“The nineties began with the mass destruction of Marx effigies. It was the "postmodern" age: We weren't supposed to need big ideas. As the nineties end, we find ourselves in a dynamic global society ever more unified by downsizing, de-skilling and dread - just like the old man said. All of a sudden, the iconic looks more convincing than the ironic; that classic bearded presence, the atheist as biblical prophet, is back just in time for the millennium. At the dawn of the 20th century there were workers who were ready to die with The Communist Manifesto. At the dawn of the XXIst, there may be even more who are ready to live with it.”
Marshall Berman
‘Adventures in Marxism’

“Retour à Marx? C’est plutôt lui qui nous rejoint, tant ses analyses s’avèrent correspondre à la réalité d’aujourd’hui et en avance sur celle de son temps. Qui ne put donc s’en saisir plainement puisqu’il ‘ne suffit pas que la pensée pousse à se réaliser, il faut que la réalité pousse à penser’.
“A l’Est comme a l’Ouest, la réalité pousse aujourd’hui à penser marxiste. Du moins pour ceux qui se refusent à refuser de penser.”
Tom Thomas
‘Le capitalisme des deux mondes’

.

.

Introdução

.

Os artigos e ensaios que fazem parte deste volume têm como traço de união o facto de se situarem todos dentro de um esforço de divulgação e renovamento do pensamento marxista, esforço que venho desenvolvendo há já muitos anos. Desde muito antes portanto do recente “retorno de Marx”, na vaga das crises, ditas “financeira” e “asiática”. Retorno esse, aliás, para já apenas a custo sussurrado, pois que a triunfante burguesia fini-secular ainda por demais teme o regresso do recalcado na forma da nefanda luta de classes, tratando a ferida diligentemente com as compressas do renomeado “pensamento único” e doses maciças da anti-sépticos neo-kantianos - natura doedala rerum. Como quem vai esconjurando a tempestade com ladainhas.

A minha formação cultural é como poeta. E foi por uma operação eminentemente poética de concreção que passei da poesia propriamente dita à revolução, que não é mais que poesia em estado puro. O resultado foi que me embrenhei cada vez mais no Marx, no Lenine e nos outros. Leio jornais e revistas furiosamente. Vasculho a internet. E deixei de alinhar versos. Agora escrevo sobre a Indonésia e o F.M.I., o comércio mundial, a NATO, uma nova internacional proletária, o bufão Yeltsin e coisas assim. Descurando emprego e outras obrigações, deixei-me enredar cada vez mais nessa “grande insónia do mundo”. E nela vou buscando incessantemente - com aquela “cólera e paciência” de que falava Hans Magnus Enzensberger - os fios de sentido com que se poderá tecer a única salvação possível. Tendo por certo que, a final, nada nem ninguém será salvo.

Há algo em Karl Marx que toca no mais profundo e solene da aventura humana. Algo a que só nos aproximamos com um certo temor mas que nos prende para sempre, como um excesso de luz. ‘O Capital’ é, a meu ver, de longe, a maior obra de sempre do espírito humano. Obra eminentemente poética, naturalmente, no seu obstinado rigor. Este homem, com um esforço tenaz, encarniçado, inexorável, abriu para a ciência os segredos mais inconfessáveis da vida social, expondo de um só golpe - em corte e alçado - o planeta inteiro aos nossos olhos como a imunda termiteira humana que ele realmente é. Trabalho necessário, mais-valia, D-M-D’. Como do sangue, suor e fezes das grandes multidões laboriosas se foram amassando as riquezas acumuladas nas mãos dos poucos, reproduzindo-se o ciclo incessantemente com uma regularidade cega e brutal, pontuada pelas catástrofes periódicas da sobreprodução. Há assim no marxismo, além de um poderoso (quase compulsivo) apelo intelectual, a interpelação directa dessa figura heróica absolutamente ímpar na história do pensamento.

A minha aproximação ao marxismo deu-se na alta adolescência, há uns bons vinte anos. Foi operada pela via do ecologismo e do socialismo autonomista (André Gorz, Eric Fromm, Henri Lefèbvre, o grupo ‘Socialisme ou Barbarie’). Entre 1983 e 86 fui militante do PCP, onde me aproximei da tradição mais estritamente leninista e desenvolvi pela primeira vez algum trabalho político de base. Conheci aí gente inesquecível, daquela que vai batendo o pé aos patrões e outros pequenos sátrapas demo-liberais, como delegados sindicais, membros de comissões de trabalhadores, animadores e dirigentes de associações populares. Gente que faz de muitas fraquezas reunidas a força possível aqui e agora, a golpes de engenho, criatividade e malícia experiente. Gente vibrante e generosa, por vezes assaltada por um toque de melancolia, são eles que demarcam e guarnecem quotidianamente a linha de frente na luta de classes em Portugal.

