A liberdade de Gaza






Este ano político de 2009 promete ser bastante animado e começa com uma das páginas mais notáveis escritas pelo espírito humano, em tempos recentes. A insurreição popular palestiniana na faixa de Gaza obteve uma maravilhosa vitória posicional e estratégica, naquela que vai ser certamente ainda uma longa guerra de atrito e fricção com a entidade sionista opressora. A liberdade está mais próxima. Na verdade, pela primeira vez, pode-se vislumbrá-la claramente, ao fim de um ainda longo trilho futuro de sangue, suor e lágrimas. Mas já se pode ver, distintamente. Um povo longamente oprimido que consegue ver, por uma nesga, mas claramente, sem disputa possível, a via da sua libertação, já não vai mais poder esquecê-lo. É precisamente isso que o opressor não podia ter permitido. Mas não teve outra alternativa, com os recursos de que dispunha.

Como se sabe, a Faixa de Gaza está ocupada militarmente pelo Estado sionista de Israel desde 1967. Vivem aí um milhão e meio de palestinianos (dos quais cerca de um milhão são já refugiados e seus descendentes), numa área de cerca de 360 km2, com 40 quilómetros de costa mediterrânica. Em Agosto-Setembro de 2005, por alegadas razões de “segurança”, as forças ocupantes terrestres retiraram unilateralmente, juntamente com alguns milhares de colonos sionistas aí instalados há décadas. Todavia, a ocupação e o bloqueio permanente mantêm-se, desde então, por terra, ar e mar.

Esta retirada fazia parte de um plano de “separação” unilateral avançado pelo então primeiro-ministro Ariel Sharon, que estava receoso pelo crescente desequilíbrio demográfico em favor dos árabes no conjunto do território da histórica Palestina. O mais destacado arquitecto desta política, o Prof. Arnon Soffer (geoestratega da Universidade de Haifa e conselheiro “senior” do governo há muitos anos), definiu-a assim numa notável entrevista ao ‘Jerusalem Post’ a 21 de Maio de 2004: “Esta política não pretende garantir a «paz», garante sim um Estado Judeu-Sionista com uma esmagadora maioria de judeus”. (...) Quando 2,5 milhões de pessoas viverem numa Gaza selada ao exterior, vai ser uma catástrofe humana. Essas pessoas vão tornar-se ainda mais animais do que o que já são hoje, com a ajuda de um fundamentalismo islâmico insano. A pressão sobre a fronteira será tremenda”. A sua receita para garantir o «status quo» em Israel era então: “Se quisermos mantermo-nos vivos teremos que matar, matar e matar. Todos os dias, durante todo o dia”. O objectivo disso sendo, naturalmente, que os palestinianos desistam de viver aí e, por fim, abandonem Gaza em massa (1).

Estas egrégias reflexões não vêm naturalmente citadas na nossa respeitável imprensa ocidental, mas não há dúvida que clarificam de forma notável (para quem ainda tivesse dúvidas) todos os acontecimentos posteriores e os propósitos subjacentes. Aliás, as criminosas fantasias estratégicas dos sionistas não são segredo de Estado. Discutem-se abertamente, às claras, em seminários académicos, nos meios de comunicação de massas, sem qualquer pudor, sequer, no uso escarninho das mais obscenas expressões racistas, sendo nesse particular comum a equiparação dos árabes às mais variadas espécies animais. O que é extraordinário é como, na imprensa ocidental, só aparecem as declarações tranquilizadoras dos políticos israelitas e nunca as dos seus mestres pensadores, que efectivamente delineiam as suas políticas e não se coíbem minimamente de ridicularizar, aberta e desbragadamente, em declarações públicas, a retórica oficial do “processo de paz” (2).

