Europa, que Europa?

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O colapso espectacular do Sistema Monetário Europeu, juntamente com os tratos de polé a que vem sendo sujeita a ratificação do Tratado de Maastricht, veio certificar inequivocamente o que já se podia calcular desde a queda do Muro de Berlim: não vai haver qualquer avanço real de integração política na Europa pelo menos até bem dentro do próximo século. Na falta de um forte e indisputado polo confederador (papel que a Alemanha se escusará ainda a assumir nas próximas décadas), as velhas rivalidades inter-imperialistas viverão em continuada tensão atractiva-repulsiva no coração do continente, remetendo ao descanso a ilusão "contratualista" de que as burguesias nacionais cederiam gradualmente parcelas acrescidas da sua soberania a uma entidade política comum. Não é que o seu projecto (inaudito, como notou Edgar Morin) de fusão por mútuo consentimento numa unidade política nova careça em absoluto de sentido histórico. As burguesias europeias encontram-se extremamente enfraquecidas, na ressaca de séculos de rapina mundial e de digladiação mortífera. No princípio deste século, quando o planeta inteiro era ainda o palco em que se jogavam rivalidades entre as "metrópoles", um tiro de pistola em Sarajevo bastou para precipitá-las numa guerra dita mundial. Hoje, o lento restolho da barbárie balcânica deixa-as confusas, desinteressadas, debitando em vagas flatulências humanistas a sua impotência política. Nenhuma tentação intervencionista. Nenhuma tensão ou choque político maior no triângulo Londres-Paris-Bona confrontado com uma guerra nas suas fronteiras. Quando interesses, entrepostos, rotas, produtos e fluxos vitais a todo o mundo capitalista são postos em causa, a sua resposta é tenteante, cabisbaixa e subordinada. É este o horizonte da unidade europeia no século XXI. O retraimento. A "regionalização". A reforma luxuosa na honorável pátria do homem branco.

Uma intregração (relativamente) pacífica da Europa é um processo historicamente credível. Já uma integração por livre aproximação equilibrada e gradual entre os diversos Estados contratantes é uma fantasia utópica sem qualquer cabimento. Esta transposição espúria para a política de blocos de conceitos oriundos do direito civil - livre outorga, consentimento, igualdade jurídica dos contratantes, etc. - não pode mascarar por inteiro realidades que são muito mais profundas. Em qualquer altura do processo há-de surgir um centro de gravidade, um polo gerador da dinâmica de conquista própria e necessária ao processo. Esse polo só pode ser a Alemanha, apoiada num forte bloco continental germânico (Áustria, Suiça, Holanda). Este é o coração da Europa, se algum dia ela tiver algum. Por persuasão ideológica, atracção económica, ou pressão centrípeta, virá (ou não) a adesão mais ou menos subordinada das velhas metrópoles coloniais decadentes, da faixa atlântica e da bacia mediterrânica, dos escandinavos, eventualmente também de checos, polacos, húngaros, eslovenos e croatas, com o encargo de reforçar a "marca" eslava. Para lá, os outros, a não-Europa.

O movimento comunista e operário desvalorizou persistentemente nas suas análises de conjuntura política, os factores de carácter cultural e nacional, em favor de um estafado esquematismo economicista universal. Qualquer alusão àqueles era desqualificada como misticismo reaccionário, não científica. Não era assim, porém, que procediam os próprios fundadores do marxismo, em cujos textos de análise histórica podem ser encontradas frequentemente referências a caracteres e especificidades dos diversos povos. Que as definições de tais caracteres nacionais carecem de rigor científico, sendo sujeitas frequentemente a intensa manipulação ideológica, não existe qualquer dúvida. Nenhuma prática política, entretanto, pode ser inteiramente baseada em análises científicas, ideia esta que só pôde achar guarida nos cérebros "diamáticos" da velha Academia das Ciências da U.R.S.S.. Admitir que as diversas burguesias nacionais têm um património próprio acumulado de cultura política e económica, bem como rotinas organizativas, modos de sociabilidade e sistemas de expectativas sociais que as diferenciam, por vezes marcadamente, de outras nações com o mesmo modo de produção dominante não é nenhuma cedência a nebulosos "volkgeist", antes uma constatação empírica evidente. Sendo a luta de classes o motor da história (capital e trabalho não têm pátria), não se pode facilmente negar, no âmbito da autonomia relativa da instância política, a importância conjuntural por vezes decisiva destes complexos ideológicos de raiz nacional, responsáveis por inúmeros conflitos inter-imperialistas por sob cujos destroços a revolução pôde já, a espaços, abrir algum caminho. Sucede precisamente que estes factores culturais estão hoje no centro do debate e confronto em que se decidem as vias da Europa capitalista.

