A NUVEM DE OORT
Filosofia. Ciência. Cometas
"E, no entanto, o reino das sombras fascina. A voz do
mistério atrai-nos como uma voz demoníaca. Porque, se a claridade seduz, ela também
decepciona."
VERGILIO FERREIRA, "Invocação ao meu corpo"
METEOROLOGIA I. "Céu muito nublado. Vento forte"
[1]
A Filosofia é um discurso
antigo, cujo maior risco é transformar-se num discurso velho, isto é, ser aceite na
ribalta do conhecimento actual um pouco como aqueles parentes distantes que se convidam
nas celebrações festivas rituais e são ouvidos com a complacência que se reserva às
fraquezas da afectividade. Porém, ciclicamente, quando uma certa crise de consciência
vem à tona dos dias, quando as coisas e as ideias que sobre elas uma época vai tecendo
projectam sombras que obscurecem a razão satisfeita, numa espécie de desespero de causa,
os filósofos regressam ao palco como clérigos que administram o último conforto, após
a salda do médico!
Quer isto dizer, que o espaço da Filosofia mantém uma
relação conflituosa com a contemporaneidade, nomeadamente com o seu rosto mais
prestigiado, aquele que emerge da razão científico-tecnológica, do pensamento
quantificado, aparentemente asséptico e amora. Porque o consenso que
<<por-aí-corre>> é peremptório. Os discursos filosóficos são vistos como
intermináveis manipulações de palavras, de argumentos que eternamente se bifurcam
noutros argumentos, polémicas que duram anos e que gente estranha inscreve em tratados
enormes, exclusivamente acessíveis a personagens bizarras e crepusculares. Por outras
palavras, o que se diz a meia-voz é que a Filosofia não é prática, não leva a
sítio-nenhum, não é contabilizável na dupla conceptual lucro-prejuízo, nem fornece
às multidões uma variante actualizada do sagaz preceito romano inscrito na bem sucedida
fórmula "panem et circenses". Os deuses fornecidos pelos filósofos duram pouco
e são inóspitos para os crentes. Raramente acreditam a sério em si mesmos, e são os
primeiros a vasculhar os sinais que suportam o seu Olimpo de papelão. Quando dizem que
salvam as almas e resolvem intervir na História, parece ser para melhor as perder,
deixando na paisagem - parafraseando William Faulkner - O "som e a fúria"
dos cavaleiros do Apocalipse.
A Filosofia nem garante nem dá esperança duma modalidade
razoável de vida eterna como as grandes religiões, apesar de não faltarem entre os seus
adeptos candidatos a sacerdotes e vendedores de catecismos, nem produz máquinas de lavar,
aspirinas ou consórcios de compra em grupo, como parece ser sina da versão mais popular
das grandes Ciências. Explicando melhor, para que o que se diz não ser entendido como
exercício dúplice de iconoclastia e cinismo: os dois arquétipos, entendidos como
imagens-sociais aparentemente estabilizadas, que se associam com a Filosofia e Ciência,
inscrevem a primeira no horizonte das reflexões eventualmente interessantes mas sem
utilidade prática visível e atribuem à segunda uma capacidade de transformação real,
com impacto palpável no plano da vida quotidiana.
Ora o que se verifica a partir desta espécie de consenso
institucional vigente, susceptível de abarcar com a mesma candura o
cidadão-enquanto-telespectador e o cidadão-enquanto-director-geral, é um equívoco de
fundo em que Filosofia e Ciência acabam por ser vitimas. Isto é, a dimensão prática
que tanto prestigia no curto prazo a Ciência, obriga-a inflectir a investigação segundo
critérios de rentabilidade mercantil, raras vezes coincidentes com o seu objectivo
primordial, que é o de saber como funciona o real dado, exclusivamente movida pelo
prazer e necessidade de o saber. É este o sentido da mal chamada "investigação
pura", que é contraposta no mercado das ideias feitas à "investigação
aplicada".
Na verdade, não só o critério que preside a tal
distinção é deveras discutível, como também está por demonstrar se, a médio prazo,
a rentabilidade da investigação pura não será nitidamente superior à da
investigação aplicada! Porque o critério do cientista-investigador quando procura
solução para uma pergunta, não consiste em interrogar-se para que serve (em
termos de produtividade económica) a investigação. 0 que lhe interessa é uma
resposta à pergunta e nada mais. E nisto a Ciência é irmã da Filosofia...
