenhum, a garantia do equilíbrio e da justiça materiais.

Tendo-se este aspecto em vista, juntamente com o fato de o direito de cidadania integrar-se aos caminhos do procedimento legal no sentido da realização dos próprios interesses e das demandas sociais em jogo, chega-se a uma diagnose desalentadora. Pois, a luta pelos direitos de cidadania não ultrapassa o seu próprio horizonte, preso que está à mera legalidade do procedimento e à integração das demandas sociais nos canais de um sistema incapaz de garantir a conversão destas demandas em verdadeiras conquistas materiais. Assim sendo, encontramo-nos numa situação ambígüa. Por um lado, é verdade que a luta pelos direitos de cidadania é um passo importante no processo de inclusão social dos grupos menos favorecidos; por outro, no entanto, essa luta não garante, por si só, a justiça social materialmente efetuada. Com ela, corre-se o risco de ter de buscar caminhos complementares que poderão chocar-se com os limites inerentes à legalidade jurídica. Sobre os aspectos concretos dessa ambigüidade quero acrescentar ainda algumas oberservações no próximo passo, interconectando o direito de cidadania com os movimentos sociais.

Direito de cidadania e movimentos sociais

Para facilitar a compreensão da relação complementar entre direitos de cidadania e movimentos sociais, e assim tornar mais transparente a dupla face, oculta na luta pelos direitos de cidadania no Brasil hodierno, parece-me importante lembrar algumas experiências com a história recente das movimentos sociais na Alemanha. Aí, não é exagerado dizer que as políticas sociais, desde os anos vinte deste século, vêm sendo inseridas e implementadas pela burocracia e administração públicas. Fato este que explica também o alto grau de juridificação visível nas diversas áreas do Serviço Social, juntamente com sua respectiva fundamentação em critérios da legalidade. Certamente, esta instauração das políticas sociais por parte do poder público traz consigo uma inércia ou até mesmo uma imobilidade das reações a novas demandas sociais, já que estas últimas não têm ainda como recorrer a direitos legalmente reconhecidos, ao passo que o agir administrativo, por sua vez, depende de uma sua base legal. Em outros termos, podemos perfeitamente concordar com a afirmação de que a administração pública, em princípio, é hóstil a inovações provocando, por isso, a busca de outros caminhos por parte dos interessados, a fim de conseguirem a abertura de novos espaços político-sociais próprios. Vale lembrar o exemplo do movimento ecológico que, enquanto movimento social de base fundmentava suas atividades nas mais variadas concepções e utopias, perdendo seus impulsos originários, porém, no momento de sua integração no espaço legal do sistema, ao estabelecer-se como partido político. Uma experiência que, como aquela da Alemanha dos anos setenta, foi, por assim dizer, revivida no Brasil, nos anos 80.

É neste cenário marcado pela oscilação entre a legalidade dos direitos de cidadania e as limitações intrínsecas ao campo do agir do Estado liberal do Direito, que se encontra o campo por excelência das investidas dos movimentos sociais, na sua função de "agentes coletivos... agentes estes que perseguem o objetivo de encaminhar, impedir ou anular mudanças sociais mais de fundo", opondo-se a uma racionalidade do agir burocrático-legal, comprometida com a estabilidade e continuidade da ordem vigente. Como se vê, as experiências recentes na Alemanha indicam o interesse dos movimentos sociais enquanto oposição à imobilidade e à falta da força inovadora da política social pública. Qualquer que seja o objetivo concreto visado pelas suas intervenções, os movimentos sociais posicionam-se em atitude de enfrentamento contra os limites do sistema vigente da legalidade, o que impede, ou pelo menos dificulta sobremaneira o reconhecimento legal da legitimidade material de novas demandas sociais emergentes. Não é de admirar, portanto, que uma tal situação leve os movimentos sociais a decisões difíceis no que tange aos meios legais a serem usados na sua luta. Pois, não podendo contar com a disposição do aparato político-administrativo que poderia tomar tais demandas a sério, os movimentos sociais podem menos ainda confiar nos caminhos legais, com os quais poderiam alcançar o cerne material dos problemas levantados. Por isso, podemos observar que o espaço preferencial das intervenções dos movimentos sociais é, tanto na Alemanha, quanto no Brasil, o da "oposição extraparlamentar", ou seja, fora dos canais legais. Em consequência disto, o limiar entre os caminhos "ao lado" da legalidade (praeter legem), ou até à base de uma calculada "transgressão limitada" das regras jurídicas, torna-se o campo típico das intervenções. À base destas considerações pode-se, creio, perceber a tensão que existe entre a luta pelos direitos de cidadania e o campo de manobras dos movimentos sociais no horizonte do Estado liberal do Direito. Enquanto a luta pelos direitos de cidadania pactua necessariamente com a lógica da legalidade do procedimento, não alcançando jamais a reformulação das bases materiais da sociabilidade, e tendo de contentar-se com o reconhecimento da mera legalidade de suas aspirações, a luta dos movimentos sociais busca, por seu lado, o reconhecimento imediato da legitimidade de suas exigências materiais correndo propositadamente, nos casos necessários, o risco de sair dos trilhos legais no seu agir. Assim é que tanto o direito de cidadania, quanto o movimento social podem ser considerados como elementos emergentes dentro do mesmo sistema, que faz da legalidade do procedimento a condição suficiente da legitimidade dos resultados de sua gestão.

O que se aprende a partir das experiências, na Alemanha das últimas décadas, não pode ser por certo identificado ao que acontece no atual cenário político-social do Brasil, e menos ainda quando se tem em vista a história dessas duas tradições. Na Alemanha, as questões em torno ao direito de cidadania e aos movimentos sociais surgiram devido à experiência com os limites do potencial estruturador do Estado liberal do Direito, o qual, mesmo no seu auge, não conseguiu garantir a reformulação das condições materiais de vida da maioria da população, ou evitar os processos crescentes de exclusão social. Já a política social no Brasil, à beira de sua reconstrução segundo à lógica da visão liberal, faz surgir a luta pelos direitos de cidadania com a finalidade de possibilitar aos indivíduos e grupos de risco a integração numa sociedade, cuja homogeneidade deveria ser forçada sob a égide do Direito liberal.

Mesmo considerando estas condições tão diferentes entre os dois países acho que nos dois casos encontra-se um enfoque em comum. Pois, na Alemanha, tanto as políticas sociais do Estado do Bem-estar social, quanto a homogeneidade da sociedade (buscada, em última instância, pela cessão ampla de direitos de cidadania) apontam ao mesmo problema, que constatamos ser insuperável dentro da lógica liberal. A saber, o de que não há como garantir, à base do princípio da legalidade vigente, o reconhecimento das demandas sociais materialmente legitimadas. Por isso, constatamos também que as lutas pelo direito de cidadania, por mais amplas que tivessem sido, não conseguiram, por si sós, mudar as condições materiais de vida e das formas de sociabilidade daí provindas. Ora, os movimentos sociais nasceram à base dessas experiências enquanto elementos complementares, capazes de translocar a luta aberta dentro dos trilhos da legalidade para o campo econômico-social, no sentido estrito da palavra. Resta-nos apenas avaliar as forças políticas em jogo, para então escolher, no caso concreto, os caminhos estrategicamente mais adequados. Não existe receita geral; existe, sim, a certeza de que esse jogo entre o direito de cidadania e os movimentos sociais tornou-se, no desdobramento do Estado moderno, um traço caraterístico e inevitável, inerente às sociedades às quais pertencemos. Jogo este, portanto, que nasce da tensão entre a legalidade do procedimento e a legitimidade das aspirações materiais.