Candidatura aos órgãos representativos da Faculdade de Direito de Coimbra, 1981-82

Lista A

Prá outra margem
(Do Manifesto)

“Tive a sorte de a construção da muralha estar precisamente no início quando, aos vinte anos, fiz o último exame da escola mais elementar. Digo que tive sorte, pois muitos que antes de mim tinham obtido o grau máximo da cultura a que podiam ter acesso, não conseguiram, ano após ano, arranjar colocação com o saber que tinham adquirido, e andavam para ali a vaguear inutilmente, com os mais maravilhosos planos na cabeça, acabando milhares deles por cair no desespero”

KAFKA, “A Grande Muralha da China”
-----------------------------------------------------------------

Papel de quem se apresenta, com formalidades a menos e a verdade que buscamos, nossa, a sobrar neste modo de estarmos aqui.

Uma mesmoa voz, contra os falsetes e travestis de uma vazia politicite juvenil. À margem dos jogos de sobressaimento e ressalva pessoais.

Sabemos das limitações à gestão participada da escola; do formalismo dos seus protestos de democraticidade; das reais limitações à nossa acção no seu seio. Por isso, nada prometemos - senão que lá ostentaremos o mesmo querer com que, cá fora, na comunhão de ideias e vontades, na acção associativa, na mobilização reivindicativa, ergueremos o realismo consciente de uma proposta de mudança.

Prá outra margem. Por uma nova geografia dos rostos que denote o reboar insistente dos largos caudais da nossa incomodidade.

.

.

Prá outra margem
(montagem com dois comunicados)

“Apesar da alta civilidade do Colégio, há que prever a resistência de alguns mancebos ao processo de Integração Integral. Para combater esse fenómeno, a fim de que só um aluno se perca (1), concede-se a criação de uma Secção de Problemas Pessoais, na qual os problemados depositarão os seus, recebendo em troca um esclarecimento, uma Advertência ou uma Ordem, consoante o calibre do problema.

(1) Toda a regra colhendo reforço da existência da excepção.”

NUNO BRAGANÇA, “A Noite e o Riso”
-----------------------------------------------------------------------

ROCK AROUND THE CLOCK

Eleições:
Vamos assistir ao habitual paroxismo demagógico da verborreia partidária. Sairão comunicados e programas prometendo a quinta essência celeste por uma cruzinha no sítio certo de um papel logo encaixado no esquecimento seguro de ums urna. Ver-se-ão os rostos quadriculados expostos nas paredes à cata de um reconhecimento, de uma adesão sem calor, de uma anuência. Depois? A constatação reiterada da impotência para os bem intencionados; o contabilidade dos votos no regresso da rotina cumprida para os outros. E, continuadamente, a frustração e a asfixia na teia esclerosada de uma Escola decrépita e senil, votados, mais uma vez, ao quietismo e à renúncia nos bafos corredores da solidão sebenteira.

NÓS. PORQUE É QUE SOMOS TÃO ASSIM?

Estamos conscientes de que não será apenas com a intervenção isolada, e tantas vezes estéril, nos órgãos de gestão que faremos brotar os ventos da mudança para os novos rumos que sonhamos. A experiência mostra-nos que, por mais enérgica, esforçada e generosa que seja a nossa actuação na Assembleia de Representantes, no Conselho Pedagógico e no Conselho Directivo, ela esbarra inexoravelmente na indiferença empedernida e no autoritarismo displicente do sector mais retrógrado dos Professores, aos quais a superioridade numérica da representação põe a salvo de qualquer inconveniência.
Por isso acreditamos no que, ano a ano, renovadamente se prova: que é na mobilização e na solidariedade estudantil, na acção directa, na movimentação livre e conscientemente crítica e renovadora, que os estudantes se poderão fazer ouvir, defendendo com firmeza os seus interesses mais imediatos e lançando a sua voz no espaço por abrir da transformação criativamente assumida.
Lá estaremos. Sempre por mais ideias a fluir na razão que somos e vivemos, aqui e agora. Com a voz que nos empresta a certeza de que não há remorsos que redimam o escoar do tempo perdido no pantanoso leito da inércia e da descrença.

