TORNAR POSSÍVEL O IMPOSSÍVEL
A Esquerda no limiar do século XXI
- Marta Harnecker
Campo das Letras, 2000.

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Marta Harnecker é uma conhecida jornalista e investigadora chilena que se aproximou do marxismo nos anos 60, quando estudou em França tendo aí sido discípula de Louis Althusser. Dessa época data a sua obra ‘Conceitos Elementares do Materialismo Histórico’ que muitos leitores possuirão nas suas bibliotecas. É um dos mais impressionantes best-sellers de sempre da literatura marxista, tendo vendido milhões de exemplares em todo o mundo. Desde o golpe de Pinochet, em 1973, Harnecker vive em Cuba, onde actualmente dirige o Centro de Investigaciones Memoria Popular Latinoamericana (MEPLA). A sua bibliografia é hoje já vasta, com destaque para o ensaísmo sobre temas político latino-americanos.

O presente livro pretende ser um guia temático para a reflexão da esquerda (em particular a latino-americana) nestes tempos finisseculares de mutações aceleradas na organização produtiva do capitalismo e de brutal ofensiva neo-liberal. É uma espécie de obra aberta que teve já várias versões preliminares e contou com a colaboração de dezenas de pessoas. O livro tem aliás os seus parágrafos numerados - de 1 a 1.401 - para facilitar referências a futuros críticos e colaboradores. Entre os que acompanharam a obra desde o início conta-se Miguel Urbano Rodrigues, que assina o prefácio à edição portuguesa, onde aproveita aliás para reprovar à autora “a forma generalizante como coloca a temática do direito de tendência nos partidos de esquerda”. Afora este delicado pormenor, parece haver forte entusiasmo com esta obra para as bandas da Soeiro Pereira Gomes. Bem promovido, o livro tirou já uma segunda edição em escassos meses. Na Festa da Alegria, em Braga, a obra foi inclusivamente o objecto exclusivo de um debate com a participação de três destacados dirigentes nacionais do PCP. O que provavelmente se repetiu também na Festa do Avante.

A obra de Harnecker divide-se em três partes bem distintas. A primeira parte - que não merecerá aqui reparos especiais - intitula-se “Os objectivos que definem a esquerda” e é basicamente um apanhado da vida da esquerda latino-americana desde a revolução cubana aos nossos dias, situada no respectivo contexto histórico mundial. É curioso o esforço feito pela autora para se justificar retrospectivamente pela sua entusiástica adesão à “perestroika” gorbatchoviana, rematando com uma larga vénia a Fidel Castro por este desde muito cedo (“precocemente”) ter visto que tudo aquilo só podia dar esturro.

A segunda parte do livro - “O mundo de hoje” - é bem mais problemática. Harnecker procura aqui dar-nos conta das encruzilhadas fundamentais em que se encontra a sociedade burguesa contemporânea. Harnecker é estudiosa e uma boa divulgadora de ideias (aqui e ali menos rigorosa), mas não é ela própria uma pensadora de fôlego. A sua exposição é viva e interessante mas amiúde, por falta de capacidade crítica e sintética, descamba para o pastiche e o eclectismo. É sumamente intrigante observar a dependência em que cai relativamente a um pensador tão quintessencialmente burguês e pós-modernista como o sociólogo espanhol Manuel Castells (1). Para não falar já dos norte-americanos Jeremy Rifkin e Robert Reich (o primeiro ideólogo de cabeceira de Clinton, o segundo seu ex-responsável na área laboral).

Provavelmente sem se dar conta, Harnecker aplica (empobrecido) o modelo da escola da regulação de Michel Aglietta na sua análise da transição do modo de regulação fordista ao pós-fordista (ou toyotista). Esforços mais interessantes nesse sentido foram já feitos por Alain Lipietz ou Benjamim Coriat (com menos ganga “marxista”, é certo). A sua tese (apoiada inteiramente na obra da investigadora venezuelana Carlota Pérez) é que o longo ciclo depressivo que a economia mundial conhece desde o início dos anos 70 é na realidade uma fase de transição em que se faz sentir a contradição entre a emergância de um novo paradigma tecno-económico e uma superestrutura cultural-institucional que resiste à mudança. Quando esta contradição for superada em favor das forças do progresso iniciar-se-á um novo ciclo longo expansionista.

O que Harnecker não diz (certamente porque não sabe) é que todos os elementos fundamentais - brutal redução de efectivos operários, polivalência e flexibilidade, aceleração dos ritmos, colaboração leal e “criativa” dos trabalhadores na busca de excelência na produção, subcontratação massiva de tarefas, ajustamento da produção à procura - deste novo “paradigma organizativo” que ela chama de “produção flexível” surgiram no Japão no período entre 1949-53, tendo sido o resultado de uma derrota histórica dos trabalhadores japoneses no período de agudas lutas de classe que então aí se travaram, ainda sob o consulado do general Mac Arthur. Isto numa altura em que não havia qualquer uso industrial de computadores, circuitos integrados, robots ou máquinas-ferramenta de controlo numérico. A formulação definitiva deste novo modelo de organização produtiva foi feita em 1978 por Taiichi Ohno, engenheiro e depois sub-director da Toyota Motor Company, no seu livro ‘O Espírito Toyota’. Mas a sua prática efectiva já era corrente desde há um quarto de século atrás e foi o resultado não de mutações tecnológicas mas de um agudo afrontamento social concluído por uma amarga derrota da classe operária nipónica. Talvez que um dia, quando a “globalização” chegar às organizações operárias militantes, deixe de ser possível fazer passar por últimos gritos em organização produtiva (“lean production”) ao que três gerações de trabalhadores japoneses conheceram já de sobejo, na sua carne e nos seus nervos (2).

