A JUVENTUDE ABAULADA NOS RECESSOS DE APÓS ABRIL

Férulo requisitório ao presente com 7 teses para retomar o fio de Ariadne sendo que a (juvenil) acrimónia do autor se expressa em termos e tons astuciosamente hiperbólicos com o que se crê prestar serviço ao bom senso contestatário (não há outro) das mocidades que ainda não são.

«Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões.
Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. (...)
Porque só há duas maneiras de se ter razão.
Uma é calar-se, que é a que convém aos novos.
A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.»

Álvaro de Campos, ‘Aviso por causa da moral’

«As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dali com as sombras
muito recortadas por causa de um sol que diremos parado.
Quando o sol se move como acontece fora das pinturas
a nitidez é menor e a luz sabe muito menos o seu lugar.»

José Saramago, ‘O Ano de 1993’

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Começo com um encarecimento: Não existe responsabilidade assim exigente e impremeditada como a de ser jovem. Primeiro situar-se, reconhecer os códigos da existência social, penetrar e aprofundar os conflitos, assenhorear-se deles, divisar o futuro lá onde ele se decompõe em matrizes contraditórias que mutuamente se recobrem. Depois transformar o mundo, lutar e vencer, reordenar as referências, afirmar novos princípios de organização das cidades, partilhar o produto colectivo, o excedente dito felicidade. Ou mesmo tão só sonhar tudo isto coerentemente. Requer muita capacidade e desempenho, sempre mais juventude que a disponível – um exceder-se continuado.

Mas a juventude não é uma essência, ou sequer um estado de ânimo tipificável, um qualquer reagemte de efeitos unívocos. Ser jovem significa disponibilidade a um universo muito lato de mensagens e atitudes. É inconformismo mas também perplexidade ante uma complexa teia de significações contraditórias, as quais encontram um organismo indefeso e incapaz de as resolver numa unidade de sentido. De tudo resulta ao jovem uma ideia geral de «desconcerto do mundo», traduzida, por vezes, numa radical indisponibilidade a qualquer solicitação interpretativa e de actuação consequente. Este fenómeno (que se torna mais perceptível em períodos de desmobilização política, recessão económica e, sobretudo, quando o processo de socialização do jovem se encontra atrasado ou mesmo ameaçado pelo espectro do desemprego e por um ambiente generalizado de crispação defensiva e intolerante) pode ter expressões muito variadas e as mais díspares – desde as diversas formas de marginalidade urbana caracterizadas pelo individualismo mais feroz, até ao cepticismo abúlico ou por vezes oportunista de muitos jovens integrados – produtos da incidência em jovens de distintas origens sociais de um comum sentimento de insegurança e temor do futuro, a traduzir-se em atitudes de ensimesmamento, acidez política, desinteresse pela cultura e as ideias.

Não vale recusar os dados. Uma parte significativa da juventude portuguesa (sobretudo daquela parte, aliás percentualmente crescente, que vive afastada do processo produtivo) perdeu a sua capacidade de referência e posicionamento crítico na sociedade. Apanhado num cruzamento incessante de apelos maciços, mensagens simplificados em extremo, sinais breves e repetidos de tremenda eficácia desagregadora, o jovem perde a capacidade de reconhecer os conjuntos e suas determinações. Alienado da sua condição social, enquanto prática ritualizada de actos e significados com cidadania no quadro orgânico da sociedade, o jovem acha-se in-significante, quer dizer, sem sentido. E o seu desencontro consigo próprio é a medida da sua impo-tência para compreender o mundo; daí o carácter irracional e fetichista dos seus comportamentos e crenças. Incapaz de ser (em relação com outros), o jovem procura ter (consigo mesmo), presta culta aos objectos que o consu-mismo lhe propõe – o seu gira-discos, a sua motorizada, as suas roupas, o seu namorado(a) etc. --, acaricia-os longa e demoradamente, acumpliciando-se com eles num jogo sensual em que a regra é não haver «chatices» (expressão que abrange tanto uma relação permanente de exigência/responsabilidade como qualquer súbita desordenação do seu quadro de referências – nada de mais aborrecido que uma «revolta na casa dos ídolos»). Adiante tratarei de música e outras «curtições», para já interessa-me realçar que o jovem socialmente desinserido, sem expressão própria, rebela-se prolixamente contra qualquer tipo de discurso, instintivamente percebido como significado (real ou potencial) de poder e imposição (ele, jovem, o eterno objecto de todas as manipulações e brutalidades, etc., etc.). É o próprio signo político e cultural que é desqualificado. O pensamento e a comunicação que se desvalorizam. E eis como um insensato apego ao seven-up pode acarretar uma mutilação profunda... e um suicídio a prazo. Todo este processo encontra-se em fase mais adiantada nas metrópoles do capitalismo central – veja-se o movimento neo-nihilista «punk» (a ideal confluência de «mods» e «rockers», «situacionistas» e «jovens furiosos»), o qual, sendo, na sua expressão de vanguarda de carácter agressivo e apocalíptico é assimilado com uma inquietante melancolia por toda uma imensa massa de jovens que continua a beijar os pais antes de ir dormir – mas é já bem visível o seu progresso em Portugal, onde se conjuga com outros factores, estes específicos e próprios de uma situação histórica de refluxo revolucionário.