ALGUNS CONSELHOS PRÁTICOS PARA VENCER A GAGUEZ

Vale ainda a pena concorrer aos órgãos de gestão? Julgamos que sim e (só) por isso aqui estamos. Apesar de comprovadamente inócua - ou pouco menos - ao nível da decisão efectiva do rumo da Faculdade, a nossa participação naqueles órgãos pode ainda relevar, no sentido de se fazer lá chegar a força do sentir que reflexivamente buscamos na raiz e na seiva do nosso modo-de-estar neste espaço. A nossa presença lá amplifica a nossa voz e abre-nos mais largas perspectivas, a concertar com o debate e o questionamento que promoveremos - nas comissões e plenários de curso, nas RGA’s - à política educativa e à gestão praticada de facto pelos Professores. Com a firmeza da afirmação própria incomprimível - contra o castramento da lição magistral, da medida-padrão que tudo-oferece-e-tudo-reduz no turbilhão de ideias feitas-formadas dos mitos e maiorias da ordem pressuposta e inquestionável.

ESTES ROMANOS SÃO LOUCOS

Que futuro nos reserva esta escola que temos e arrastamos? Querem-nos dóceis, discretos, compenetrados: homens e mulheres que “estão bem”. Depois de assimilados acriticamente os dogmas “axiológico-jurídicos” da ideologia da classe dominante, a tranquilidade acéfala de diligentes servidores da “ordem natural das coisas”. Funcionalizados alguns, de gravatas enfatuadas a roçar o ridículo da imbecilidade promovida e arrogante.
Até lá, a aprendisagem necessária dos mitos e rituais da dominação, da disciplina e da exclusão, através do papagueante método sebenteiro e da feroz competitividade da caça à nota. Tudo bem embrulhado no grandiloquente discurso do rigor científico e da promoção do mérito.

PROJECTO DE NAVEGABILIDADE DA VIA LATINA

Baseados na solidariedade dos estudantes e no reencontro com a incomodidade própria de quem tem uma vida inteira para talhar á medida do seu entusiasmo, avançamos uma proposta de mudança. Pelo alargamento do espaço de criatividade e intervenção crítica dos alunos. Pela resistência colectiva e militante a todos os atentados redutores do já débil poder de decisão dos estudantes ou que visem agravar a selectividade e progressiva degradação pedagógica do ensino. Com esta certeza de estarmos vivos, temos para nós que não há distâncias demasiadas nem caminhos que não valham a pena.
Se a alma não for pequena demais para o excesso do percurso.

++++++++++++++++++++++++++

.

.

Candidatura aos corpos gerentes da Associação Académica de Coimbra (A.A.C.) - 1983.

Lista D

Manifesto com recado urgente

A aproximação de mais um acto eleitoral para os corpos gerentes da A.A.C. é motivo de análise e decisão.

Como é hábito, digladiam-se os diversos projectos associativos, candidatos á sedção de uma maioria dos estudantes. Haverá, certamente, uma dose razoável de fumaça e fogo-fátuo, equívocos habilmente soprados na urgência de grangear, senão uma convicção, pelo menos uma anuência, a confiança resignada e suficiente.

Propomos, bem ao contrário, um projecto de participação e de comprometimento. Cremos que a Associação se assume na partilha e solução das diferenças num projecto de vivificação da comunidade que formamos e queremos.

Uma Academia não é um lugar transitório, onde a fricção precária dos interesses se baste para iludir o irreparável vazio que deixam no seu rasto. Há que congregar esforços e vontades onde eles existem, do todos os espaços vitais que, insubmissos à erosão da rotina e do enclausuramento, persistem em demandar o futuro, aquilo que é real.

