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As mulheres de Demócrito
                                    ( Por: Renato Araújo


PARA ERICA ROCHA (MEU ERIC)
 

"Segundo Demócrito, a palavra mulher (gune) é derivada de sêmen (gone)"(1)
( Etimológico Genuíno Magno- "Os Pré-Socráticos"- Frag. 122a  Demócrito in: Col. "Os Pensadores"Ed. N. Cultural 1996)
 

      A maior tendência na condição feminina na Grécia antiga, como não é novidade pra ninguém, é mesmo a da sub-condição. Nosso olhar, contudo, demasiadamente atento ao que há de distinto entre o mundo masculino e o mundo masculino em que as mulheres viveram e vivem, impede-nos com razão de vermos de outra maneira senão de forma a execrar esse seu papel social cuja tendência específica seja a educação dos filhos e a assunção de uma  “neo-maternidade” em relação ao marido.
      A posição da mulher na Grécia antiga traduz-se bem na estultíce de Fílon de Alexandria , por exemplo, o qual opõe o "intelecto masculino"  à  "sensação feminina." Quiçá esta incompreensão social e essa ignorância fisiológica não acompanhasse o  tempo e sucumbisse à vitória da "Nova Mulher" no séc. XX.  Pois, tivesse isso ocorrido, não veríamos essas tolices repetidas ainda hoje quando alguns parcos dizem que "ao homem cabe a inteligência, à mulher a sensibilidade"  - isso nada mais é que a demonstração de um sonâmbulo idealismo.
     Ao verificarmos que a concepção da mulher segundo Demócrito (talvez não tão sonâmbula) não seja a das mais atraentes daqueles tempos (quem dirá desses), veremos que não se pode mesmo salvar Demócrito do que , pasmados, podemos reconhecer aí, uma manifestação de  idealismo.
     Demócrito é o primeiro pensador que manifesta acentuadamente sua desconfiança em relação ao real, em relação à natureza. Tal como os seus predecessores, ele se admira; mas principalmente desconfia. Eis um sentimento filosófico por definição. A realidade se apresenta como um paradoxo inconcluso, impondo ao filósofo a elaboração de uma Unidade, de uma Ordem, de uma Coerência, de uma Necessidade.
     Seus colegas Jônios, embora se admirassem , não foram capazes de construir à  maneira dele, este distanciamento do objeto da admiração. A propósito do que admira, enquanto filósofo, não procurou senão esse distanciar-se do objeto que, uma vez reconhecido, é de pronto adequado segundo uma categoria  dentro da classificação.
     A maior parte dos fragmentos de Demócrito que nos restaram, são coleções de pequenos períodos, em geral normativos, que versam sobre moral e que foram compilados por antologistas e memorialistas Greco-Latinos. O teor dos fragmentos escolhidos para estas coleções revelam o gosto ou  (para não sermos anacrônicos)  revelam o interesse do compilador que nem sempre é o mais digno de nota.
     Demócrito, comentador da cultura como foram Homero e Hesíodo, contém dentro de si uma  personalidade nascente que é a fusão do "prosador da natureza" (fisiólogo) com a do "Poeta Lírico"  -  sendo o Moralista. A primeira obbservação estilística a fazer sobre esse caráter é ao que respeita sua forma breve de comunicação, ao modo dos sintagmas (sempre curtos). E, embora o pré-socrático Demócrito nos tenha chegado em retalhos, o Demócrito moralista nos fala mesmo por aforismos. Outro aspecto importante que, a partir daqui será regra, é que o moralista se verá discorrendo sobre a "natureza das coisas" que, segundo sua mente idealista, poderiam ser 'capturadas' no uso de uma especulativa.
     Demócrito não tardou em referir-se à mulher em sua especulativa sobre a cultura grega. O conteúdo geral dos fragmentos que dissertam sobre a mulher revelam, de um lado, conhecimento de causa : "Não se exercite a mulher na palavra; pois isso é coisa  perigosa." ( Sentenças, Frag. 110, 77 pág 281 ). Já um pouco menos afeito à maldade, de outro, emana-lhe o olhar do idealista:  "O falar pouco é adorno para a mulher, mas é belo também a parcimônia de adorno." (Idem, Estobeu, Frag.273 IV,23,38 Pág. 299)
    Ocorre em seus fragmentos sobre o assunto a imagem que associa a mulher à sexualidade. Se virmos isto sob o ponto de vista das relações de sociabilidade da cultura grega, na qual a mulher é facilmente confundida politicamente com o escravo estrangeiro, reforçaremos a idéia de que Demócrito pertence ao seu tempo.
       É possível interpretar, a partir dos fragmentos conservados, um conflito entre a sexualidade e a amizade . A sexualidade em Demócrito é vista de uma maneira primária, imediata, vista portanto, como o caráter irracional da natureza animal. “Coçando-se, os homens têm prazer e sentem o mesmo que ao fazer amor”    (Demócrito Frag.127, Herodiano Grámatico, Pág. 282 ).  A amizade, por outro lado, baseia-se em relações intersubjetivas de perfeição moral; efetiva-se, portanto, no exercício da racionalidade. As atividades Ética e Moral, constituem a própria atividade da razão e estas sustentam-se bem na amizade .