Há dois modelos de organização económica, dois capitalismos (Michel Albert) em disputa no espaço europeu. Por um lado, o decadente modelo anglo-saxónico, liberal, baseado num individualismo ilimitado, na sede desenfreada do ganho imediato, com tendência para intumescimento financeiro e a desordem especulativa. Por outro, o modelo renano ascendente, mais estatista, apostando num desenvolvimento sustentado, produtivista, com planeamento a prazo e uma densa floresta de instituições de controle e enquadramento "social". Na disputa entre estes dois modelos já não há muitas dúvidas sobre o vencedor. A questão é se este vai no futuro acentuar a sua componente social-democratizante e reformista, com umas tintas francesas de universalismo humanista, ou evoluirá antes (sob o influxo da crise) para um tipo de organicismo policial, para uma sociedade mais holista e repressiva, exercendo um apertado controle administrativo da vida e mobilidade dos seus cidadãos, excluindo rigorosamente o "estrangeiro". Ninguém pode esquecer que a última Europa que houve como ideal político foi a do fascismo rácico e higienista dos anos 30-40. Em qualquer destes casos, a Grã-Bretanha pode sempre, a todo o momento, exercer o seu opting out. Tem fortes "afinidades electivas" com outros espaços e desejaria ainda certamente poder realizar o sonho de Churchill de uma associação hegemónica dos "povos de língua inglesa". A sua crise é tão profunda (na verdade, um declínio histórico irreversível) que, nos próximos anos, não poderá decidir-se a mais que arrastar os pés, tentando por todos os meios, com apelos à nostalgia atlantista, sabotar uma integração europeia que sente como profundamente violadora da sua identidade própria.

Além da diversidade dos caracteres culturais nacionais, e em articulação com estes, há ainda diversos níveis de desenvolvimento das formações sociais concretas, determinando os vários graus de subordinação no sistema integrado global do capitalismo. A persistência numa tendencial visão do mundo dividido entre uma única classe operária e uma única burguesia transnacionais, frente a frente, não é hoje sustentável (se alguma vez o foi...), mesmo que limitada ao espaço europeu, podendo acarretar graves distorções de análise e induzir a classe trabalhadora em aventuras sem saída. A solidariedade operária internacional é um objectivo a atingir, mas é também necessária a coragem de reconhecer que tal objectivo, dada a disparidade estrutural e hierárquica entre as diversas unidades socio-políticas componentes do complexo sistema capitalista mundial, é um objectivo estratégico cada vez mais difícil e distante. Assim, conjuntural e regionalmente, podem e devem ser buscadas outras alianças anti-capitalistas e anti-imperialistas (com movimentos nacionalistas burgueses, com franjas profissionais e intelectuais em situação de ruptura, com grupos populacionais socialmente desqualificados, imigrantes, etc.) contra a burguesia e, por vezes, contra as próprias organizações operárias dos países do "centro" imperialista. Vem isto a propósito da tendência oportunista simétrica, mas complementar, dos "PC's" europeus (incluso o português), marcadamente nacionalista e patrioteira, por vezes já com tradução directa em fenómenos de xenofobia e racismo "operários", a qual deve ser combatida com o maior vigor. Ou do "trade-unionismo" burocrático, enquistado na defesa de interesses de grupo, por vezes gigantescos e predatórios.

A linha de frente da revolução mundial não atravessará certamente esta Europa "comunitária", mas podem-se desde já conquistar nela posições importantes para a causa dos explorados (posições de luta contra a alienação consumista, a degradação ambiental, o racismo, etc.), porventura decisivas se se souber aproveitar todas as contradições do adversário (e as mais amplas do sistema mundial) ao serviço de uma estratégia coerente visando a instauração de uma nova ordem produtiva e distributiva à escala planetária.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 37, Novembro-Dezembro de 1992.