Ambas nasceram no momento em que nos sentíamos abandonados
pelos deuses, partilhando o infortúnio dum Universo subitamente desprovido de sentido,
face a uma Natureza que parece combinar com enigmática ponderação ordem e desordem,
acaso e necessidade, caos e cosmos. Aqui, curiosa e,singularmente, Filosofia e Ciência
encontram-se entre a Terra e os Céus!
É natural que assim seja, pois, à primeira vista, são os
englobantes últimos do nosso olhar e destino. Não é ocasional que todas as grandes
estruturas explicativas de cariz mítico-religioso anteriores e posteriores à alvorada do
pensamento científico e da razão ocidental tenham tomado posição sobre a
configuração e o porquê desses dois campos de sustentação (Terra-Céus), neles
ocupando local privilegiado a topologia divina, desde as forças solares e lunares até
às potências obscuras, telúricas, pacientemente gerindo o fogo ou as sombras infernais.
0 desejo de ver claro, a aspiração "teórica" no verdadeiro sentido
etimológico, ao afirmar-se embrionariamente entre Oriente e Ocidente, nas colónias
citadinas e marítimas, do Mediterrâneo do séc. VI A.C., aceitou como primitivo desafio
a eterna pergunta que ainda hoje faz correr a Ciência em direcção ao desconhecido. Que
é e como é o Universo que nos rodeia?
A conhecida história, tantas vezes apontada como
exemplo de falta de sentido de realidade e de espírito prático, que diz ter o filósofo
Tales de Mileto caído num poço por se encontrar "distraído" a observar os
céus, não deverá ser entendida como manifestação dum distanciamento misantropo do
reino dos homens, mas como o pressentimento de que o firmamento propõe um desafio à
razão humana e que nele ocorrem acontecimentos que dão corpo a sequências de padrões
de previsibilidade que têm mais a ver com a frieza da geometria, e da matemática, que
com as birras de Zeus ou os amores contrariados de Afrodite.
Por isso,. nos seus primórdios, filosofia e ciência são
indistinquíveis nas estratégias de guerra que utilizam e nos objectivos últimos para
que apontam. Verdadeiramente estamos em presença de físicos, cosmólogos e
meteorólogos. Isto é, aquilo que existe ("physis") ao ser sistematicamente
observada na perspectiva de nela encontrar princípios explicativos universais, pressupõe
a existência duma lógica ("logos") estruturante do universo
("cosmos"), presente nas múltiplas facetas em que ele se concretiza. O
conhecimento do ciclo dos astros, da configuração das estrelas, dos ritmos e
regularidades do Sol, da Lua e dos planetas, é uma inesgotável fonte de desafios,
triunfos e desilusões perante o desejo de compreender que faz correr Filosofia e
Ciência.
Assim, sinalizar o espaço e apropriar o Tempo levava, por
vezes, a uma singular simbiose entre Geometria e Cosmologia ou entre Astronomia e
Política. Esta última associação, apesar de se manifestar, à partida, como obscura,
tem em si nexos inelutáveis. Por um lado, é óbvia a utilidade prática -- dir-se-á
mesmo, é essencial --- para comunidades que vivem duma agricultura extensiva e dos bens e
serviços dela decorrentes, a criteriosa escolha dos momentos de semear e colher,
intimamente ligados com o ciclo das estações do ano. Por outro, um dos sectores de ponta
do seu conhecimento concretiza-se na elaboração de calendários solares que exigem
notável precisão na observação astronómica e cujo impacto na vida quotidiana é
desnecessário enfatizar.
