O que é o direito de ingerência?

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O império Leste europeu do capitalismo de Estado não tinha muitos simpatizantes entre os leitores do P. O.. A verdade porém é que o seu desabamento fulgurante criou uma situação completamente nova a nível mundial, de que as classes trabalhadoras e os povos oprimidos começam apenas agora a medir o alcance.

Não, Bush não mentiu: é realmente uma nova ordem internacional que se antevê. Os sinais não são ainda totalmente claros e inequívocos. Mas o sentido geral parece ser este: está morto o velho sistema neocolonial (o "estádio supremo do imperialismo" para Kwame Nkrumah), com a sua hipócrita (ou cautelosa) não-intervenção formal (hands-off), mascarando uma real tutela e exploração político-financeira apoiada num clientelismo corrupto (os quais certamente continuarão). Em seu lugar, abre-se uma nova fase de expansionismo agressivo e sem peias, sob a palavra de ordem do direito de ingerência.

Há aqui em obra factores geo-estratégicos, decorrentes do súbito vácuo criado pela saída de cena de um bloco de pressão político-militar. Afinal, de um modo ou outro, fora inegavelmente a União Soviética, com o seu expansionismo atípico (sem exportação de capital) que estivera na base do surto emancipador dos povos dos anos 40-60, sustentando-o ainda depois aqui ou ali. Pode pois tratar-se de um movimento passageiro, ditado pela necessidade de recomposição dos lotes. Há algumas coutadas por atribuir, zonas onde não há já uma "tradição" clara em favor desta ou daquela potência. Por outro lado, em contraste com o surto do imperialismo clássico (1880-1940), não é de prever agora qualquer movimento colonizador. Podendo embora criar-se um ou outro protectorado, não existem já nas metrópoles (ou melhor, foram socialmente "integrados") os grandes exércitos laborais de reserva que propiciaram outrora aquela "aliança entre o capital e a ralé" (Hannah Arendt), excedentários ambos, estranhos parceiros no estupro do ultramar. Colocação de capitais (exploração de mão-de-obra barata), abertura de mercados, pilhagem de matérias-primas e bens de consumo (pelos mecanismos da troca desigual) são os factores fundamentais do jogo. O objectivo é o mesmo de sempre (um marxista não pode senão sentir enfado): contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro provocada pelo aumento da composição orgânica do capital. É claro, pois, que esta questão releva directamente do fundamental problema teórico da economia política do imperialismo (que tenho em estudo), dissociado do qual não passará de uma insulsa digressão jurídica. Ainda assim, e pelo seu interesse histórico, valerá talvez a pena determo-nos um pouco aqui para já.

Diz o artº 1º da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados: «Cada Estado tem o direito soberano e inalienável de escolher o seu sistema económico, assim como o seu sistema político, social e cultural, em conformidade com a vontade do seu povo, sem ingerência, pressão ou ameaça externas de qualquer tipo». Diz o artº 2º, alínea 4 da Carta das Nações Unidas: «Todos os membros deverão evitar nas suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado». E a declaração da Assembleia Geral da O.N.U. de 24 de Outubro de 1970 (Resolução 2625): «Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, directa ou indirectamente, por qualquer razão que seja, nos assuntos internos ou externos de outro Estado. Consequentemente, não apenas a intervenção armada, mas também toda e qualquer forma de ingerência ou ameaça, dirigida contra a personalidade de um Estado ou contra os seus elementos políticos, económicos e culturais, são contrárias ao direito internacional.»