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As velocidades da Europa

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A partir de 1 de Janeiro próximo, a União Europeia terá mais três (provavelmente quatro) membros. Aderirão a Áustria, a Finlândia, a Suécia e, tudo o indica, a Noruega. Consumado este alargamento, há mais na calha. A Polónia, a república checa e a Hungria serão os próximos. Depois talvez a Eslovénia e a Eslováquia, Malta, os países bálticos, Chipre, Turquia... A batalha entre o alargamento e o aprofundamento da União irá ser travada e decidida certamente até ao final do século. Teremos então ou a fortaleza Europa, pátria unificada do homem branco, ou uma mera região de comércio livre, agregada ao bloco geo-político da N.A.T.O.. De um lado o eixo franco-germânico, do outro a Grã-Bretanha. Não falta quem veja desenhar-se uma desforra "por outros meios" do desfecho da II Guerra Mundial, uma correcção do alinhamento e relação de forças imperialistas resultantes desta no sentido de um maior predomínio do factor continental em detrimento do atlântico. Certo é que o projecto da união política europeia poderá sobreviver a este alargamento e, porventura, até ao próximo, dentro da lógica da Europa de "geometria variável" ou a várias velocidades. A partir daí, se falamos da adesão de países balcânicos, da Turquia ou de membros da C.E.I. é porque o edifício já ruiu por completo e estaremos na presença de um mero bloco comercial ao mesmo nível da N.A.F.T.A. ou da A.P.E.C..

No próximo ano, com a Comissão Europeia remodelada, começarão as conferências inter-governamentais sobre a união económica e monetária. Entrará também em funções o Instituto Monetário Europeu, embrião do futuro banco central. É claro como a água que a maioria dos países membros não vai cumprir os critérios de convergência nominal em 1999. Um défice orçamental de apenas 3% e dívida pública acumulada de apenas 60% do Produto Interno Bruto não estão ao alcance de qualquer país. Sobretudo daqueles (Espanha, Grécia, Irlanda e Portugal) que são simultaneamente tentados a efectuar despesas públicas extraordinárias para poderem absorver os fundos estruturais disponíveis até 1999 precisamente. É que não é só pegar nos ecus e fazer as obras. Por cada ecu disponibilizado é preciso juntar-lhe pelo menos outro de despesa pública dos países receptores. Quanto à inflação, é preciso atingir um índice não superior em mais de 1,5% à média dos três países comunitários com melhores resultados. Neste momento só o Luxemburgo cumpre todos os critérios de convergência nominal. Em condições de os vir a cumprir, estarão tão só a Alemanha, a Áustria, alguns dos países nórdicos e os do Benelux. É claro que sem a França não se pode fazer nada. Está definido o primeiro pelotão. Estes avançarão porventura para a moeda única no dobrar do milénio. Os outros ficarão à margem em círculos sucessivos, à espera de uma oportunidade para entrar. E só entrarão depois de rigorosas curas de emagrecimento à custa do sangue, suor e lágrimas das suas classes trabalhadoras e das últimas ilusões "desenvolvimentistas" das suas classes dirigentes. Imaginemos que entram. Depois de entrar, adeus políticas de fomento baseadas no investimento público, adeus manipulação das taxas de câmbio para favorecer a balança comercial, adeus manipulação das taxas de juro para favorecer o investimento privado. É imposta a convergência dos índices económicos sem convergência real das economias. A moeda portuguesa é igual à alemã, emitida pelo mesmo banco. As mercadorias, incluindo os bens de consumo essenciais, terão preços uniformizados. A taxa de juro e o índice de inflação serão únicos. Mas o salário médio em Portugal é, por hipótese, de duzentos ecus, enquanto na Alemanha ele é de mil e assim permanecerão ambos. Dirá um economista "clássico": Mas então o capital alemão fugirá em massa para Portugal atraído pelos salários baixos e, em breve, pelo jogo da lei da oferta e da procura, estes serão equilibrados nos dois países. Erro. O capital mais produtivo tem outras condições de rentabilidade na Alemanha, incluindo infra-estruturas avançadas e uma força de trabalho mais qualificada. Só virão para Portugal as indústrias mais desqualificadas, de baixa produtividade. O único factor capaz de equilibrar o sistema seria a livre circulação dos trabalhadores. Mas quem acredita ainda nela? Serão liberalizados todos os mercados, salvo o da força de trabalho. E serão assim potenciados ao máximo os mecanismos da troca desigual, pois que o produto de cinco horas de trabalho português continuará a ser "livremente" trocado no mercado europeu pelo de uma hora de trabalho alemão. E isto na mesma moeda, num mercado unificado. O sistema poderá sobreviver a uma tal grau de exposição dos seus fundamentos?

