1984

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«O universo é semelhante a um fole de forja./ Vazio, está sempre cheio./ Quanto mais se dá ao fole mais ele sopra./ Quanto mais se fala dele, menos se compreende,/ Melhor seria inserir-se nele.» O Tao Te King (Livro da Vida e da Virtude) é geralmente atribuído a Lao-Tse, um fillósofo céptico chinês da primeira metade do sec. VI a. c.. Anterior, portanto, à máquina a vapor, às Teses sobre Feuerbach, ao modelo T da Ford, à cisão do átomo, a Silicon Valley. A nemória dos homens é um contínuo processador de dados. Mesmo que tão-só a nossa consciência de ser em sucessão – do encadeamento (crono)lógico entre um antes e um após e das identidades fundamentais na dinâmica desse fluir – algo permanece daquilo que já não é nem voltará a ser o mesmo. Chamemos-lhe património (: o Tao Te King pode ser microfilmado), ou também cultura, sabedoria, prudência, arte. Parte delas (ou elas mesmas, de certo modo) refracta-se no futuro.

Algum escritor de ficção científica contemporâneo idealizou uma personagem (ou uma sociedade?) que, por qualquer dúbio processo de metapsiquismo, havia invertido a sua memória: ignorava o passado, conhecia o porvir. O que há afinal de estranho, senão de monstruoso, nesta vertigem referencial? Se os homens anseiam conhecer o futuro é porque este se supõe tão inamovível quanto o passado. Os últimos (?) avatares do positivismo mental aliam-se tenazmente, na produção ideológica do senso comum, à pesada herança judaico-cristã de conceitos como destino, culpa colectiva e expiação necessária. A vida é um circuito intransitivo. Atente-se como este inefável discurso, que por vezes se reclama de alerta (”Citizens of Rome, lend me your ears!"), destilando um indisfarçável ódio ao progresso e à historicidade qua tale, se refracta "criticamente", na consciência do presente, transmutado numa mensagem de acabrunhado conservadorismo, afinal, o mais seguro contributo para a confirmação das suas previsões mais pessimistas. Atente-se ainda como este discurso opera uma curiosa socialização da culpa, dissolvendo-a numa obscura e omnisciente condição humana. Mea culpa, noster culpa: Auschwitz, Hiroshima, Gulag, Vietnam, Soweto, 1984...

Enfim, não surpreende que um pouco mais que vulgar novelista britânico (tão decent, tão middle class era ele) do princípio do século tenha chamado sobre si as atenções do mundo neste ano que passa. E o tenha feito, particularmente, no que respeita ao nosso pequeno e oligopólico publicismo cultural (fiel como este é a um certo modismo coquette). Este foi, de facto, no campo da produção e exposição das nossas pequenas e médias ideias, um ano orwelliano. (Fastidioso seria enumerar as suas manifestações.) E não é isto um mal. Que Big Brother e o seu newspeak não são hoje mera ficção sabê-mo-lo todos (e não é demais repeti-lo), porque as semelhanças com situações reais são coincidências que até coincidem mesmo e Orwell não se desculparia por isso. Que o capitalismo - recessivo e falho de soluções, longamente privado das suas explosões de crescimento e abertura -, se crispa, reforçando a sua componente policial interna e externa (e respectivas coberturas ideológicas), já foi denunciado nesta revista. O fascismo está à solta (: no nosso "pacato” rectângulo oliva-vinícola – "Ai como é diferente, o amor em Portugal" -, depois de tomar fábricas e praças, intenta agora assenhorear-se dos palcos, dos telefones, do papel de carta... ). Mas a besta não se combate (como o quer certa desorientação crítica algo estranhamente persistente) com prédicas a uma boa consciência regressiva, nostálgica dos velhos valores de uma civilização rústica e patriarcal irrepetível, mas antes pela conquista de posições políticas, ideológicas e culturais para o debate sobre as opções científicas e tecnológicas do futuro.

Desconcertantemente (ou talvez não), 1984 foi também o ano em que mais extensamente penetrou entre nós uma outra corrente de pensamento prospectivo, e esta, em absoluta contradição com o disgust orwelliano, marcadamente optimista. Fala-se insistentemente de uma “tecnologia libertadora" (M. Boockchin) ou mesmo de uma "terceira vaga” (A. Toffler) que consubstanciará uma "revolução da inteligência”, eliminando as tarefas humanas penosas e repetitivas, alargando os tempos livres, potenciando um aumento exponencial da criatividade e da comunicação interactiva, reforçando as liberdades individuais e a mobilidade geográfica e social, favorecendo a constituição de comunidades auto-geridas (hey Paul Gooman!) em substituição dos velhos Estados nacionais e das suas instituições pesadas e decadentes, tudo conduzindo a uma rápida integração económica, social e cultural no âmbito de uma mesma e vasta “aldeia planetária".

Não é este o local para uma análise crítica destas propostas. Deixaremos, apenas, algumas interrogações. Como entender, na presente encruzilhada histórica, esta confluência (ou refracção) de dois discursos tão radicalmente opostos? Que níveis ou modos de legibilidade nos oferecem? Será o limiar de uma nova fase de expansão económica, acompanhada da habitual operação de aliciamento ideológico para o sistema e de alguma (real) democratização de oportunidades, posto que cautelosamente caucionada por um certo pessimismo, residual sim, mas operativo na própria mecânica de seleccionamento dos novos valores e padrões de competição?

Será antes que o sistema capitalista, intrinsecamente contraditório, desenvolvendo crescentemente as suas antinomias a um nível planetário (: aprestando-se a completar a transferência para a sua ‘periferia’ das velhas indústrias poluentes e anti-sociais - veja-se Bhopal - , reservando para as ‘metrópoles’ centrais as correspondentes tarefas de controlo da circulação de capitais) pretende adormecer o terceiro-mundo com um discurso optimista (“queimar etapas” diz-se, candidamente, entre nós) e reiteradas promessas de cooperação tecnológica, guardando para uso interno das nações desenvolvidas a injunção moral ”ecologista” como travão às pressões consumísticas conjunturalmente inconvenientes numa fase de reestruturação do aparelho produtivo?

Não são as ideias que se produzem sobre o futuro do nosso mundo habitado que operam directamente a sua transtormação ou, sequer, lhe delimitam as suas possibilidades. Elas apenas nos fornecem certas margens de revelação e ocultamento, de verdade e embuste, de autenticidade e dissimulação, as quais, e cada vez mais, é urgente saber destrinçar com rigor. Termino com Niccolo Fárra, personagem do último filme de Antonioni: «Quando os homens puderem aproximar-se do Sol, estudar a matéria de que é composto, e a sua dinâmica, talvez possamos compreender melhor o seu comportamento, e a razão de tantas coisas.»

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publicado na revista ‘Vértice’ (Coimbra), nº 463, Novembro/Dezembro de 1984.