Esta peregrina ideia do "dever de ingerência" (humanitária) foi lançada em 1987 por uma malta porreira: a face visível é a de Bernard Kouchner, filho do Ma(i)o-68, carismático presidente dos Médicos sem Fronteira, depois ministro de Mitterrand (já nessa qualidade foi recentemente capa de revista, carregando aos ombros uns enormes sacos de farinha na Somália). Tratava-se de exigir liberdade de acesso e actuação, em áreas de catástrofe natural ou social, para as organizações não-governamentais (O.N.G.'s) de auxílio e socorro. É portanto uma modalidade do direito de passagem pacífica (ainda que porventura apoiada numa logística militar) para assistência humanitária. A ideia era interessante, atraente mesmo, fortemente telegénica. Já a rapaziada do rock contra a fome na Etiópia clamava pelo mesmo. O que se pode questionar é o que é que esta gente tem afinal a ensinar de novo à circunspecta e centenária Cruz Vermelha, com o seu impressionante aparato burocrático escorado nas sucessivas convenções de Genebra. E porque é que o faz (ou é finalmente escutada) justamente agora, com tamanha fúria intervencionista, pois que, ainda não há dois anos, o que se discutia (a um nível moral de extrema abjecção) era... a fadiga da caridade, o imenso tédio e desencanto perante aquele espectáculo das crianças esqueléticas atacadas pelas moscas. Sempre os mesmos.

Era interessante... não fosse vir atascada até ao pescoço na última moda filosófica francesa (ainda os "novos filósofos", mais Alain Finkielkraut, Pascal Bruckner, Alain Renaut, Luc Ferry, etc.) que, no seu rasteiro estilo de jornalismo cultural, se lê mais ou menos assim: "O Ocidente é a fonte e garante dos únicos valores verdadeiramente universais, pátria da liberdade, democracia, laicismo, igualdade e dos direitos do homem; é preciso vencer a estúpida má-consciência do homem branco, impor decididamente os nossos padrões civilizacionais às forças do obscurantismo e da barbárie iliberal, etc., etc." A isto se juntam, claro está, as teorias da "aldeia global", da obsolescência da ideia jacobina da soberania absoluta do Estado e outras amenidades pós-modernas. A doutrina Kouchner/Bettati foi consagrada pela resolução 43/131 da A.G. da O.N.U. de 8 de Dezembro de 1988. O que se discute agora é a consagração de um "direito de ingerência", com uso da força armada, para socorro a vítimas de atropelos aos direitos humanos, sejam eles cidadãos estrangeiros ou do próprio Estado invadido. Mas isto é música celestial para os ouvidos dos imperialistas (que nem disso precisam é claro, nem talvez entendam muito bem, mas enfim...). Ainda vamos ver os diligentes funcionários da C.I.A. a consultar febrilmente o relatório anual da Amnistia Internacional para os seus sumários a Clinton (estes democratas...). Há lá sempre muito para cima da centena de países.

A ideia, com este alcance, é porém já velha e revelha, tendo sido teorizada no princípio do século como «intervenção humanitária» por um jus-internacionalista "progressista", o francês George Scèle. Para não ir mais longe (onde se perderia nas brumas da pré-história de qualquer direito internacional), humanitária foi já a guerra dos Boxers de 1901, levada a cabo pelas potências coligadas (Alemanha, Áustria-Hungria, E.U.A., França, Grã-Bretanha, Itália e Japão) contra o Império chinês, com o saque de Pequim e a extorsão de novas concessões e tratados. Humanitária já (mandatada como tal pelas potências), a intervenção francesa de 1860 na Síria para socorrer os maronitas. Humanitária a intervenção ianque da República Dominicana em 1965 e a invasão de Chipre pelos fascistas turcos (1). Humanitária, é claro, a santa aliança contra o povo iraquiano. Amanhã, será Cuba ou o Irão. Não é preciso ser historiador das mentalidades para saber que isto do humano sempre foi (ou se tornou em última instância) uma questão de nós contra eles.