      É interessante notar que a visão de Demócrito sobre a mulher não provém de suas concepções sobre a natureza, como supomos que sua ética, política e moral provenham. Ou antes, talvez provenha dessas concepções sim, mas com conclusões assustadoramente díspares daquelas. Se na ética, política e moral Demócrito se constitui um materialista ( isso exprime pouco a condição teórica do atomismo), em sua visão da mulher, em todo caso, ele excede o mundo mecânico material e se refugia no ideal. Mesmo aqui, parece-nos que ele está seguindo a convenção geral dos filósofos Gregos que não farão análises independentes da cultura em relação ao papel de desempenho da mulher, e, quando nunca, limitar-se-ão às chacotas de cunho "racionalista" .
     O real, a natureza, dispõe-se como o múltiplo, confuso, variável, misterioso; fonte de engano dos sentidos. O prazer, tal como a dor, oferece resistência ao pleno exercício razão. Eles tornam breves, supérfluas e inconsistentes as apreensões da vida.
     A mulher em Demócrito é confundida, mesclada com a natureza, porque reduzida a seu papel na sexualidade masculina. É ela que é a fonte de prazer. É o motivo do desvio da razão. É a rota que leva ao caminho ambíguo do deleite e da  "auto-ilusão" dos sentidos. Assim, se a fonte de deleite é tal qual a natureza, conclui-se daí que essa fonte é na verdade aquela fonte de enganos multipla, confusa, misteriosa, variável, inapreensível etc... etc...“Ser governado por uma mulher é, para o homem, a extrema violência.” (Idem, pág.281). Forçando um pouco, entendamos aqui, se quisermos; “Ser governado pelo prazer é para o ser humano extrema violência.” ( vide nota 2 )
      Em todo caso, se tomarmos Demócrito simplesmente como um bom exemplo do machismo grego, não poderíamos observar que esta concepção permanece somente em parte, sugerida em sua filosofia. Por outro lado, se se pensar que o mundo Grego pré-socrático nas suas formas político-sociais, via na dominação sexual o mesmo dualismo "qualitativo-comparativo" entre Homens e mulheres que se vê hoje, e, em que se terá sempre no lado daqueles melhor qualidade, veremos que isso se trata de uma comparação sem base, ou melhor, trata-se de uma comparação com base relativa, porque  é uma base metafórica ou, se quisermos, idealista. Este idealismo  se encontra exatamente na observação "admirada - desconfiada" (perplexa)  do homem cético em relação à natureza. Num primeiro momento, vemos Demócrito sentindo-se incapaz de conter em si o paradoxo espetacular da natureza - o fato dela causar admiração e desconfiança ao mesmo tempo, tendendo por fim a renegá-la enquanto ciência.  Num outro, temos a própria natureza vista não "sobre", mas "sob" a pele feminina; ela representa num só tempo, refúgio e o "auto engano".
      Embora seja difícil a fundamentação desta tese, devido aos poucos indícios teóricos que nos legou a tradição, ainda assim, poderíamos dizer que a visão da mulher de Demócrito é idealizada? Sim.  O que vemos é que, para além da condição material do ser humano - cujos limites eram muito bem conhecidos por Demócrito (vide a necessidade da criação de uma ética, política e moral ainda que estas não possuam um corpus articulado à maneira Platônico-Aristotélica) sua especulativa leva-o a fazer síntese, partindo de dois conceitos "aparente" e "realmente" dispares, unindo os conceitos mulher e natureza, concebendo-as como unas ( feitas numa  mesma coisa). Demócrito faz admitir uma essência que não é material mas ideal. (que seriam a "essência feminina" ou a "essência da natureza" - se é que é possível falar isso).
 
 

                                                                                                    Renato Araújo - 08 de  Março/2001
AraujinhoR@netscape.net
 
 

NOTAS

(1) A mulher seria pois, aquela que recebe o sêmem.
 

Ps.: Sabemos que todo materialismo é um idealismo e que as mulheres têm hoje muito pouco a comemorar. Comemoremos juntos, entretanto, o fato de que esse  idealismo supracitado, pelo bom uso terminológico,  chamamos hoje de machismo. Não valorizemos, portanto, nenhuma forma de idealismo entre nós.
 

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BIBLIOGRAFIA, LINKS E ESTUDOS ATOMISTICOS SÉC.V aC. - [CORPUS DEMOCRITEUM]  

Estudos Democriteanos (Janelas textos e referências em Demócrito e os Atomistas) Estudos democriteanos
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O filósofo que chora (Heráclito) e o que ri (Demócrito)
foto: Pinacoteca de Brera, Milão.


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