Confiada nas suas leituras da moda e num determinismo tecnológico ingénuo, Harnecker não vê a marosca e vai de enfileirar decididamente com as forças do “progresso”, glorificando a “sociedade da informação”, as empresa-rede, os escritórios virtuais e milhentas outras patranhas burguesas. Ferraz da Costa bem poderia aqui aplaudi-la de pé. Flexibilidade é que é preciso pregar a todos esses dinossauros sindicais e socialistas. Estranhamente, Harnecker dá por assente o fim do movimento operário, atribuindo a sua dispersão e fragmentação ao progresso tecnológico quando é na verdade o resultado de uma vasta e profunda ofensiva de classe da burguesia. Todavia, face ao real potencial libertador das novas tecnologias não aponta nenhum caminho de luta conducente à superação das relações de produção capitalistas, parecendo antes confiar numa (re)composição social que conduza a um novo ciclo de expansão.

A última parte do livro - “A situação da esquerda” - é aquela que Harnecker considera mais sua e na qual tem mais orgulho. A exposição tem ritmo, não faltam os motivos de interesse e nota-se uma preocupação em não fugir às questões difíceis. Infelizmente, não podemos partilhar muitas das suas ideias. É também aqui que se nota o mal que lhe fizeram tantas e tão mal digeridas leituras dos teóricos da “sociedade da informação”, do “fim do trabalho” e da “diversidade” em geral. Para além, naturalmente, do seu fundo próprio de tendência revisionista que já vinha de trás.

Harnecker acha que devemos livrar-nos da “ditadura do proletariado”, substituindo-a por “Estado de hegemonia popular” (parágrafo 1197). Aliás, a impressão com que se fica é que ela não encara de modo frontal a tarefa revolucionária da destruição do Estado burguês, mas antes propugna que se lhe ajunte paulatinamente participação, direitos humanos, democracia, democracia e mais democracia. À democracia representativa (já basicamente assegurada pela burguesia), haveria apenas que juntar a democracia social e a democracia participativa (1166 e ss.). Bom, se tudo puder correr assim tão bem, nada a objectar. Mas, e a apropriação dos meios de produção? E a superação das relações de produção capitalistas?

O problema é que Harnecker não tem uma análise de classe da sociedade contemporânea, exortando-nos mesmo a abandonar o “reducionismo classista”. No parágrafo 935 lê-se que “não podemos hoje pensar em reconstruir um sujeito social no campo dos assalariados que tenha as mesmas características do movimento operário tradicional”. (Adivinha-se aqui a influência de André Gorz e do seu “adieux au proletariat”). A esquerda deve tratar de confederar indistintamente todos os explorados, oprimidos, excluídos e discriminados. É indiscutível que um partido revolucionário deve buscar alianças e formar um alargado bloco popular. Mas para fazer o quê?

A sociedade burguesa não terá um nó górdio, situado no eixo forças de produção / relações de produção? Não contém ela duas classes fundamentais em luta e oposição histórica? Harnecker não vê que sem este enfoque estratégico nunca haveremos de dobrar o cabo das tormentas. Por este caminho, parafraseando Rosa Luxemburgo, a esquerda propõe-se agarrar firmemente a sociedade burguesa pelo colarinho, simplesmente - maldição! - o sujeito não usa colarinho. Hoje temos políticas antipáticas e excludentes, “do lado da oferta”. Amanhã, a esquerda dar-nos-á políticas simpáticas e abrangentes, “do lado da procura”. Depois vira o disco e toca o mesmo, ao sabor dos ciclos longos da acumulação capitalista. E todos os dias do mundo amanhecerão burgueses até ao final dos tempos. É realmente tornar impossível o que nos parece bem possível: a revolução proletária, a sociedade sem classes.

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Publicado na revista 'Política Operária', nº 76, Setembro-Outubro de 2000.

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NOTAS:

(1) Também ele um antigo althusseriano, o Prof. Castells notabilizou-se por ter publicado, entre 1996 e 1998, em inglês, um tríptico que alcançou grande êxito internacional, sob o título geral ‘The Information Age’. Esta obra - onde se cunhou o conceito, tão popular como impreciso, de “sociedade em rede” (network society) - é no fundo pouco mais que uma sequela das teses pós-industriais de Daniel Bell ou Alvin Toffler.

(2) Leia-se, por exemplo, Thomas Gounet, ‘La lutte de classes qui a permis l’introduction du toyotisme’, em Études Marxistes nº 14, 2º trimestre de 1992 ou Muto Ichiyo, ‘Class Struggle and Technological Innovation in Japan since 1945’, Notebooks for Study and Research nº 5, Amsterdam 1987.