A fronteira da Faixa de Gaza com o Egipto, com uma extensão de cerca de 12 quilómetros, está fortificada com um enorme muro de betão armado com aço, sendo vigiada militarmente por câmaras e meios electrónicos israelitas. Nos termos do acordo capitulacionista de Oslo, Israel têm ainda controlo sobre a “Philadelphi Road” ao longo desta fronteira, controlando por completo a saída e entrada de pessoas e bens. Pode cortar ou dosear ao seu arbítrio a entrada de electricidade e combustível. Há ainda no terreno uma “Missão de Assistência Fronteiriça” da União Europeia. Quanto às fronteiras com Israel, elas estão completamente encerradas, desde Junho de 2007, quando o governo do Hamas desbaratou uma tentativa de golpe dos colaboracionistas orquestrada, mais que pela “Autoridade Palestiniana”, directamente pelos E.U.A. por intermédio do traidor Mohamed Dahlan. Em Janeiro de 2008, a resistência palestiniana dinamitou, de forma espectacular, em vários pontos, o muro da fronteira de Rafah, mas logo a polícia da corrupta ditadura egípcia selou de novo as passagens.

A guerra que Israel impôs ao povo palestinino da Faixa de Gaza, durante três semanas, de 27 de Dezembro de 2008 a 17 de Janeiro de 2009, ficará na história como das operações militares mais desonrosas que já foram levadas a cabo, em todos os tempos. Da primeira à última hora, o objectivo militar essencial foi sempre atingir a população civil, procurando levá-la ao desespero e, deste modo, isolar a resistência activa. Esta é, aliás, a doutrina militar sionista desde sempre, já expressa e publicamente teorizada por personalidades como Mordechai Gur, Abba Eban ou Zeev Schiff (3). Não faltaram os “truques” já habituais e rotineiros do exército e força aérea israelita: alvejar ambulâncias em serviço sempre e em todas as ocasiões; não esquecer escolas, hospitais e centros de vida cívica; as mesquitas, sobretudo na hora das orações; os centros de recolhimento “seguro” da ONU são sempre alvos muito apetecidos; é bom expediente dar instruções precisas às populações para se dirigirem a certos edifícios e bombardeá-los de seguida, com fatalidades às dezenas. Para além disso, são naturalmente alvos todos os edifícios públicos – políticos, administrativos ou de serviços – e em geral todos os eixos de articulação da vida social, como o comércio, as infraestruturas urbanas, etc.. Qualquer personalidade de destaque é também um bom alvo para assassinato selectivo, pois que, segundo uma doutrina uniforme desde a fundação do Estado israelita, “matam-se os seus melhores e o resto transforma-se naturalmente numa manada desgovernada, que é muito mais fácil fazer dispersar”.

A doutrina militar sionista é a própria de uma ideologia supremacista, como aquela que já foi no seu tempo objecto de reflexão pelos teóricos nazis. Baseia-se na retaliação monstruosamente desproporcionada, com um conteúdo absolutamente irracional, intencionalmente perverso. O que é preciso é infundir um terror absolutamente total, fazer com que a população pense que somos gente de uma ira completamente inumana, sem limites, totalmente imprevisível, desregrada e enlouquecida. Com este caderno de encomendas e recomendações, pode quase com segurança dizer-se que quem correu mais riscos em Gaza foi a população civil encurralada, sobretudo a mais timorata, aquela que se juntou em abrigos, em grandes aglomerações. Aquela que esteve sempre recolhida na sua casa, em família, teve apenas uma probabilidade estatística de ser atingida à sorte. São pelo menos dez mil as casas totalmente destruídas, com mais de vinte mil significativamente danificadas.

Quem tinha armas na mão e as sabia usar, estando preparado para isso, esteve sempre muitíssimo mais seguro. Na verdade, segundo informam as brigadas Al-Qassem (Hamas), de longe a maior fracção da resistência armada palestiniana (que se prezam sempre de honrar os seus caídos em combate) foram exactamente 48 os seus combatentes falecidos, de entre um total de mais de 1.300 mortos do lado dos residentes de Gaza. Os soldados israelitas comuns evitam o combate, por norma, salvo quando estão absolutamente seguros de poder abater o inimigo a partir de uma posição em que não estão minimamente postos em risco. Se tiverem que tomar uma posição com risco pessoal, pura e simplesmente ninguém avança. Não há qualquer voluntário para missões de sacrifício e abnegação. Por isso, grandes colunas de cavalaria mecanizada, com uma superioridade técnica e numérica esmagadora, podem ser facilmente detidas, durante semanas, por não mais de três ou quatro atiradores bem colocados.