Retirado da militância política de base por opção pessoal e também por razões políticas, o meu afastamento do PCP não teve nem terá nunca nada a ver com os lugares comuns do filistinismo oportunista social-democratizante, nem com as eufóricas litanias pós-modernistas. Não careço de me “libertar” dos tais nefandos dogmas colectivistas pela via da venalidade auto-celebratória ou do “humanitarismo” filo-imperialista de pacotilha, hoje tão em voga e tão generosamente recompensado em letra de forma. A minha busca foi outra. De olhos bem enxutos, parti ao reencontro de uma raiz e de uma linhagem de pensamento e de luta que atravessa os dois últimos séculos. Para as aferir, temperar e requalificar com vista às batalhas futuras, tendo por horizonte o advento de uma sociedade sem classes que é a única via de recusa, enquanto homens livres, à barbárie agravada que nos confronta e avilta. E ao pior que aí vem. Hoje considero-me um marxista “clássico”, devedor de toda a tradição das internacionais operárias e em particular de Lenine, Trotsky, Luxemburgo, Gramsci, Lukács, Mao Zedong e Althusser.

A grande maioria das peças aqui reunidas são compilações, rearranjos e reformulações de textos publicados na revista ‘Política Operária’, de Francisco Martins Rodrigues, onde sou colaborador permanente desde 1992. Daí resulta um certo efeito de inactualidade de alguns comentários (políticos e outros), que todavia assim mesmo entendi aqui reproduzir, por respeito à concreção que é a alma mesma do marxismo. A colaboração nesta revista (não isenta de incidentes e sobressaltos) tem sido muito importante para a minha formação e disciplina intelectuais. Ao “Chico” - uma das referências fundamentais do pensamento revolucionário português desta segunda metade do século - é devida aqui uma palavra de carinho e saudação.

‘Modernidade e Mundialismo’ tem por base o texto de uma palestra proferida no âmbito das Conferências do Inferno/94, promovidas pela revista ‘Última Geração’. ‘Althusser: perigo de vida’, aqui publicado pela primeira vez, foi concebido como prefácio à tradução portuguesa da obra ‘Pour Althusser’ de Étienne Balibar. ‘Diálogo sobre a sociedade do futuro’ é uma adaptação de um debate mantido pela internet com Joseph Green, do grupo Communist Voice (Detroit, E.U.A.).

Muitas das ideias que exponho ao longo deste livro nasceram de discussões que, há vários anos, venho mantendo por e-mail em diversos fora electrónicos de temática marxista, com destaque para as mailing lists animadas pelos meus amigos Louis Proyect (Nova Iorque), Mark Jones (Londres) e Nestor Miguel Gorojovsky (Buenos Aires). O convívio intelectual e camaradagem que pude estabelecer, por esta via, com inúmeros camaradas - de que destaco Yoshie Furuhashi (E.U.A.), Viraj Fernando (Sri Lanka), Siddarth Chatterjee (Índia) e Philip Ferguson (Nova Zelândia) - foi também fonte de enriquecimento e exultação. Mansoor Hekmat (do Worker-Communist Party do Irão), Alex Callinicos, Chris Harman, a escola da ‘Monthly Review’, Samir Amin, Claude Bitot e Tom Thomas são grandes pensadores marxistas contemporâneos cuja obra - situada na encruzilhada de problemas que aqui se debatem - merece referência, tanto mais que alguns deles pertencem a uma geração ainda largamente por descobrir.

A aposta na actualidade do pensamento de Karl Marx, de tão óbvia e flagrante (para quem não se deixe voluntariamente cegar pelas flutuações do mercado de produtos intelectuais), não chega a sê-lo e certamente não me granjeará louros de visionarismo, que de resto não procuro. Aqui tratei só de registar algumas reflexões soltas, quase em jeito de diário de bordo, com vista ao (re)início de um debate que se faz já urgente, porque é o nosso.

.

Gaia, 15 de Março de 2000