A juventude está sempre presente em todas as revoluções (falo de movi-mentações revolucionárias populares e não também do putchismo reaccionário mais ou menos ou nada populista) da história contemporânea. O que não é certamente coincidência, posto que não seja igualmente (já se disse) sinal de uma identificação perfeita e permanente entre juventude e progresso. Sucede que a juventude, dado o seu descomprometimento em relação a dogmas e preconceitos político-ideológicos e culturais, a sua muito característica forma simultaneamente realista e inocente de analisar os fenómenos sociais, é, não raro, a primeira a aperceber-se do desfasamento insanável entre as bases materiais de produção da vida social e o aparelho institucional que a conforma e estabiliza. Em todos os sucessos e insucessos revolucionários, a juventude é um importante reforço das posições ascendentes e, também, importante factor de aglutinação e síntese de vários sub-interesses sociais, alargando o bloco social do progresso, acrescentando novos motivos e soluções ao projecto transformador. Assim sucedeu em Portugal com a revolução de Abril de 1974. (Assinalarei aqui, tão só, alguns dos antecedentes precursores de Abril, caso do surto neo-realista dos anos 40 e dos movimentos estudantis dos anos 60, bem como a indesmentível mobilização e adesão maciça da juventude ao longo de todo o processo revolucionário).

Com o avanço consolidado da contra-revolução burguesa, e ao longo de um prolongado e contraditório processo de «normalização» democrática (deve ler-se: tentativa de reorganização do poder dos monopólios segundo novos arquétipos político-constitucionais mais consentâneos com as necessidades de dinamização do mercado e abertura ao capital internacional), a juventude foi-se afastando da vivência colectiva, quer dizer, alienou-se em si própria, na medida em que o que nela «sente/pensando» viu transferido o seu referente da circunstância social da sua existência para o reflexo dela na sua interioridade. Passou-se de uma atitude crítica de sentido centrípeto a uma atitude contemplativa de sentido centrífugo. Donde uma nova dogmatização do eu que é, afinal, a outra face de uma adjectivação do sujeito político e cultural em situação. É o umbigo novamente sacralizado como centro produtor de significados, somente que agora não no sentido de recusa da socialidade por identificação com o absoluto metafísico, mas como simples recentramento invertido do lugar último (ou primeiro) da construção e aferição da dinâmica dos comportamentos socialmente relevantes. Eis uma perigosa ilusão. E depois, aqui d’el-rei que «eu não quero ir à máquina zero», quando ninguém viu nem quis crer que a «máquina zero» está aí à nossa volta e dentro de nós, muito antes e para além de nos começar a acariciar a nuca.