Mas vamos então à Somália, esse paradigma absoluto da intervenção humanitária. Toda a gente se beliscou para acreditar mesmo que eram os marines que ali estavam, a restaurar a esperança numa terra perdida no fim do mundo. Entendamo-nos: a ajuda ao povo somali era urgente (não mais que ao Sudão, à Libéria ou a Moçambique), ainda que os observadores no terreno qualifiquem de delirante a estimativa de milhares de mortes diárias. Não havia soberania efectiva sobre o território (como não há no Afeganistão, situação directamente provocada pelos imperialistas que agora perderam o interesse na zona) e a sua população estava entregue a um sofrimento atroz. Convenhamos porém que as suspeitas eram legítimas. O Pentágono não abunda em romancistas nem costuma andar assim a reboque da rive gauche parisiense. Ou do senhor Boutros-Ghali. Mesmo admitindo que a operação será não tanto para irradicar o banditismo como para escolher, de entre os senhores da guerra, aquele que mereça mais confiança. Os E.U.A. têm uma longa tradição e uma insuperável mestria na lide com estes "elementos responsáveis e estabilizadores". Mas em África? Não há engano. Nos documentos estratégicos norte-americanos a Somália figura na zona da Ásia do Sul, uma das três (juntamente com a Europa e o Japão) pertencentes ao primeiro círculo de interesses vitais. No tempo de Jimmy Carter ficou sob a alçada da Força de Intervenção Rápida, depois do U.S. Centcom (Comando Central) (2). Ali perto está o Golfo Pérsico e a rota do petróleo. Pode sempre haver problemas por ali. Ademais, o subsolo somali é riquíssimo em... petróleo, cuja exploração estava há anos já inteiramente concessionada a empresas norte-americanas. A única representação que lá havia para fazer as honras da casa aos generais humanitários eram os escritórios da Somoco.

Adivinham-se já as objecções dos filósofos (inventores de uma "moral da extrema urgência"). -- "Sim senhor, os americanos não são nenhuns escuteiros e têm interesses na Somália. Tanto melhor para esta. O que é facto é que as pessoas morriam e agora têm uma oportunidade para reconstruir o país. O sofrimento humano não pode estar sujeito a cálculo político". Muito bem. Mas quem vem desde há séculos pilhando os recursos naturais e produtos africanos? Quem destruiu pela força das armas os seus modos de produção e formações sociais tradicionais, submetendo-os às relações mercantis mundiais que lhe impõem a fome e a exploração? Quem corrompe e arma até aos dentes os seus palhaços autocráticos e militaristas? Quem sabota sistematicamente, pelo garrote financeiro ou pressão político-militar, os projectos de desenvolvimento auto-sustentado dos nacionalistas honestos? Quem promove as monoculturas de exportação e o "desenvolvimento do subdesenvolvimento" (A. Gunder Frank)? Quem promove a proletarização do agricultor, a urbanização em massa, a manutenção dos salários baixos sob a pressão crescente das multidões de miseráveis? Neste mesmo momento, em África (para não ir mais longe), o refluxo dos lucros exportados para as "metrópoles" mais o pagamento dos juros da dívida ultrapassa largamente a entrada de novos investimentos, empréstimos e "ajuda". Tudo com base em transacções efectuadas a preços de mercado, que já incluem e mascaram uma enorme transferência de valor pelos mecanismos da troca desigual demonstrados por Emmanuel e Amin. O imperialismo gere sabiamente a fome e a desesperança na periferia do sistema capitalista por si imposto, fiscalizado e policiado em todo o mundo. E as galinhas tontas da intelectualidade francesa proclamam-no salvador e magnânimo, fornecem-lhe instrumentos doutrinais para intervir discricionariamente e intimam toda a gente (isto é, os fósseis marxistas, ideólogos terceiro-mundistas e outros demagogos falidos) a deixar-se de política porque é tudo uma questão de compaixão humana. Ça alors !!!

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P.S.: A burguesia portuguesa resistiu quanto pôde e não compreendeu nunca o jogo neocolonialista. Agora que se começava a conformar com o seu papel de alcoviteira do imperialismo (envolta num discurso "cultural" de extrema dignidade e compunção), sucede-lhe este sobressalto. Se calhar ainda vamos assistir a severas reprimendas de Bruxelas contra os entusiastas do "regresso a África". Há gente que não tem emenda mesmo.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 39, Março-Abril de 1993.

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Notas:

(1) Mario Bettati, 'Le Droit d'ingérence: sens et portée', Le Débat, nº 67, Nov./Dez. 1991.

(2) Alain Joxe, 'Humanitarisme et empires', Le Monde Diplomatique, Janeiro 1993.