São essas, aliás, as instruções muito precisas que têm, pois que a “lição” tirada pelo governo israelita (e transmitida ao seu alto comando militar) da falhada invasão do Sul do Líbano em 2006 foi precisamente que há que sofrer menos baixas e, portanto, expor ainda menos os seus homens. Estamos agora já muito longe do ideal guerreiro e “conquistador” dos sionistas originais, aproximando-nos, isso sim, do ideal clintoniano da “guerra de baixas zero”: pura matança, punição cega e destruidora intencionalmente dirigida aos não combatentes. Isto apesar de a resistência de Gaza estar, claramente, muito longe de possuir os recursos, o enquadramento, a direcção, a organização, a doutrina e o treino do seu modelo libanês do Hezbollah. Não se confirmou sequer que tivesse armamento anti-tanque e anti-aéreo efectivo e capaz.

Estruturalmente alicerçada no racismo, a sociedade israelita não se deixa minimamente condoer pelo “inimigo” mas é extremamente sensível a baixas entre os seus rapazes. A “frente interna” sionista desmoraliza assim muito facilmente. A grande maioria dos soldados invasores são jovens urbanos, que bem prefeririam estar em casa a jogar play-station e a molhar bolachas em leite desnatado com corn flakes. Aliás, uma boa parte deles começa já a mostrar cada vez menos paciência para as constantes exortações assassinas dos seus pais e avós. E se é só ainda uma pequena minoria idealista que o diz já bem alto, arrostando com penas de cadeia, a sua voz não escadaliza quase ninguém dentro da sua faixa etária.

Do ponto de vista do confronto armado efectivo, esta foi uma guerra caricata, onde quase nada se passou. A resistência palestiniana disparou quantos foguetes e rockets quis para o interior de Israel, de onde quis, de forma rotineira e completamente à vontade, ficando ainda com um extenso arsenal por usar. A infantaria israelita não tentou sequer progredir pelas artérias urbanas, salvo uma ou outra rara escaramuça dos comandos especiais “golani”, com apoio aéreo. Abdicou por completo de tentar deter aqueles disparos, ficando apenas à espera que a resistência palestiniana cometesse algumas loucuras suicidas em campo aberto, por desorganização, espontaneísmo ou excesso de entusiasmo. Também isso não aconteceu muito. As milícias do Hamas e da Jihad Islâmica quiseram, isso sim, atraír os soldados israelitas para algumas ciladas montadas, que lhes permitissem alvejá-los de forma articulada e, sobretudo, fazer alguns prisioneiros, que são moeda de troca politicamente valiosíssima. Aparentemente tê-lo-ão conseguido algumas vezes, mas aí a aviação israelita matou os captivos (por lamentável “fogo amigo”) juntamente com os captores.

As tropas invasoras terrestres estiveram essencialmente preocupadas em não se deixar matar nem aprisionar. Para além disso, sequestraram e maltrataram alguns civis, mataram outros a tiro, demoliram bairros e aldeias inteiros a buldozer, cometendo também, como é já hábito, alguns actos de roubo e vandalismo cego. No final, não foram capazes de apresentar um único troféu militar capturado (bunkers, túneis, rockets, rampas de lançamento, centros de comando, documentos), um único “terrorista” ajoelhado e encapuçado. No entanto, trata-se de uma das mais formidáveis máquina de guerra alguma vez reunidas no mundo “ocidental” e a Faixa de Gaza é apenas um bairro de lata de tamanho médio - de entre os milhares que hoje se espalham e proliferam um pouco por todo o mundo da “globalização” capitalista – enxameado, para além disso, de colaboracionistas bem conhecidos e referenciados, da Fatah e não só. Enfim, foi uma guerra de chacha que, no entanto, se saldou por uma vitória épica e historicamente marcante para o povo palestiniano. E os verdadeiros heróis não estavam à vista no campo de batalha.