Tentarei retratar apenas as linhas mais gerais por que se realizou este processo, aliás extremamente complexo, de desmobilização dispersiva da juventude. Assim, e daqueles jovens que viveram e participaram nos sucessos revolucionários, uma parte vinculou-se à actividade partidária – onde, se por um lado poderão ter criado mais sólidas raízes de identificação social, correm também, et pour cause, o risco de verem estreitar-se o seu imaginário crítico, síndroma de uma pressurosa banalização das consciências, a desmultiplicar-se em atitudes recorrentes, sem aquele segredo teatral que só as explosões de mais ou menos fecunda incoerência contestatária possuem –, enquanto que a maioria se enclausurou nos seus problemas pessoais-profissionais, assim reagindo a um ingénuo sentimento de fracasso, que lhes torna dolorosa qualquer recordação (instintivamente reprimida) das suas atitudes anteriores. E assim se vai esvaindo lentamente o conteúdo remanescente das suas convicções optimistas. O que caracteriza o percurso recente destes jovens não é terem-se remetido a um silêncio expectante, porventura profícuo pela reavaliação de ideias e pela formação de novas combinações de forma e substância de afirmação progressiva, pela preparação de uma renovada síntese integral de postura crítica; o que é marcante (e sempre em traços gerais, que impõem a generalização) é uma sua atitude (autodefensiva?) de recalcamento da própria juventude – pela assunção acrítica, e com afectada compenetração, dos mais diversos papéis sociais ; pela perda do hábito de reunião regular com os companheiros, etc. –, verdadeira auto-imolação ao socialmente estabelecido, através de um retraimento forçado, de que os tópicos justificativos (responsabilidades familiares, falta de tempo, a ubíqua e omnisciente «crise») não são mais que desculpas de mau pagador, para uso interno da pacificação das suas consciências acabrunhadas. Por isso que, aquando das suas raras iniciativas de diálogo autêntico com a geração mais nova, este jovem, compulsando a memória da sua identidade juvenil etariamente correspondente à do seu interlocutor, com um critério selectivo e interpretativo actual, parece que representa um qualquer drama trágico-marítimo seiscentista (e com um intiuito pedagógico apenas muito vagamente perceptível). Como que um surdo dissídio de mútua estranheza se estabeleceu entre estes dois jovens, com a revolução de Abril a separá-los não apenas por marcar uma diferença específica de vivências concretas, mas igualmente por ser um ponto de refracção dispersiva das consciências dos que nela participaram. O que, tudo somado, apenas parcialmente justifica uma certa orfandade perplexa (quando não ressentida) dos mais novos, no campo da praxis social como no dos instrumentos críticos de percepção das realidades.

Os jovens que atingiram a primeira maturidade nestes últimos anos não conheceram nunca uma situação de repressão directa e sem peias das suas ideias ou, tão simplesmente, das suas formas de convivência e manifestaçao por parte das autoridades públicas (isto àparte alguns incidentes que, não se crendo ser mais do que isso, não deixam de ser significativos para além da sua factualidade). Esta circunstância explica como a liberdade, deixando aparentemente de ser um bem escasso, se tornou menos mobilizadora. (É mais difícil à juventude de hoje adoptar objectivos e métodos de transformação social, usando a sua liberdade, do que à juventude de ontem o foi, perseguindo-a). Não quer isto dizer que à juventude actual seja indiferente o uso e o destino da sua liberdade. O que acontece é que o seu valor deixou de ser mensurável, como que se volatizou. A liberdade perdeu os contornos precisos do seu desejo, através da sua mais subtil alienação no novo «contrato social» democrático. (Era mais fácil à juventude de ontem afirmar-se em bloco contra uma ditadura que brandia contra ela a verdade única e coesa do podar, do que é à juventude de hoje assumir uma mentalidade e uma acção próprias, aprofundando e povoando de sentido a liberdade adquirida, quando a conformaçâo do poder parece ser efectivamente dialogante e plural e quando, aparentemente, já foi tudo discutido na sua sede própria, apenas se pedindo ao jovem uma anuência neste ou naquele sentido, anuência que tem a configuração de uma taxa que se paga pela «livre» fruição da irresponsabilidade pública). E sem desejo de liberdade aquela pulsão erótica de transcendência colectiva mão se produz, falham os mecanismos geradores da solidariedade (conflitual) entre a juventude e, uma vez registada uma quebra no nível de pressão contestatária da moral dominante, é ela própria (juventude) que é atingida pelo refluxo dos valores institucionais do patriarcado familiar, averbando recuos, sobretudo sensíveis na pequena burguesia, nos campos da socialização sexual, entendimento do papel da mulher e consciencialização política geral.

«Pienso con los pies, mis pies están pensando» insistia J. C. Uviedo com os seus pupilos do CITAC. No limite, esta atitude contrapõe-se a esta outra, proposta por Nehru: «Há-de haver uma postura humana que, fincando bem os pés na terra, mantenha a cabeça acima do nível do chão». É certo que a juventude, nas suas lutas e refregas, normalmente inscreve uma mensagem de irracionalidade pura, de desmesuramento sensual e «pagão». Mas sempre como táctica de afrontamento e negação pelo absurdo de um sistema mental caduco, a suplantar pela afirmação de uma outra razão. O que é anormal é a juventude pensar com os pés, contestar apenas aquilo que se opõe ao seu interesse imediato, aspirar exclusivamente a facilidades pessoais. E mendigar tolerância e boa vontade, e um mínimo denominador comum pela felicidade de todos, e um maço do tabaco mais em moda. Ó meus amigos, andamos todos precisados de uma pedagogia pela crueldade. E o certo é que vamos tê-la! (De resto, este panorama não é só nacional – «Allons enfants de l’apathie», diz-se em França da juventude estudantil. Consola?).

