Os mistérios da lusofonia

Acordo ortográfico para as calendas

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O Diário da República de 28 de Janeiro de 2000 (I Série-A) publica uma curiosa peça de hipocrisia jurídico-diplomática: a aprovação pela Assembleia da República e ratificação pelo digníssimo Sr. Presidente da República de um “Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado na Praia (Cabo Verde) em 17 de Julho de 1998. Não me lembro que este protocolo - assinado discretamente numa cimeira dos países da dita Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) - tenha então constituído notícia. Muito menos o seu significado prático.

Como é sabido, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em Lisboa, por representantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e S. Tomé e Príncipe, em 16 de Dezembro de 1990, com base no projecto de texto de ortografia unificada da língua portuguesa aprovado pela Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras, com delegações dos restantes países lusófonos. Rezava o seu artº 2º:

“Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.”

E o artº 3º:

“O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em 1 de Janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.”

Ora, até hoje, nem o trabalho de unificação da terminologia científica e técnica foi concluído nem o acordo foi ratificado por todos os países signatários (nomeadamente por Portugal). O “protocolo modificativo” vem pois - e unicamente - alterar os artºs 2º e 3º do Acordo, retirando deles as balizas temporais aí previstas (trechos sublinhados), sem as substituir por quaisquer outras. Um ligeiríssimo retoque de redacção para siginificar que, em boa e corrente expressão lusófona, fica tudo afinal em águas de bacalhau.

Será isto um motivo de preocupação para nós comunistas? Eu penso que sim. A unificação ortográfica derrubaria de um só golpe uma importante barreira proteccionista no mercado de produtos idealizados. No fundo, trata-se de uma "non-tariff barrier" semelhante a milhares e milhares de outras existentes na legislação dos países capitalistas mais desenvolvidos. O 'Jornal Oficial das Comunidades Europeias' (agora União Europeia) há quarenta e tantos anos que publica todos os dias regulamentação uniformizada sobre os aditivos permitidos na salsicha, os tipos de fermentação no fabrico do queijo, as componentes das rações para alimentação dos suínos, o tamanho padrão do preservativo europeu, etc., etc., etc.. Parece ridículo - sobretudo quando cotejado com as declarações grandiloquentes dos políticos sobre o 'pátria espiritual europeia' - mas é assim que se cria um mercado.

Com um padrão uniformizado de ortografia portuguesa, é quase certo que, a prazo, a indústria editorial se cartelizaria transatlânticamente. O terreno ficaria livre para o jogo das leis da concentração e centralização capitalista (a menos que surgissem barreiras tarifárias, mas aí a decisão política de as erguer já seria muito mais custosa). O mercado brasileiro é vasto e bem apetecível para as editoras portuguesas mais fortes. O mercado português é certamente bem mais exíguo mas ainda assim não desprezível (tendo em conta que a percentagem de população letrada e solvente é aqui maior do que no Brasil) para as brasileiras. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde podem também ajudar a escoar algum produto. Com a unificação do mercado livreiro, viria uma certa sintonização das correntes e modas intelectuais. Os periódicos e revistas circulariam transatlânticamente. Os contactos académicos e da mundanidade intelectual fortalecer-se-iam. Tudo movido em última instância pela ânsia de acumulação.

Uma boa tradução do Joyce, de Hegel, de Kant, de Wittgenstein, de Heidegger (blarrrghh!), são trabalhos morosos e difíceis. A única edição completa de 'O Capital' em português continua a ser a da tradução de Reginaldo Sant'ana publicada pela Civilização Brasileira (e depois também pela 'Bertrand'). Em Portugal, o mercado é de tal forma restrito que pura e simplesmente não compensa. Os realmente interessados acabam por ler estas obras no original ou em traduções inglesas ou francesas. O mesmo para a literatura científica e técnica básica (com os seus conceitos novos) que acaba por nunca ser assimilada pela língua portuguesa. Em sentido inverso, é claro que neste universo linguístico restrito e balcanizado, as criações de valor que ainda assim despontem terão muito mais dificuldade em obter reconhecimento universal. O mundo passa-nos ao lado e nós não contamos para o mundo.