Para isso convocamos todos os estudantes.

Àqueles que anseiam a renovação da vida académica, por demais comprometida no funâmbulismo das pequenas ambições e medíocres enredos; aos que vêm proteladas as suas legítimas aspirações pelo arrastamento dos tratos da incompetência e da cumplicidade. A todos teremos uma palavra a dizer e a ouvir.

Seremos então memória e novação que se conjugam no hábito dos caminhos. A inexcedível união.

.

Extractos do Programa
(em colaboração com Margarida Gaspar)

Pequena notificação

Cremos que a palavra não é opaca, e para que o silêncio não valha como um assentimento, vamos dizer como o poeta: “há sempre mais caminhos por trilhar na rosa dos ventos”.

Prensados nas peias de uma granítica muralha, dissociada das exigências e solicitações mais prementes de uma vida plena - a Universidade - os estudantes, alvo de um anacrónico sistema de ensino, que não cessa de proliferar e degenerar, insurgem-se contra a modorra, ousando demolir este férreo alheamento, aproximando a Universidade dos destinos da “polis”.

Propomos renovar métodos e motivos de agregação dos estudantes numa vida que se redescobre incessantemente enquanto as nossas vontades se se espraiam por campos inusitados e insubmissos.

Recriar o tempo presente em Coimbra, como lugar vital de demanda do futuro, exige que se tolha o passo à massificação da existência, ao pequeno comércio da transitoriedade e da mesquinhez.

Escarposas serão as vertentes que nos dificultarão os trajectos. Mais urgente se faz a ciência de os percorrer agora.

.

Debate

ENSINO E MODO DE ESTAR

O acto de ensinar é indispensável em qualquer tipo de sociedade humana constituída ou imaginável. Traduz um mínimo de solidariedade entre as várias gerações que a compõem e vão reproduzindo segundo as suas necessidades históricas. Assim se acumula um património cultural com o qual se vai gerindo a existência social possível.
Por isso, e sendo esse património imprescindível (e determinante) à organização social a que se refere, jamais o modo da sua reprodução e alargamento poderá ser neutro em relação aos princípios de configuração da cidade.
Ensina-se: renova-se a ordem das coisas e das circunstâncias, o lugar de cada um no conjunto de todos nós em movimento condicionado por uma ordem endógena de possibilidades restritas.

UNIVERSIDADE EM CRISE,
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

O ensino dito superior é aquele que forma os indivíduos que ocuparão os postos cimeiros na sociedade, o retábulo da decisão socialmente relevante. Daí a particular importância que reveste, reflectida, nomeadamente, na sua especial sensibilidade às coordenadas da evolução social.
A Universidade está em crise quando deixa de servir de modo conveniente as necessidades que a sociedade lhe põe. Se o desenvolvimento económico exige o aumento dos quadros especializados, colmatando campos específicos que o processo produtivo vai trilhando, é a própria noção de autonomia do saber que é posta em causa. A Técnica comanda a Ciência, a Universidade submete-se ou é marginalizada para o canto reservado às luxuosas inutilidades.
Não pode a Universidade, contudo, ser apenas um alfôbre de recrutamento do factor trabalho no processo produtivo, sob pena de desvirtuar todo o tecido social. Uma formação exacerbadamente tecnicista ou profissionalizante, como teimam em nos desferir, apenas vai exaurindo a essência e o sentido do humano que são por natureza plurívocos.
O Homem insere-se num espaço poliédrico, onde converge a multilateralidade do saber e onde, inexoravelmente, a técnica não pode ser eleita à omnisciência, manietando os Homens na teia de uma suicida engrenagem, numa perspectiva utilitarista e inócua da vida, que tudo investe na feitura de dóceis seres laboriosos - “não-pessoas” onde “cada um de nós não conhece cada outro”.
Eis porque zelamos por uma verdadeira autonomia universitária, impedindo que esta seja um “instrumento indutor do conformismo utilizado pelo Estado”, moldando os indivíduos ao estereótipo.
Dizemos não ao “academismo estéril” e estagnante. Dizemos não ao “eunuquismo espiritual”. Urge “atacar a estrutura binária e unidireccional dos papéis” - docente versus discente - “substituindo-a por uma relação de reciprocidade” interactiva.
Queremos pôr cobro ao bloqueio cultural e crítico que nos infligem através de um saber hermético, monologante e unilateralista, divorciado da “praxis”, asfixiando-nos numa constrangedora e cerceante passividade e submissão. Por um ensino onde possam desabrochar livremente a individualidade e criatividade de todos e cada um.
Para que a aprendizagem não seja desaprendizagem, “que a educação se torne criação conjunta de todos nós”.
“Anuir em qualquer momento e de qualquer maneira às injunções brutais ou subtis do sistema burguês (...) será uma forma lenta de morrer, que apenas nos garante que virá cedo demais.”
“Assim vamos agora deixar a morte morrer. É o mais vital de todos os actos políticos.”