Apenas uma breve incursão por alguns modos de expressão, mais ou menos codificadas, do microcosmos cultural juvenil. A primeira constatação é que não existe um tal universo. Existe, sim, uma pluralidade de grupos, mais ou menos alheados uns dos outros, com formas de comportamento e aparência exterior tipificadas segundo um standard imposto por uma corrente da moda. A base da distinção é, naturalmente, a origem de classe do jovem, mas não é raro coexistirem, dentro de uma mesma classe e estrato social, grupos herméticos e bom individualizaúus, segundo características tão pormenorizadas como preferências musicais, tipo de vestuário, uso ou não de estupefacientes, etc. O primeiro sinal revelador desta «grupização» é a generalização do tratamento por você. Enquanto o tratamento por tu, usual desde há anos atrás entre os jovens, significava um reconhecimento ritualizado de confiança mútua, pontuado por um halo de cumplicidade dirigida contra a «velhada» indistinta, o tratamento por você, apenas abandonado entre conhecidos e (ou) reconhecidamente membros do mesmo grupo, atesta a fragmentação do submundo juvenil. A um princípio tendencial de solidariedade horizontal etária (de cariz inequivocamente progressista, embora não isento de contradições) substituiu-se uma gregarização pulverizada, substancialmente enformada pela solidariedade vertical intraclassista – embora a «velhada» não se revele explicitamente como elemento integrante das performances juvenis, o seu reflexo nelas é agora bem visível. (Abandonando a perspectiva do confronto etário podemos daqui concluir pela existência de sintomas de radicalização em posições conservadoras de uma significativa fracção da pequena burguesia, e com estreitamento dos laços de autoridade familiar.)

Não posso aqui, naturalmente, enumerar, distinguir e caracterizar os diversos modelos tipificados de comportamento juvenil. Cingindo-me a uma diferenciação básica entre juventude de origem operária e juventude de origem burguesa, caracterizarei sumariamente os seus respectivos modos de diversão, momento especialmente revelador por introduzir uma ruptura no quotidiano (o chamado «escape») onde se condensa e explode (para se reintegrar em boa ordem) todo o complexo de atitudes e significações acumuladas do jovem.

Para o jovem burguês, o espaço preferido para a celebração dos tempos livres e ritualização da sua necessidade de desmesuramento eufórico, é a boite (ou discoteca). Pode ele efectivamente não a frequentar com regularidade mas, na sua mitologia, é lá que «a vida acontece». Analisada de perto, esta eleição da boite revela-se uma atitude paradoxal ou, pelo menos, ambígua. Por um lado, o jovem busca aí um refúgio protector, configurado pelo hermetismo quente e acolhedor da sala (tudo ficou lá fora) e pela dificultação da comunicação – música ruidosa, obscuridade – que lhe propiciam a preservação da sua subjectividade num espaço não conflitual de apaziguamento interior, o reencontro da unidade – como no ventre materno (deixo apenas a sugestão). Por outro lado, a batida do hard rock ou do disco, a cadência das luzes, os flashes rotativos, a própria movimentação dos corpos, sugerem uma experiência de abordagem dos limites, de dissolução de todas as normas, de desagregação. A juventude burguesa entre a nostalgia da unidade (infância) e a vertigem do afrontamento caótico (entropia urbana)? Talvez.

Entre a juventude oriunda dos meios operários, a bipartição dos papéis sexuais é ainda bastante marcada. Os rapazes juntam-se nos tradicionais bandos, em que cada elemento tem uma função especifica, geralmente consagrada numa alcunha, criando-se assim todo um sistema interno de expectativas entrecruzadas. É nestes grupos que os jovens exercitam as suas faculdades viris de iniciativa, de coragem, de abnegação, fortemente estimulados pela pressão gregária (que as premeia generosamente com o reconhecimento, castigando rudemente o falhanço e a fraqueza com o opróbio generalizado). Um grupo de rapazes observa regras muito rígidas de solidariedade e camaradagem, a liderança é atentamente vigiada e frontalmente criticada quando erra. As suas actividades colectivas revelam a comum sede de aventura e rebeldia – assaltos e destruições na escola, pequenos roubos, corridas de motorizada, bailes de garagem com música heavy metal, bebedeiras à compita, um ou outro “charro” – a que não é alheia a frustração permanente pela sua condição alienada e o pressentimento obscurecido de que algo no mundo não bate certo (justo). Mas o quê? As raparigas, essas habitam no sonho, um universo denso, povoado pelas sugestões cromáticas de uma capa de revista, pelo seu próprio corpo em repouso, pelos pormenores de gradação do seu espaço. Elas são a memória translativa e a percepção do que é real na realidade. Quando duas moças passeiam na rua, de braço dado, é na profundidade e extensão da sua cumplicidade que tudo acontece – o apontamento fiel, a crítica subtil, a partilha de um segredo, a solidão pacientemente cerzida ao Iongo de uma semana de enclausuramento. Até que... algo mude.