É natural que tal Saber se tornasse uma forma de
Poder, uma vez que o ciclo da vida social dele estava dependente. O sacerdote-astrólogo
precede, neste campo, a teoria científica e, em contra-partida, os primórdios desta
apoiam-se em registos informativos anteriores, depurando-os da carga sagrada e fazendo
ressaltar os fenómenos de constância e previsibilidade, agora libertos da rede mágica
que os acompanhava. Porém, ainda hoje se vislumbram vestígios dessa antiquíssima
correlação no tecido social das sociedades contemporâneas, bastando referir os
"ritos de passagem de ano", os comportamentos que assinalam o fim do Inverno, as
festas e romarias que acompanham o tempo das colheitas. Isto é, acontecimentos sociais e
individuais demarcavam-se simultaneamente num espaço comunitário que apontava para uma
configuração particular dos astros. Sendo os Céus entendidos como local de
"perfeição" onde a imutabilidade imperava e "revolução"
significava retorno ao mesmo ponto, deles se deduziu um paradigma para os comportamentos,
exemplo a -seguir no presente, chave para interpretar o futuro. 0ra, do ponto de vista da
lógica arcaica que presidiu à elaboração dos calendários, o tempo é visto como uma
roda que gira sobre si mesma, --- circular, fechada, perfeita. Tudo regressa ao mesmo
ponto, tudo se ajusta pelos séculos dos séculos. Eterno retorno.
Todavia, o exercício lógico-racional aberto pelo
pensamento grego depressa institui uma brecha nesta máquina de eternidade. A reflexão
sobre os comportamentos humanos, ao tomar como herói Prometeu, assume a lógica da
rebelião, a paixão da liberdade, o afrontamento à "irrazoabilidade" do
destino. Quer dizer, entre os Céus e a Terra quebra~se o cordão umbilical duma relação
exemplar mas tirânica. O divórcio entre Antropologia e Cosmologia dizia que estávamos
livres. Dizia também que estávamos sós, diante duma História cujo mapa de
encruzilhadas e caminhos já não estava inscrito nas estrelas!
A primordial reflexão filosõfico-científica sobre os
fenómenos naturais, se tentava encontrar um espaço racional que enquadrasse os
movimentos e transformações da biosfera, coleccionando fósseis, elaborando teoremas,
construindo máquinas, prevendo eclipses, dificilmente conseguia separar o arquétipo
de perfeição e imutabilidade da observação dos astros. Uma ordem superior era
suposta neles imperar. Um horror à mudança cimentava as complexas engrenagens desse
universo onde nada de novo se passava, assim resistindo à morte, à irreversibilidade do
Tempo que tudo devora, príncipes e impérios, deuses e paisagens.
Mas se, subitamente, uma luz nítida irrompia no firmamento,
crescendo noite após noite, clarão vindo de algures, longa cauda perturbando o mapa
petrificado das estrelas, decerto horas sombrias estariam a chegar para os Homens. O sinal
estava desenhado nos céus. O cometa nascia. No horizonte da nossa intranquilidade, o
prognóstico de superfície anunciava para o dia seguinte, para incontáveis dias
seguintes: "Céu muito nublado, vento forte, algumas abertas".
METEOROLOGIA II. "Céu limpo. Neblinas matinais"
Ameaçada a ordem superior dos céus
na sua versão de universo divinizado, na construção-brilhantemente mecanicista de
Ptolomeu ou ainda nas órbitas fechadas em sólidos perfeitos como desejou Kepler, toda a
sensatez levaria a tomar o aviso a sério, perscrutando os males, as catástrofes, a
violência e crime que por certo chegavam. Em todas as civilizações, desde tempos
imemoriais, o aparecimento desses astros imprevisíveis se inscreve no património
cultural colectivo, acede ao reino ida linguagem, é estímulo para desenhos,
representações, anotações. [2]
As grandes coincidências cronológicas em inúmeras
aparições possibilitam aos estudiosos actuais, conhecedores dos períodos cometários,
dos seus ciclos longos ou curtos, estabelecer com razoável precisão os cometas nelas
referidos. O contexto epocal em que tais anotações históricas foram inscritas incluía,
em regra, comentários adjacentes associando os cometas a episódios ---de sinal negativo
--- no plano individual e social, senddo excepcionais as correlações de sinal contrário,
corno é o caso dos 'Kung do Botswana' para quem a sua presença nos céus era
sinal duma era de prospe- ridade, de caça abundante e recolecção fácil. [3] Mas a
tendência dominante é, obviamente, de sentido oposto. E nisto, em média, não difere
muito a atitude dum agricultor neolítico e a dum seu homónimo do séc. XIV. Ou, se
quisermos falar dum estrato sócio-cultural teoricamente mais elevado, não são
significativamente distintas as considerações dum cronista chinês do início do séc.
VII e dum bispo europeu de finais do séc. XVI. Senão, vejamos!