A liberdade de Gaza é escavada diariamente, com as mãos nuas e instrumentos rudimentares, ao longo de centenas e centenas de túneis subterrâneos. Existiam talvez uns seiscentos, em estimativas recentes, sendo certo que as bombas de perfuração israelitas terão inutilizado um certo número na zona da “Philadelphi Road”, no decurso desta brutal agressão. Todavia, uma grande parte deles mantém-se e esteve mesmo em plena operação durante toda a guerra. Alguns destes túneis, a Norte, serão destinados exclusivamente a operações militares, pelas várias facções da resistência. A grande maioria, porém, na fronteira egípcia, destina-se a introduzir clandestinamente na Faixa de Gaza todo o tipo de bens e mercadorias de primeira necessidade. Incluindo-se, entre estas, naturalmente, as armas e os componentes essenciais ao seu fabrico ou montagem artesanal, a executar já em terras palestinianas. Poucos destes túneis são reforçados (ou são-no de forma muito rudimentar) e para avançar neles é preciso normalmente ir de gatas, em semi-obscuridade, por centenas de metros ou mesmo vários quilómetros, sem saber muito bem o que haverá à chegada.

A fronteira da Faixa de Gaza com o Sinai é felizmente ocupada, numa grande extensão, sobretudo do lado palestiniano, pela densa área urbana da cidade de Rafah, que ficou dividida desde 1982 na sequência da execução dos “acordos de paz” de Camp David. Os túneis transfronteiriços são construídos sempre com entrada e saída no soalho de casas particulares. Do lado egício, nesta zona da península do Sinai, existe uma numerosa população de beduínos, de uma rebeldia intratável para com a ditadura de Mubarak, que inclusivamente já os tentou deportar. Alguns grupos radicalizados cometem ocasionalmente atentados bombistas (atribuídos à... Al-Qaeda) contra alvos da hotelaria de luxo, com clientela ocidental. São geralmente beduínos os agentes que tomam a seu cargo estas operações comerciais clandestinas, sendo visíveis na paisagem urbana alguns sinais de riqueza certamente provinda desta actividade. Há ainda muitos palestinianos que fixaram residência no Sinai, junto à fronteira de Gaza.

A polícia egípcia, de modo geral, fecha os olhos ao tráfico pelos túneis, excepto um ou outro oficial que prefira uma promoção rápida à persuasão amigável ou ao suborno. Ainda assim, já foram deste modo ocupados e inutilizados cerca de 200 saídas de túneis, nos últimos quatro anos. E estes resultados têm sido em crescendo. Todavia, trabalhando a partir do lado de Gaza, esses mesmos túneis podem facilmente ser desviados, construindo-se-lhes novas saídas. É um jogo subterrâneo de gato e rato, que leva os sionistas ao desespero. Mubarak tem-se mostrado, para já, oposto à presença de forças internacionais em solo egípcio para controlar a fronteira e respondido com alguma irritação aos insultos e ameaças por parte de Israel a este propósito. Quer, isso sim, rever os acordos de Camp David de modo a ser-lhe permitida uma mais forte presença militar nesta zona, mas a isso Israel ainda não aquiesceu, pelo menos para já (4).

A eliminação dos túneis por onde passa a liberdade de Gaza é, naturalmente, uma preocupção maior da entidade sionista, tendo sido objecto de numerosos estudos que merecerão figurar, futuramente, nos anais da história universal da infâmia. Eis algumas hipóteses postas pelos planeadores israelitas e norte-americanos, discutidas com consultores internacionais de engenharia, com o Egipto e com a “Autoridade Palestiniana” (5) :

- Uma zona tampão desabitada de 3 quilómetros no interior de Gaza, o que significaria, pelo menos, arrasar toda a cidade e o distrito de Rafah;

- Fazer uma extensão subterrânea para o muro, de betão armado com aço, até uma profundidade mínima de 7 metros ou um novo muro com estacas ainda mais profundas;

- Construir um fôsso ao longo da fronteira, com cem metros de largura e 25 metros de profundidade, a encher com água do mar; já está orçamentado em 250 milhões de dólares e, apesar de isto provocar certamente a contaminação de toda a água do solo e o seu sistema de abastecimento público em Gaza, a “Autoridade Palestiniana” ter-se-á mostrado receptiva à ideia;