Não se pense, contudo, que a juventude já não tem os seus ideais. Eles são : a paz, a ecologia, a revolução sexual, a libertação feminina, o comunitarismo, todos eles erguidos ou reformulados nesses «loucos» anos 60, de então até hoje tendo passado por vicissitudes várias, avanços e recuos, contradições e reequacionamentos. O que se passa é que, enquanto alguma parte da juventude perdeu de vista esses mesmos ideais, a restante fracção, e nela vai incluída a maioria (as excepções são raras) das organizações e activistas juvenis partidariamente descomprometidos, tende a considerá-los como panaceias milagrosas destinadas, todas elas por si (ou uma só por todas), a reorganizar a sociedade em novos moldes estruturais (o que é bem uma eloquente expressão da mitologia política que um pensamento seccionado, simplista e separado das bases reais de produção da existência social pôde incutir em mentalidades desorientadas e propensas ao fetichismo). Pois é, baixando de tom a contestação juvenil, e quebradas as cadeias de solidariedade entre os jovens, é o próprio nível teórico das suas propostas que enfraquece. A juventude, fraccionada em pequenos grupos de pequenos interesses, e com reduzida frequência de discussão dos seus problemas, perde a perspectiva global da sociedade. As suas lutas são mal fundamentadas, inconsequentes e (ou) perigosamente ambíguas. As tomadas de consciência fazem-se penosa e fraccionadamente, em face de dados empíricos incorrectamente percebidos por preconceito ou falseamento ideológico ou distorção interesseira, etc., etc., etc.. Concluindo: Aqueles que podem e devem ser de facto importantes motivos de luta ideológica, mesmo numa linha de vanguarda onde a juventude teria o seu lugar, mas sempre no contexto de um mais amplo movimento libertador centrado nas classes oprimidas, são hoje meras «ordens do dia» que o sistema muito facilmente penetra e logo assimila (com o poder triturador da sua máquina de propaganda), desvirtuando as questões até as reduzir ao nada, de onde os infatigáveis activistas procurarão do novo erguer a sua pedra de Sísifo até ao fim dos dias.

A futurologia nem sempre é tarefa árdua. Em Portugal, hoje, pode-se seguramente prever o alastramento do desemprego, a escalada de autoritarismo e chantagem nas fábricas e escritórios, a desarticnlação acelerada do sistema de ensino, a diminuição da oferta de habitação nova, etc., etc.. A relativamente curto prazo, será já impensável (porque a compulsão nesse sentido será quase física) que os jovens não se juntem para discutir os seus problemas comuns e ensaiar respostas e reivindicações colectivas. O futuro vagamente sombrio que eles hoje antevêm, será efectivamente concretizado e, seguramente, em tons mais escuros que os da paleta. Aquilo que, enquanto ameaça (mesmo actual e quotidianamente comprovável), teve o efeito de inibir os mecanismos de reacção colectiva, activando processos de autodefesa individualista, será, enquanto concretização, factor de agregação e, numa primeira etapa, de moblização reivindicativa. (Convenhamos que não era de exigir, a uma malta absolutamente inexperiente na prática social, capacidade para uma intervenção preventiva).

1. Para enquadrar as suas lutas, em torno do ensino ou do emprego, e ainda que meramente pontuais, os jovens devem criar organizações de base com elevado nível de debate interno. As já existentes devem ser dinamizadas e expurgadas do funcionalismo burocrático. Nesta fase, nada de grandes efabulações teóricas e arrazoados sistemáticos – atenção aos problemas concretos, mesmo que pareçam despiciendos, mas sem oportunismo porque este esgota-se em si próprio; «não é preciso pensar profundamente, basta pensar» (em colectivo). Com os primeiros sucessos neste caminho, inicia-se uma senda de evoluções qualitativas aceleradas; o movimento acusa um desenvolvimento auto-sustentado pela sua dinâmica interna. Trata-se, então, de consolidar esse progresso com a fixação de sucessivos patamares de organização material e de explicitação de objectivos e métodos. Tomar sempre atenção no funcionamento da democracia interna e no nível de participação colectiva; nada de sectarismos nem de vanguardas esclarecidas e auto-suficientes.