- 1 ) - Dizia Li Ch'un Fung (607-6,67) no seu "Registo da
Mudança do Mundo": "Os cometas são estrelas vis. Sempre que aparecem no
Sul, algo acontece que deita fora o velho e estabelece o novo. Também quando os cometas
aparecem, as baleias morrem. (...) Quando um cometa aparece na Estrela do Norte, o
imperador é substituído. Se ele aparece no extremo da Ursa Maior, há sublevações por
toda a parte e a guerra prolonga-se por vários anos. (...) O ouro e as gemas ficam sem
valor. Outra explanação: a canalha injuria os nobres. Aparecem alguns chefes revoltosos,
que causam perturbação. Os ministros conspiram para se rebelar contra o imperador."
[4]
- 2) - Em 1578, o bispo de Altmark, André Celichino, afirmava:
"0 espesso fumo dos pecados humanos, em ascensão cada dia, cada hora, cada momento,
plenamente fedorento e horroroso ante a face de Deus, engrossa gradualmente até formar um
corneta, com tranças espiraladas ou direitas, o qual, por fim, é incendiado pela
escaldante e viva ira do Supremo juiz dos Céus."[5].
Mil anos separam estes textos,
oriundos de civilizações com contactos mútuos praticamente nulos. Todavia, ambos
associam os cometas com males e crime, guerra e revolta, pecado e punição divina. Uma
profunda inquietação deles ressalta, retrato fiel dum temor antigo que atravessa
gerações e épocas, remontando a uma intranquilidade vinda da origem dos tempos. Como
explicar a permanência destas associações insólitas, predominantemente adstritas a
este tipo de fenómenos?
Não podemos esquecer que, desde as fases mais avançadas da
hominização, a emergência da consciência na vertente "sapiens" inaugura
modalidades traumáticas na relação eu-mundo. De facto, é o assumir da contingência e
fragilidade da vida, da precariedade do corpo perante ambientes hostis, que associa o
limiar do humano com os primeiros ritos funerários presentes nos
"Neandertalenses". Isto é, o medo deixa de ser exclusivamente regido por
mecanismos automáticos de estímulo-resposta radicados ou no cérebro reptiliano ou no
sistema límbico (McLean), para aceder aos circuitos multi- plicadamente bifurcativos do
neo-cortex, susceptíveis de instituir comportamentos e atitudes que visam exorcisá-lo
[6] Ou ainda, como parece ser o caso perante as estranhas convicções que acompanham a
observação dos cometas, a impossibilidade de assumir tais fenómenos na esfera do
"non-sens", dos factos insólitos que o futuro conhecimento humano haveria de
esclarecer, leva a que-eles ocupem um lugar "causal" no sistema de explicações
e significações vigente.
A sua aparição desencadearia atitudes individual e
socialmente recalcadas que aproveitariam esse desregramento cósmico para virem à
superfície da História, sem se vincularem a uma responsabilidade personalizada. Os
sistemas sociais encontravam, desta ,forma, um processo de expurgar para o exterior (os
Céus) algumas das pulsões caóticas neles inscritas, sem terem de suportar a angústia
de alma correspondente.
Afinal de contas, a culpa era do cometa. Desaparecida
acausa, desapareceria o efeito e tudo voltaria à normalidade!
Neste contexto, é interessante salientar que mesmo as
observações feitas dum ponto de vista naturalista (des-sacralizado) pelo pensamento
filosófi-co-científico dos gregos tiveram a tendência de circunscrever os cometas a uma
esfera atmosférica próxima da Terra, afastando dessa forma um acontecimento tido como
caótico da eternidade imutável do firmamento. A oposição dum mundo supra-lunar,
espaço imóvel e indiferente por contraponto ao continente sub-lunar, cenário onde a
mudança ocorria e era palco da aventura humana, levou Aristóteles a considerar que os
cometas resultavam de emanações gasosas oriundas do interior da Terra as quais,
erguendo-se na atmosfera, eram tornadas incandescentes pelo calor do Sol. Movimentavam-se
então a considerável altitude, mas sempre nos limites sub-lunares.