QUESTÕES PEDAGÓGICO-CIENTÍFICAS

As mentalidades dos homens reflectem as coordenadas do momento histórico em que se situam. A este truísmo não escapam mesmo os detentores de um saber pretensamente essencial, inquestionável. A erosão do tempo corrói os paradigmas científicos e culturais obsoletos ainda que os seus arquitectos e seguidores protestem a sua verdade intrínseca. O ensino magistral e sebenteiro, ainda grandemente dominante entre nós, em breve cederá o passo a novos modos de transmissão de conhecimentos, porventura mesmo, como será desejável, a um novo relacionamento entre os seus sujeitos que supere a tradicional dicotomia entre actitudes activa e passiva, com reflexos repressores que se evidenciam ao nível da avaliação.
A Universidade tem de deixar de ser um meio de controle na “normalidade” social (que premeia a docilidade e o conformismo em relação à ordem estabelecida ao mesmo tempo que vem proclamar a sua neutralidade ideológica) para passar a entender-se como espaço de livre debate, contradição e eventual compromisso entre diversos modos de sentir e entender o tempo presente.
Se tudo isto passa pela verdadeira e própria Autonomia Universitária, esta projecta-se, no foro interno da Academia, por novas relações pedagógicas que estimulem a participação dos estudantes na sua própria formação.
Entretanto, cabe aos estudantes organizarem-se em grupos autónomos de estudo e pesquisa interdisciplinar como única forma de escapar ao redil da massificação escolástica ou da redução tecnocratizante. As grossas portadas da Universidade de Coimbra não consentem, para já, outra evidência de luzes renovadas.

LUGAR AQUI

A actual cidade universitária é dominada por um conjunto de blocos graníticos cuja única coerência de conjunto é a que lhe confere o irreparável tom da mais ultramontana megalomania. A (in)utilidade deste espaço que temos é a medida da nossa impotência para resolvê-lo em condições de trabalho agradável e profíquo.
A falta de condições materiais indispensáveis ao estudo e à optimização do rendimento das aulas completa o circuito da renúncia, empurrando os estudantes para a luz mortiça dos seus quartos onde sorvem a sebenta dos seus dias.
Sem a criação de condições mínimas de apoio ao estudo - nomeadamente, a dotação das Faculdades com material didáctico audio-visual (ou o pleno aproveitamento do já existente), a contratação de mais leitores de línguas estrangeiras bem como de consultores habilitados a orientar pesquisas, o enriquecimento das bibliotecas e levantamento dos entraves ao seu acesso - o estudante continuará sem condições para aumentar o seu rendimento escolar e viabilizar o seu esforço e iniciativa de auto-formação.

.