- Se não um fôsso, pelo menos uma grande trincheira vazia, com uma profundidade maior mas reduzida a 25 de largura;

- Um sistema terrestre de vigilância por radar de penetração ao solo, usado já na fronteira México-E.U.A., ou de gradiometria electromagnética;

- Um sistema de sensores subterrâneos de gradiometria electromagnética mas operado por “drones” aéreos não tripulados;

- Sensores acústicos ou sísmicos enterrados no lado egípcio, ligados por cabo e por satélite a um centro de tratamento, que pode até ser em Telavive; o Egipto já recebeu 23 milhões de dólares e treino norte-americano para operar este sistema; Israel não confia na colaboração da polícia egípcia e quer um sistema inteiramente seu, mas para isso necessita de presença “internacional” no Sinai;

- Bombardeamento “estatístico” (ou seja, à sorte) pelo ar e por mar, de três em três ou de seis em seis meses, com bombas de 600 quilos colocadas a 10 metros de intervalo.

São estas, ou algumas destas, as frentes por onde vai prosseguir nos próximos anos, agora longe já da atenção da Imprensa, a guerra implacável de extermínio movida por todas as potências do mundo ao destituído povo palestiniano de Gaza, a maior parte dele já vítima de expulsão das suas terras ancestrais. Em paralelo, vão decorrer negociações secretas e indirectas (envolvendo os E.U.A.), visando a libertação do soldado israelita captivo Gilad Shalit, as quais desembocarão provavelmente na libertação de muitos prisioneiros palestinianos e nalgumas concessões quanto à abertura fronteiriça. Em todo o caso, o essencial do comércio de Gaza continuará a ser clandestino por muitos e muitos anos, feito por intermédio de longos mergulhos para uma luz evasiva. Apropriadamente para o local, a saga do povo palestiniano começa a ganhar contornos bíblicos.

Israel perdeu esta última guerra a vários níveis. Desde logo, porque ficou claro para quem tem olhos na cara que a mão armada palestiniana em Gaza é firme e, no futuro, vai-se apenas manter e reforçar. Está completamente fora do seu alcance desarmar e amordaçar Gaza, ou interferir decisivamente nas suas opções políticas, mesmo com toda a assistência técnica e político-militar do Ocidente e a cumplicidade criminosa de Mubarak. O governo autónomo palestiniano em Gaza é agora uma realidade aparentemente irreversível, conquistada e defendida por meios próprios, não outorgada pelo ocupante com a benção e o subsídio da “comunidade internacional”. O êxito militar da resistência em Gaza é indiscutível, só faltando agora saber se o Hamas tem a capacidade, a organização e os apoios políticos necessários para tirar dele todo o partido possível. Isto sem esquecer, naturalmente, que só ao longo do próximo ano é que se conhecerá verdadeiramente o modo e a extensão em que a população de Gaza será afectada, no seu ânimo e nas suas atitudes, pela brutal agressão a que foi agora sujeita, não podendo desde já excluír-se que este imundo crime venha a obter alguma compensação, nos exactos termos em que foi pensado. Entretanto, é difícil acreditar que ele se repita tão cedo, nestas dimensões, pois que isso perturbaria demasiado o optimismo celebratório universalista da obamania.

Podem ainda os sionistas resmungar que têm outras soluções, mais abertamente genocidas. E na verdade há planos militares detalhados, que agora foram debatidos em conselho de ministros, para uma demolição de Gaza casa a casa, por explosões controladas à distância, que demoraria de nove meses a um ano. Mas essa solução é completamente impraticável, não tanto por medo da opinião pública mundial, mas porque o próprio Estado israelita já está pressionado militarmente pela ameaça de uma retaliação massiça, por parte do Hezbollah, da Síria e do próprio Irão (em breve detentor da bomba atómica). E se os israelitas começarem a ver habitualmente corridas frenéticas aos abrigos e as suas cidades escavacadas por mísseis, será muito difícil deter a descrença e a debandada para o “Ocidente” das suas “classes médias” profissionais, que aliás já começou.