Seguidamente, haverá que estabelecer ligações entre as organizações de estudantes, de trabalhadores e de desempregados (previamente, entre as de cada uma destas espécies): troca de experiências, opiniões e perspectivas (completar o quadro de representação dos problemas, harmonizar sinteticamente juízos e critérios de análise), coordenação de acções e, sendo caso disso, desencadeamento de acções conjuntas. Paralelamente, devem-se autonomizar as actividades sectoriais, com garantia de bom funcionamento dos canais de comunicação, e sem estabelecer normas hierárquicas de trabalho com carácter permanente.

Havendo uma boa rede de contactos, são dispensáveis as «coordenadoras». A existirem estas, nunca se devem estabelecer vias de comunicação que transmitam continuamente informações factuais num sentido e decisões directivas no outro. Existem, seguramente, alternativas de racionalização de actividades que não passam pelo paradigma burocrático da pirâmide da autoridade (não bastam a eleição democrática e livre revogabilidade dos mandatos, o problema é a própria conformação objectiva do aparelho decisório). Trata-se de as construir e executar, exercendo continuadamente a imaginação colectiva, explorando o ponto limite daquela tensão crítica permanente que toda a prática inovadora supõe. A estrutura organizativa de um movimento é a sua própria substância objectivada, sobre ela incidindo a contínua renovação que a reflexão sobre a prática vai trilhando. Se esta dinâmica funcionar sem entraves, propulsiona-se a eficácia interventiva, significatividade social e actualidade política do movimento.

Um novo modo de estar em relação, significa e pressupõe o desenvolvimento de todo um complexo de representações e atitudes adquiridas, das mais elaboradas construções intelectuais até ao simples (?) linguajar ideológico do senso comum; da análise profunda ao juízo intuitivo ou à simples crença. Estas «revelações» que se produzem no campo da consciência, ainda que apenas na sua epiderme, supõem concretas experiências materiais, uma base de dados factuais assimilados que são coroados por um princípio organizativo de encadeamento e síntese significativa, espécie de «moral da estória» que, nos seus sucessivos estádios ou cifras momentâneas, condiciona a própria percepção material, estabelecendo com esta uma relação interactiva sempre inconcluída.

Não tem sentido útil abordar o homem que pesca à cana no rio para lhe asseverar que não se deve caçar mosquitos com guarda-chuvas. O desen-volvimento do espírito crítico e da consciência social dos jovens depende, em grande e decisiva medida, da evolução das condições materiais da sua existência, da actualidade imediata e sensível dessas referências na sua prática quotidiana (se Maomé não vai à montanha...). Mas deve-se ter em máxima conta algumas realidades e tendências actuais: procura da independência pessoal/carência de habitação e de emprego; especial atenção ao concreto e imediato; desejo de compreensão e de partilha afectiva; necessidade de autopreservação e integridade (paz, ecologia - não existe, entre os jovens de hoje, nada daquela vocação para o martírio, daquela generosidade abnegada perto da pulsão auto-destruidora, que caracterizou muitas gerações de jovens); distanciamento irónico; preocupação com um certo rigor estético (formal); redescoberta de uma sensibilidade valorativa ainda incipiente ou «instintiva». Partindo daqui, podem desde já avançar-se algumas pistas de trabalho profíquo.

2. Para o ensaio de um modo e espírito (con)vivencial novo, deve ser promovida a habitação colectiva e autogerida (o modelo dos squaters, «repúblicas» de estudantes, etc.), bem como outras comunidades, que podem albergar actividades produtivas de subsistência, cooperativas de consumo, grupos culturais, etc., etc.. Fortalecer-se-á, assim, pela experiência prática da interdependência assumida, o espírito de solidariedade e a responsabilização individual pelos interesses colectivos. Estas casas devem ainda funcionar como viveiros experimentais de relacionamento humano material e afectivo. Não basta a conquista de um espaço de liberdade para mera fruição rotineira, quando não para o exercício displicente da irresponsabilidade. Há que disciplinar a vida colectiva, submetê-la a uma ordem, problematizá-la depois, avançar por novos caminhos.