A integração europeia obedece a uma dinâmica simples. As potências industriais (máxime, a Alemanha) vêm derrubadas as barreiras alfandegárias, abrindo-se-lhes de mão beijada os cobiçados mercados nos países menos desenvolvidos. Com isso expandem-se os seus centros acumuladores que passam a ditar as regras do jogo económico em todo o continente. Em troca disso, contribuem liquidamente para o orçamento comunitário, com o que conseguem subornar as burguesias e burocracias dirigentes dos países periféricos, alimentando-lhes a retórica estafada da convergência real e do apanhar dos comboios com que estas trazem à trela as suas classes médias e o eleitorado ensonado. Na periferia, o tecido produtivo vai então sendo desmantelado mas há dinheiro a rodos para vias de comunicação, serviços diversos, intermediários, comércio e especulação. É o modelo do desenvolvimento dependente ou desenvolvimento do subdesenvolvimento. As receitas do orçamento comunitário são constituídas pelas receitas da Pauta Aduaneira Comum, por um percentual sobre o IVA cobrado nos seus países e agora também por uma contribuição líquida ligada ao produto interno bruto de cada Estado membro. São os ricos que pagam: os que importam mais, os que consomem mais, os que têm maior produto interno. E quem é que recebe? Em primeiro lugar, os médios e grandes agricultores que vêm a sua produção subsidiada pela Política Agrícola Comum (PAC). É verdade que o peso da PAC no orçamento comunitário tem vindo a baixar, devido à oposição violenta dos E.U.A. à política de subsídios à agricultura. Com a entrada em vigor do novo tratado G.A.T.T. essa tendência deve manter-se, apesar da oposição firme da França. Embora a PAC continue a absorver mais de metade das receitas do orçamento europeu, é possível que venha a ceder o primeiro lugar ao outro grande capítulo das despesas comunitárias: os fundos estruturais. Presentemente, cerca de 1/3 dos dinheiros europeus vão para a ajuda ao desenvolvimento dos países mais atrasados no seu seio, percentagem essa que pode ainda subir. Bom, mas então a União Europeia é uma verdadeira associação filantrópica e de solidariedade entre os povos. Não exageremos. O orçamento comunitário é de cerca de 1% do produto total europeu, pelo que não tem real influência em termos de redistribuição da riqueza. Por outro lado, aquilo que os países mais ricos pagam para o orçamento europeu é apenas uma pequena parte do que as suas burguesias ganham com a abertura dos mercados. A dinâmica global resulta em chupar para o centro e borrifar depois um bocado para as pontas. É uma máquina centrípeta com um dispositivo externo de compensação para não "aquecer" demais. Os centros acumuladores ficam cada vez melhor definidos. O ritmo é marcado pelas burguesias que detêm as indústrias altamente produtivas e tecnologicamente avançadas. As burguesias periféricas (satisfeitas na sua venalidade por via administrativa) são remetidas para o papel de intermediárias, colaboradoras em tarefas produtivas menores, prestadoras de serviços, fornecedoras de matérias primas, receptoras e tratadoras de lixos industriais.

É esta a lógica inexorável do capitalismo e, dentro dela, integrar por completo, económica e politicamente, formações sociais desigualmente desenvolvidas só pode significar agudizar as suas contradições até ao ponto de explosão. A isto acrescem ainda as fortes rivalidades imperialistas que subsistem entre, nomeadamente, a decadente burguesia inglesa e a sua pujante congénere alemã. Por tudo isto me parece que a integração europeia, no mínimo, será lenta e pontuada por sucessivos ciclos de atracção e repulsa, donde poderão resultar fracturas graves. Ainda agora o vimos, com a catastrófica derrocada do Sistema Monetário Europeu. Neste contexto, é possível que assistamos à unificação monetária do seu centro continental em torno do eixo franco-alemão, subsistindo nas suas bordas uma periferia mediterrânica, outra britânica e talvez mesmo uma eslava com o grupo de Visogrado (Polónia, Hungria e república checa), mantendo os escandinavos a sua posição expectante e reservada. É a Europa possível, senão mesmo a provável. O outro cenário será o da completa ruptura, e aí já nada espantará que haja adesões em série. Até a Turquia e os países balcânicos poderiam entrar, pois que estaríamos então a falar de uma coisa completamente diferente, muito mais próxima da velha Europa. A de sempre.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 47, Novembro-Dezembro de 1994.