+++++++++++++++++++++++++++++++++++

Panfleto estudantil

TOMADA DA BASTILHA

-Razão de co-memorar

A memória do movimento associativo dos estudantes de Coimbra encontra, no segundo quartel do século passado, as primícias da sua afirmação orgânica numa associação chamada "Academia Dramática de Coimbra", sediada no edifício velho Colégio de S. Paulo (onde actualmente se ergue a Biblioteca Geral). Filiando estudantes e não estudantes até ao limite estatutário de seiscentos, correspondente aos lugares da plateia do "Teatro académico", as suas actividades iam da representação teatral aos jogos lícitos, proporcionando ainda um gabinete de leitura.

O carácter discriminatório e elitista daquela associação e a modéstia dos seus objectivos cedo revelaram a necessidade de a substituir por algo de novo. Assim se fundou, pela reforma dos estatutos da A. D. C. em 1887, a Associação Académica de Coimbra, cuja primeira prvsidência coube a essa inexcedível figura de republicano e democrata que foi António Luís Gomes. Além de alargar a possibilidade de filiação a todos os estudantes, a nova associação prescreveu como seus fins ”a instrução e recreio dos sócios por meio de saraus literários e musicais; gabinete de leitura; jogos lícitos; representações teatrais e outras reuniões de honesto recreio" (dos ‘Estatutos’ de 1887).

Logo de seguida, o extremo dinamismo que caracterizou o movimento estudantil da época levou à criação – em Março de 1890, na cidade do Porto - da Federação Académica Portuguesa, cujos objectivos eram, nomeadamente: "Remodelar o ensino, incluindo a educação física, mediante a criação de instituições convenientes; Equiparar as escolas congéneres; Uniformizar os programas; Fundar associações académicas; Educar moralmente o povo português e regenerar os costumes políticos; Difundir a educação por todas as classes; Proteger as classes trabalhadoras; Radicar na sociedade portuguesa o espírito de democracia pura" (1).

Entretanto, em Coimbra, o grande entrave ao desenvolvimento do movimento associativo estudantil era a falta de instalações apropriadas. O vetusto ediffcio do Colégio de S. Paulo, que já ameaçava ruína, foi interdito pela inspecção teatral e finalmente demolido. Provisoriamente instalada no edifício da Trindade, a A. A. C. encetou um moroso processo de reivindicação de instalações próprias junto do Governo Central. Este foi protelando a resolução do problema por sucessivas promessas e adiamentos até que um grupo de quarenta estudantes, coimbrãos, chefiados por Fernandes Martins, tomou de assalto as luxuosas instalações de um centro de ócio para professores catedráticos, o velho Clube dos Lentes - no Palácio dos Grilos, à Rua Larga, onde actualmente se encontra instalada a Secretaria Geral da Universidade de Coimbra - hasteou nelas a bandeira da A.A.C.. Na manhã de 25 de Novembro de 1920, ao sinal combinado de um foguete, repicaram os sinos da Universidade de Coimbra accionados por mãos estudantis, chamando à concentração e festejando um acontecimento que se perpetuaria na memória de sucessivas gerações de estudantes com o sugestivo nome de ‘Tomada da Bastilha’.

Que significado dar, hoje, a um evento tão longínquo já no tempo que difícil será encontrar vivo algum dos seus protagonistas (apesar da sua juventude de entâo)? Porque será que a data de 25 de Novembro adquiriu tal significado, a ponto de se ter instituído em Dia do Estudante de Coimbra? Qual a razão da perenidade simbólica de um acto que, em si, poderá não ter sido muito mais que uma bravata juvenil, semelhante a tantas outras que preenchem a história da irrequieta mocidade estudantil de Coimbra, na sua estúrdia permanente de conquistadores de glórias de papelão ou no seu indomável sentido de abnegação e busca do sacriffcio por uma identidade e um futuro resgatados ao pétreo silêncio das instituições?

A resposta a estas qaestões só pode achar-se considerando o indesmentível sinal de maturidade e auto-determinação responsável que a Tomada encerra. Porque "a irreverência quotidiana, apanágio do estuclante de Coimbra, fundiu-se no saudável inconformismo de não ceder aos mitos que estorvam o desenvolvimento pleno das coisas que vivem" (2).