Extremamente importante – aí reside, aliás, o motivo essencial do fracasso de muitas experiências formalmente similares – é que estas casas jamais possam ser consideradas como ilhas utópicas, desligadas da realidade social. Há que ter sempre presente o «mundo imediato» (sem prejuízo da necessária ousadia transgressora). Mais ainda, há-de ser na sociedade que elas buscarão uma razão crítica - sua referência constante - e com ela confrontarão permanentemente as suas realizações práticas. Por outro lado, elas devem ser um ponto de reunião e convívio de âmbito alargado a muitos não residentes e funcionar como microcosmos culturais socialmente activos e intervenientes.

Com ressalva idêntica à que fiz há pouco, pode-se avançar para a federação destes organismos; entretanto, é absolutamente indispensável que eles estejam em permanente contacto entre si, partilhando as respectivas experiências, trilhando caminho conjuntamente.

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3. A sexualidade tem de deixar de ser entendida como um acto, com diferentes entendimentos quanto à sua função (desde a procriação bíblica do sr. João Morgado, até ao simples hedonismo sem horizontes, ao «imperialismo do orgasmo» que certas interpretações redutoras de Reich vulgarizaram), para se fazer valer como um integral modo de ser relacional. A revolução sexual não é (só) a difusão da pílula e do planeamento familiar. Em sexualidade, como no direito, nada é privado – é tudo público; ao relacionamento possessório e institucionalizado (optimizada segundo a «ciência» de Masters & Johnson e seus sequazes), há que substituir uma explicitação do comportamento sexuado (abrir o jogo), inscrevê-lo no relacionamento quotidiano, transliterar a diferença, partilhar o prazer sem máscaras.

É necessário ampliar o debate sobre a sexualidade, em grupos, através de publicações, etc. Realçar a sua significatividade colectiva, a sua faceta de praxis social. E... praticá-la. Sem fixações – todo o corpo humano é uma imensa zona erógena, basta despertá-lo com «um sopro», uma carícia, uma aventura vertigìnosa.

4. Voltando atrás no texto, àquela enumeração de algumas «tendências actuais» da mentalidade dos jovens, verifico agora, com alguma curiosidade, que todos os tópicos ai incluídos, um por um, estão relacionados com características tradicionalmente qualificadas como pertencentes ao universo do feminino. É verdade que ao nível consciente das ideias, e em ambos os sexos, não se avançou nada no que respeita à promoção do papel da mulher. Estaremos para assistir a uma emancipação do feminino sem emancipação da mulher? Mas isso é um absurdo evidente. Como absurdo é, inversamente, pretender «libertar» a mulher pela promoção da sua competitividade numa sociedade estruturalmente alicerçada na ratio masculina, no que não é inocente muito do actual pensamento progressista (posso estar enganado, mas parece-me que a generalidade dos discursos e documentos políticos do mais consequente partido português de esquerda, são absolutamente ilegíveis por uma mulher).

Parece haver agora, de facto, uma oportunidade decisiva para desalienar a expressão feminina, para fazer com que a discursividade da mulher aflore também a prática social. Para tal, é ainda preciso que as «miúdas» ousem expressar-se, abandonem o seu úbere e lírico silêncio, façam fluir livremente a sua consciência, longamente maturada na matriz do seu povoamento interior. Isto não quer dizer que essas jovens, necessariamente, se associem entre elas. Aí espreita o perigo de um novo ghetto, geralmente assumido pelas próprias com a auto-suficiência do desespero. Trata-se, sim, de promover e intensificar o diálogo intersexual, de forma a que a crítica e a luta dos jovens se escrevam também no feminino, única forma de se poder divisar a formação de uma sociedade não sexista.

5. Que fazer com os tempos livres? Antes de tudo, evitar a tentação «moralizante». Não é decisivo que a juventude se disperse relativamente por actividades de nulo interesse social : droga, flippers e outras bugigangas de café, salões de jogo, literatura da «Agência Portuguesa de Revistas», etc. Em certas condições, será mesmo de esperar que a agudização destes processos contraditórios de auto-alienação provoque uma explosão libertadora. Nenhuma técnica de alienação é perfeita – deixa sempre um lastro de consciência, um continente naufragado de potencialidades insuspeitas. Por vezes, estas explosões são extremamente violentas... e profícuas. Mais nociva é a burla ideológica dos escuteiros paroquiais e de certas brigadas de limpeza urbana. Pois claro, consciência limpa, bom desempenho social, vamos agora à minha vidinha! A verdadeira libertação, porém, virá sempre da margem rebelde, da mão esquerda da criação.