E é assim que uma língua se vai tornando periférica e marginal: pobre de conteúdo ideogénico (valor de uso), inoperante em termos de criação de riqueza mercantil (valor de troca). E quem sofre mais com isso são os povos africanos que ainda têm de fazer um esforço suplementar para se aculturarem no português, para depois descobrirem que este é afinal um veículo cultural perdedor. Para atalhar este processo, não vejo outra solução que não seja a unificação do universo linguístico. Com a criação de um mercado de bens culturais alargado, talvez se atingisse a massa crítica suficiente para evitar, pelo menos no futuro próximo, a completa derrota, pulverização e marginalização da língua portuguesa. Por outro lado, uma ortografia moderna e simplificada é, por si só, um instrumento de democratização da cultura, alargando a sua base de fermentação e furtando-a à reprodução estéril dos mesmos círculos fechados e elitistas.

Enquanto dominar a lógica mercantilista, os resultados deste processo de unificação de universo cultural lusófono não seriam todos brilhantes. Haveria por aí muito lixo (tanto na "baixa" como na dita "alta" cultura) a circular livremente. Mas isso já se verifica hoje, embora unilateralmente. Como é sabido, em termos de cultura popular, Portugal é já um mercado cativo da rede 'Globo' e da indústria discográfica brasileira. As nossas revistas femininas e mundanas estão cheias de fofocas sobre actores, cantores e humoristas brasileiros. Os quatro canais de TV passam umas 4-5 horas diárias de telenovelas brasileiras.

Eu tendo a ser um pouco descomplexado em questões de cultura popular e de massas. A mim o que me interessa é que as pessoas leiam. Na Grã-Bretanha, nos E.U.A. ou na Alemanha, a cultura de massas não é em nada melhor do que no Brasil ou em Portugal. Para um público semi-analfabeto, uma revista popular feminina que dê alguns conselhos sãos em termos de sexualidade e consumo, consultório jurídico e noticiário básico já é um grande passo em frente. Eu dou-me ao trabalho de seguir alguma dessa imprensa e ela não assim tão má como isso (no sentido de intencionalmente embrutecedora). Aqui em Portugal, há uns trinta anos atrás dava-se um fenómeno curioso. Com uma população em 30% analfabeta, os top ten de livros mais vendidos eram sempre ocupados por obras de grande qualidade (com tiragens de 2000 a 5000 ex.). Só agora é que começam a aparecer as obras medíocres nos tops (como só agora é que apareceu a televisão espectáculo popular). E isso é um bom sinal. É sinal de que a literacia e o hábito de leitura começa a ganhar algumas secções das grandes massas. É sinal também de que alguns segmentos das massas trabalhadoras têm agora algum poder aquisitivo e os rudimentos de uma cidadania efectiva que lhes foi obstinadamente negada por décadas de obscurantismo e repressão. Pode não ser muito bonito, mas é um fenómeno social basicamente salutar e progressivo.

A democratização do acesso à cultura e a livre expressão da individualidade criadora de todos (e em particular dos trabalhadores) não se resolve certamente com reformas ortográficas. É necessária uma política dirigista, com uma grande afectação de recursos à promoção e dinamização cultural. No limite, só a ditadura do proletariado - abrindo o caminho à superação das relações de produção capitalistas - dará uma resposta capaz. O Acordo Ortográfico porém era uma via que poderia dar alguns resultados já, nesta sociedade que temos, com os mesmos F.H.C. e o seu amigo Guterres no poder. Tudo dentro da mais pura lógica mercantil e até neo-liberal. É claro que um universo linguístico fortalecido só nos pode favorecer. Não é verdade que, Lenine dixit, o capitalista é até capaz de vender a corda com que virá a ser enforcado?

O naufrágio do Acordo Ortográfico não foi porém certamente causado pelo temor da revolução proletária. O que este episódio revela é uma capitulação em toda a linha da burguesia lusa no grande teatro da “globalização”. Sob a batuta de meia dúzia de barões da cultura e da “opinião” (tão intransigentes na defesa das preciosas consoantes mudas como provincianamente acocorados perante Nóbeis ou outras feiras internacionais) e de editores receosos e timoratos, a burguesia nacional fechou-se em copas, isto é, na facilidade do xenofobismo anti-brasileiro e do desdém pelos africanos. Disfarçou fraquezas próprias com a arrogância pelintra e senil do português velho e de lei. No seu horror congénito à modernidade e às massas, meteu a cabeça na areia (no capelo e borla das macaquices doutorais coimbrãs). Sacrificou o futuro ao passado. O futuro terá de lhe ser arrancado das mãos.

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Publicado na revista 'Política Operária', nº 74, Março-Abril de 2000.