A consciencialização social dos estudantes e a plena expansão da sua criatividade, indissociável da responsabilidade pela sua manifestação, exigiram dos estudantes o associativismo. A viabilidade deste projecto, o seu sentido interventivo e vivificante, pressupunha condições materiais para a sua execução. A Tomada ela Bastilha foi (é), simultaneamente, a assunção do risco pela própria existência e a denúncia da asfixia que lhe reprime a expressão de uma mensagem de progresso e confiança no futuro.

Por isso, e ao largo de mais de sessenta anos, as comemornções do 25 de Novembro constituíram sempre a reafirmação da vontade dos estudantes conduzirem os seus destinos numa senda prospectiva de cariz progressista. Tratou-se sempre de recriar o espírito daquela data para o colocar ao serviço das concretas aspirações dos estudantes num dado momento. Fossem elas o reforço do movimento estudantil a nível nacional (através do convite à, participação de estudantes de outras Academias); a luta contra a repressão, as Comissões Administrativas impostas pelo fascismo e pela livre eleição dos corpos gerentes; a solidariedade com o movimento popular.

É também esse sentido histórico da Tomada da Bastilha a razão porque ela se continua a comemorar hoje (com plena actualidade), ao contrário de outras efemérides tradicionais da vida académica como a ”Festa do Badalo" – comemorativa do arrojado e pitoresco mas inconsequente roubo do badalo da "Cabra" (sino da Torre da U. C.) no século passado. Aquele foi posteriormente integrado no Museu Académico e daí novamente "raptado" por um grupo de estudantes que o devolveu mais tarde, em 1952, tendo para o efeito sido constituído um monumental cortejo alusivo e tendo-se então lançado um periódico editado pelo Conselho de Repúblicas que perduraria com o nome de "O Badalo" (3).

É pela dialéctica integração de tradição e modernidade, pela sua conjunção através de uma unidade de sentido perceptível embora sucessivamente renovada, que vale a pena rememorar o passado. Sem saudosismos imobilistas mas também sem a vertiginosa ilusão de que tudo nasceu agora mesmo à flor dos nossos olhos definitivamente perdidos de espanto, na sucessão dos instantes irredutíveis.

"O acto dos bravos estudantes de 1920 será histórico se nele soubermos descobrir uma mensagem válida para os nossos dias (...); a Tomada da Bastilha será uma escada de ascenção, um verdadeiro acto de heróis, porque 'os heróis são razões em marcha’, se os estudantes virem nele o que é futurível, seja: se compreendermos o que no acto ficou incubado, inacabado, imperfeitamente realizado" (4).

Neste ano, em que a boçalidale atávica de uma gestão anti-estudantil arruinou e agora proclama a inviabilidade do associativismo, é uma vez mais urgente tomar as Bastilhas das nossas jovens verdades, eleger o futuro entre nós, com a certeza de assim cumprir a mensagem inscrita no significado de uma "história” que hoje relembramos.

As Repúblicas e Solares de Coimbra
<

25 de Novembro de 1983

.

_____________
NOTAS:

(1) Cf. o artigo de António Luis Landeiro no nº 132-133 da ‘Via Latina’, de 28/11/61. No mesmo número podem-se ainda consultar, com interesse, os artigos de A. José Soares e José Carlos de Vasconcelos.

(2) Do comunicado do Conselho de Repúblicas de 25/11/65.

(3) José A. Rocha em artigo no nº 134 da ‘Via Latina’, de 7/12/61.

(4) Sobre o assunto ver Trindade Coelho, "In illo tempore", Portugália Editora, bem como a acta do 8º Conselho de Repúblicas (7/11/52), no respectivo Livro de Actas, gentilmente cedido pela Real República dos Pyn-güyns.