O facto da sua duração ser limitada no tempo remetia para
a exaustão por incandescência da forma cometária, bem como se explicava também
através deste processo a ocasional aparição de novos cometas, provenientes das mesmas
imprevisíveis exalações gasosas provocadas por variações do vulcanismo terrestre e
fenómenos afins. Esta interpretação, apesar de não coresponder à verdade, concretiza
uma significativa mudança de atitude mental, uma vez que um facto físico observável (os
cometas) é relacionado por uma via natural com outras séries de fenórnenos conhecidos
(e,g., o vulcanismo).
Este modelo "standard" de interpretação
manteve-se durante quase 2000 anos, tanto mais que estava associado ao geocentrismo e era
enquadrado no sistema cosmológico de Ptolomeu. Só na segunda metade do séc.XVI, com
Tycho Brahe e as observações que fez sobre a "supernova" de 1572, se começa a
desbloquear o conceito de imutabilidade dos céus, preparando o campo para considerar
oportuno rever a doutrina sobre os cometas. Este singular astrónomo, extrovertido e
"bon-vivant", de quem se diz ter uma prótese em ouro no nariz devido a um duelo
de juventude por uma controvérsia matemática e que tanto impressionou o tímido Kepler
quando este o visitou, vai aproveitar as excepcionais condições de visibilidade do
cometa de 1577 para definitivamente lançar os cometas para o espaço supra-lunar,
passando a considerá-los como "um corpo astronómico, em vez duma perturbação
atmosférica". [7]
Um século depois, o enigma fica praticamente resolvido!
Ouçamos as palavras de Carl Sagan e Ann Druyan: "Em 1705, Halley publicou os
resultados do seu imenso labor no livro intitulado 'Sinopse de Astronomia dos Cometas',
que foi a primeira aplicação, por outrem, das leis de Newton à resolução dum
mistério astronómico, facto por si só suficiente para lhe assegurar um lugar na
história da ciência. Mas, como se isso não bastasse, Halley foi ainda mais longe (...)
durante milénios, os cometas haviam sido propriedade exclusiva dos místicos, que os
consideravam como prodígios, símbolos, espectros --- mas não como coisas. Halley
bateu-os jogando o seu próprio jogo, isto é, fazendo o que até então nenhum cientista
ousara fazer: profecia. Profetizou que o cometa de 1531, 1607 e 1682 regressaria em 1758 e
acertou. Dificilmente se encontrará uma profecia dos místicos com precisão
comparável." [8]
Apesar de, a partir desta altura, no plano da comunidade
científica a questão se desdramatizar passando a ser vista duma forma objectiva que, no
essencial, é plenamente contemporânea, o mesmo se não verifica no terreno dos
fenómenos sociais de massas que abrangem o comum dos mortais. Isto é, a velocidade de
propagação do conhecimento científico, não é independente do sistema de crenças e
convicções em que se encontra inserido. O tecido social continuará ainda durante muito
tempo marcado pelos ritmos específicos das sociedades camponesas, uma vez que a
revolução industrial é um fenómeno descontínuo no espaço geográfico europeu e
mundial. A mutação de mentalidades por ela provocada só ganhará significado efectivo
em pleno séc. XX, com a escolarização maciça, o avanço do sector terciário da
economia e a expansão do acontecimento instantâneo através dos
"mass-media".
Quer isto dizer que convicções antigas permanecem
fortemente enraizadas e os cometas continuarão a ser vistos sob uma tónica de
intranquili-dade e desconfiança. Em pleno Paris do apogeu da "belle-époque",
na altura da passagem do "Halley" em 1910, foi um sucesso económico a venda de
"ipós contra o cometa" e de máscaras de gaz que evitariam por alguns francos
os inevitáveis fluidos letais... Para reforçar a oposição entre o desenvolvimento do
conhecimento científico e comportamentos que mais não fazem que reactivar traumas e
convicções milenares, lembremos que nesta altura (1905/1915) Albert Einstein publica os
textos que concretizam a Teoria da Relatividade.