Por outro lado, Gaza, longe de ser um “peão do Irão”, tem muitos amigos (alguns bastante endinheirados) também no mundo árabe, inclusivamente entre as monarquias petrolíferas do Golfo Pérsico. Já tinha alguns e agora tem mais. Quem começa a ficar isolado é a “Autoridade Palestiniana” e os regimes árabes ditos “moderados”. Aliás, verdadeiramente “moderado” agora é apenas o Egipto, pois que a monarquia jordana tem posições equilibristas, plenas de nuances, enquanto as facções pró-“ocidentais” no Líbano não querem ser vistas como tendo qualquer relação com Israel. Mesmo a Arábia Saudita achou oportuno lembrar a Israel, nesta hora, que a sua proposta de paz - com base na solução de dois estados separados pelas fronteiras de 1967 – é para pegar ou largar, pois que não se vai manter para sempre.

Israel contava, como sempre, com a cumplicidade e compreensão unânime do “mundo ocidental” para com as suas barbaridades, pois que se considera um posto avançado de defesa da sua “civilização”. Mas a imagem que lhe reflectiu de si própria, no espelho de Gaza, foi demasiado repugnante e fê-la estremecer com algum horror. A partir de agora vão começar a notar-se algumas brechas no consenso em torno da “legítima defesa de Israel”. Se continua a ser um aliado estratégico indiscutível dos Estados Unidos, na Europa a boa vontade já não é unânime e começam a ouvir-se vozes respeitadas a favor de boicotes e acções por crimes de guerra.

O tempo começa a correr contra os planos dos sionistas, que sentem a corda da história cada vez mais tensa, têm medo mas não sabem como resolver a situação, pois que a linguagem da paz lhes é completamente estranha, insuportável. O presente estado de Israel só poder ser aquilo que é: racista, supremacista, expansionista e agressivo para com os seus vizinhos. A solução dos dois estados está completamente morta à nascença. Aliás, nunca foi sequer encarada seriamente, a não ser como grande teatro de ilusões e mecanismo para a corrupção e cooptação de elites colaboracionistas entre os ocupados. Para o próprio povo palestiniano nunca teve nada a oferecer, para além do que ele tem agora. A verdadeira solução, a médio prazo, é a de um único estado democrático, laico e multicultural. Mas para os sionistas isso é nada menos que o novo “holocausto”. E como se sabe por toda a história do colonialismo de povoamento (Argélia, Angola, Moçambique, etc.), ele não tem uma transição natural para a paz e o governo da maioria, pois que uma grande parte dos colonos, frustrados nas ilusões supremacistas com que foram engodados, preferirá sempre, pura e simplesmente, fazer as malas. Quando a ditadura de Mubarak for derrubada, as coisas podem precipitar-se muito rapidamente.

O desmantelamento do projecto sionista será um evento histórico mundial de enorme impacto, abrindo larguíssimos horizontes de emancipação e cidadania cosmopolita para todos os povos do Sul. Em certo sentido, será o encerramento final da era do colonialismo progressivista e do racismo “científico”, que teve o seu auge já no terceiro quartel do século XIX e que tem vindo, desde então, a esvair-se lentamente, em sucessivos espasmos agónicos. Mas essa era, enfim, não é outra senão a própria era do capital. É por isso que é impossível dissociar as desesperadas agressões sionistas da crise global do capitalismo que estamos vivendo.

Colocados nas alas do corrupto Olmert, enquanto o patriarca Sharon dorme o sono pesado do coma, Tzipi Livni e Ehud Barak podem ter orquestrado toda esta orgia sangrenta e inepta em Gaza, pelo menos em parte, por pensarem que seria da sua conveniência eleitoral. Mas a turba embriagada de raiva com o festim só tem agora um grito unânime: dêem-nos Netanyahu!



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NOTAS:

(1) Ali Abunimah, ‘Why Israel won’t survive’.

(2) Leiam-se alguns exemplos em Paul de Rooij, ‘The Carnivores and the Ivy League Apologists’.

(3) Noam Chomsky, ‘Exterminate all the Brutes: Gaza 2009’.

(4) William Saletan, ‘Holey War: How to close the Gaza tunnels’.

(5) ‘CRS Report for Congress: The Egypt-Gaza Border and its Effect on Israeli-Egyptian Relations’.