O importante é estar juntos, se possível em grupos heterogéneos. E trabalhar em qualquer coisa, mesmo que pueril. Decisiva, é a aglutinação de forças num projecto próprio (um jornal, grupo artístico, criação de pombas...). Como sempre, o sucesso inicial provoca o entusiasmo e sucessivas crises de crescimento que acabam por alargar os seus horizontes e ambições até pontos insuspeitáveis. Obrigar os jovens a olhar em volta, não forçar conclusões. Há-de ser a própria subjectividade, no seu trajecto relacional, a dar-se conta da sua insuficiência, da sua miséria. O limiar da consciência social e da crítica consequente está na primeira deflagração da contradição nuclear entre o solipsismo primordial e a irrecusável explicitação da alteridade fundante.

6. Esta palavra cultura. Vamos primeiro por partes.

É necessário difundir a cultura científica e o pensamento moderno através de publicações e debates. Criar grupos cooperativos de estudo e investigação autónomos entre a comunidade estudantil. Problematizar as questões, ser exigente em matéria de conclusões. Coordenar o desenvolvimento do estudo e do debate teórico com a experimentação prática. Estimular a participação dos «leigos» e o debate multidisciplinar.

Em criação artística, privilegiar as fórmulas simples e «inocentes». Fazê-las penetrar profusamente, aproximar a produção do consumo, estimular o relacionamento interactivo da criação e da representação colectivas. Avançar então para tipos integrados de expressão artística (teatro, poesia e canção; performances plásticas e música experimental; vídeo-cinema e expressão corporal, etc.). Difundir a cultura popular tradicional, mas sem propósito de mera reprodução, antes com a preocupação de inovar, de lhe introduzir um toque de modernidade. Estimular o experimentalismo sintético não quer dizer que se persiga a mirífica Gesamtkunstwerk; produzir o novo, privilegiar a dimensão da arte como espectáculo, ou melhor, como grande comunicação directa e relacional – actuações de rua, subversão do quotidiano (sem intuito simplesmente provocatório), actualização da festa comunicativa. Fazer da revolta e da contestação também um acto de afirmação estética.

Não há que recusar liminarmente os consensos culturais (o rock, p. ex.). O que é preciso é interceptar e aniquilar os mecanismos de comunicação mercantilizada de massa, isto é, de consumo cultural feiticista. É urgente promover a discussão sobre os produtos que agora se apresentam como fenómenos a se stande, inverter a relação mensagem/receptor, objectivando a primeira e subjectificando o segundo. Depois, estimular a produção, não como imitação mas como criação livre da subjectividade colectiva.

Fazer da crítica e da contestação um hábito quotidiano. Difundir a «moda» da diferença, do paradoxo, da inquietação permanente. Estar com os outros de uma forma que seja, simultaneamente, um reconhecimento da identidade colectiva e uma provocação novadora permanente.

7. Enquanto o movimento dos jovens se constitui e expande, atentar na sua capacidade dialógica interna e criatividade sintética. Vigiar atentamente o funcionamento dos mecanismos propulsores do crescimento. Se o movimento não for coeso (o que não quer dizer uniforme) a e entre todos os níveis e modos de pensamento e acção, faz-se em estilhas ao primeiro embate. Não basta avaliar a «frescura do ar», é preciso penetrar o corpo do movimento, saber se a sua dialéctica interna se resolve coerentemente num sentido de intervenção social. As «vanguardas» devem ser refreadas, a comunicação intensificada.

Com a primeira maturidade, é tempo para exercícios mais audazes. Experimentar projecções conclusivas das premissas gerais do movimento, problematizá-Ias. Trabalhar também em abstracto, com ousadia inovadora e experimental. Há que não ter medo de pensar de novo (mesmo com sacrifício de trabalho anterior), de pôr em causa esquemas mentais e tipos de raciocínio consagrados. Explorar os limites, forjar a sua própria maioridade intelectual, habituar-se a uma tensão crítica de grande balanço, perto do irreconhecível, do inverosímil porvir.

E intervir então activamente, não já pedindo desculpa por existir, mas com denodo e vontade de vencer, de fazer história.

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publicado na revista ‘Vértice’ (Coimbra), nº 458-9, Janeiro/Abril de 1984.