Na história da Razão ocidental, os últimos 200 anos
assistem a um fazer-desfazer de cenários na difícil relação entre Filosofia e
Ciência, crescendo de incompreensões mútuas, sobrancerias inúteis num desperdício de
energias indispensáveis à prossecução do objectivo originário de compreensão do
mundo. O reencontro ocorrerá por força da redescoberta da noção de
"Sujeito", da revisão dos conceitos positivistas de objectividade
experimental, duma nova consciência da importância decisiva dos fios que tecem a
relação local-global. O pensamento científico, na sua estratégia de pequenos passos,
na sua lógica local, viu-se desdobrado até à vertigem no jogo de espelhos de
disciplinas e sub-disciplinas, especialidades e sub-especialidades. A Filosofia construía
sistemas do mundo, levando a paixão de absoluto a níveis duma univesalidade abstracta,
concretizando uma espécie de patologia do global. Fechada sobre si própria, ouvia
embevecida os seus bonzos discutindo sem fim nas noites brancas da "montanha
mágica"!
Mas a consciência emergente impõe vias originais de
articulação entre universos aparentemente separados, cruzando destinos aos falsos
opostos, reconhecendo quão ténues são os limites que, em última estância, diferenciam
o quase-tudo do praticamente-nada. Cosmologia, astronomia, astrofísica,
operando em escalas espaço-temporais de incomensurável amplitude, vislumbram agora as
singulares correlações com a física das partículas elementares, onde o infinitamente
pequeno mobiliza níveis energéticos que se encaminham para a temperatura das estrelas,
máquinas cósmicas saídas da catástrofe explosiva-dispersiva do "big-Sang"
original. [9].
Poder enigmático e singular o do Pensamento. Que sabe que
é um acontecimento simplesmente não-contraditório com as regras do universo e todavia,
até nos confins das galáxias as equações de Newton e Einstein parecem continuar a
funcionar. Ou será a sua armadilha limite, essa de nos fazer ver sombras das nossas
sombras à luz de todos os sóis?!
Porque, na situação em que nos encontramos, já não basta
o estafado critério positivista que remetia para a sacrossanta "experiência" a
confirmação duma teoria. Hoje, é a pura teoria que força a instituição-revelação
de campos experimentais para além da simples dicotomia verdadeiro-falso. Universos
meramente possíveis, quase surreais, vivendo e morrendo sob o balancearnento de
conjecturas e refutações, como diria Karl Popper. [10]
No outro lado da rua, no quarteirão para além da esquina,
como todos os dias, gente normal corre para os empregos, trata dos filhos, agoniza ou
simplesmente dorme. Os grandes problemas da Terra e dos Céus parecem distantes na
vertigem do quotidiano, tornam-se simplesmente banais na indiferença falsamente
equalizadora da notícia que transforma o excepcional de ontem no tédio de amanhã.
E depois, há a convicção de que algures, alguém, cientista, técnico, investigador,
reduz metodicamente o campo do desconhecido por delegação administrativa da instância
social, produzindo uma informação e um saber que, verdadeiramente, já não pertencem a
ninguém.
O cidadão-citadino das sociedades industriais não tem
tempo ou vontade de olhar as estrelas, até porque o céu das cidades se torna opaco com
as luzes e fumos da civilização da correria! As estrelas mais faladas são as do cinema
e do desporto, as da política e da economia. [11]
E contudo, pela própria repetitividade e indiferença dos
dias, um imenso desejo de aventura perpassa as pulsões imaginárias do homem
contemporâneo. Vontade de não-anonimato, de alegria e excesso, paixão de reencontro com
um antiquíssimo perfil heróico. Eis algumas das obscuras razões que alimentam o
"Guiness Book of Records", o sucesso televisivo e cinematográfico de histórias
que relatam viagens aos confins da Terra ou do espaço, dos lémures de Madagáscar às
naves galácticas e maternais de Spielberg.
Nas áreas científicas de ponta, a conquista do espaço, o
conhecimento das fronteiras do universo, ocupam papel privilegiado na manutenção dos
sonhos colectivos de que necessitamos, astrónomos, operários, escritores, crianças,
todos. A este limiar do amanhã, rodeiam-no ainda equações, pinturas, medos, mão cheia
de ilusões. Uma aspiração de saber, porque sim. Para todos os que persistem em
acreditar no poder da criação e da liberdade, o prognóstico de superfície para o
futuro pode agora assinalar "céu limpo, vento fraco, neblinas matinais".
POLAROID. Oort e Tales
O cometa Halley afasta-se da Terra. A
sonda Giotto fotografa-o de perto e envia as imagens, em directo, para todo o mundo, assim
homenageando o pintor italiano que, em 1304, na "Adoração dos Magos", não
resistiu a deixar para os vindouros uma estrela de cauda rubra sobre a noite do presépio.
Centenas de homens a viram, desde que a memória é memória. Babilónios e gregos,
africanos e orientais, poetas, navegadores, gente vulgar. De então para cá,
calculamos-lhe a periodicidade, a órbita, o peso, a Composição.
À sua frente a noite quase vazia, tempo sem fim para
meditar na nuvem donde partiu um dia. Esférica, gigantesca, limites exteriores a 100.000
U.A. (unidades astronómicas) [12] da Terra, envolvendo o sistema solar. Aí vivem
milhões de núcleos cometários, montanhas de gelo e poeira, num reino de escuridão e
silêncio. Por efeito da rotação galáctica uma estrela aproxima-se dos limites da
nuvem, o suficiente para uma variação do campo gravitacional alterar a trajectória de
um desses enormes blocos. Que se pode perder para algures, mas pode também mergulhar
aceleradamente em direcção ao Sol e aos planetas interiores. Manter-se-á até o seu
"material" se gastar. Mas outros virão. O viveiro onde nascem dá para os
séculos dos séculos.
É esta a tese de Jan H. Oort, o astrónomo holandês que
há pouco mais de vinte anos sugeriu tal modelo, projectando numa distância para além do
visível essa epiderme gelada, no centro da qual uma estrela média de vida longa persiste
em brilhar. [13]
Então, por um instante apenas, um fotograma imaginário
deixa que se juntem Tales, o filósofo, a Oort, o astrônomo. Une-os a idêntica paixão
dos céus, voz que nos -diz que jamais compreenderemos o perto se não amarmos o
longe.
Porto, 1986
Levi António Malho
NOTAS DE FIM DE TEXTO
[1] - Este texto foi originalmente escrito em 1986, tendo
em vista colaborar numa publicação a editar pela Universidade do Minho dedicada a um
estudo pluridisciplinar sobre os cometas, tendo como pretexto a passagem do cometa
"Halley" pelo ponto mais próximo da Terra que ocorreu aproximadamente em finais
de Fevereiro de 1986. Vicissitudes várias impediram a concretização em livro das
comunicações reunidas para tal fim. Apresenta-se agora este texto, no seu devido
enquadramento histórico, como contribuição de uma "leitura" sobre tal tema
por parte da Filosofia.
[2] Cf. CARL SAGAN, ANN DRUYAN, "0
Cometa", Gradiva, Lisboa, 1986, tradução portuguesa de Jorge Branco, p. 26/45.
Seja-nos permitido assinalar a notável recolha de informação que este texto manifesta e
a grande utilidade que teve para este trabalho, designadamente os exemplos nele citados.
[3] - ld., ib., p. 27.
[4] Id., ib., p.31.
[5] Id., ib., p.40.
[6] - Cf. HENRI LABORIT, « L'Homme et Ia
Ville », Flammarion, Paris, 1971. (Capº III "A evolução dos sistemas
nervosos")
[7] - Cf. CARL SAGAN, ANN DRUYAN, "0 Cometa", op.
cit., p. 41
[8] - ld., ib., p. 67.
[9] - Cf. STEVEN WEINBERG, « Les trois premières
minutes de l'Univers », Seuil, Paris, 1978, p. 13/145 (cap.º I a V).
[10] - Cf. KARL POPPER, "Conjectures and refutations -
The Growth of Scientific Knowledge", Routledge and Kegan Paul, Londres, 1976.
[11] Cf. EDGAR MORIN, « L'Esprit du Temps 1.
Névrose", Grasset, Paris, 1975, p.123/261 (2.' parte: "Uma mitologia
moderna").
[12] - Unidade de medida de distância usada em Astronomia
que corresponde à distância Terra-Sol (1 U.A.).
[13] - CARL SAGAN, ANN DRUYAN, "0 Cometa", op.
cit., p. 176/185. Jan Hendrik Oort, da Universidade de Leide (Holanda), dá a conhecer os
seus pontos de vista nesta matéria em dois textos intitulados "The Structure of the
Cloud of Comets Surrounding the SoIar System and a Hypothesis Concerning its Origin"
(1950) e "Empirical Data on the Origin of Comets" (1963).