Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

JUSTIÇA VERMELHA (Red)

  por Rogério Schietti Machado Cruz
Promotor de Justiça do Distrito Federal

Filme muito envolvente, dirigido por Jon Avnet, e estrelado por Richard Gere, que representa o papel de um advogado de uma grande empresa de telecomunicações, a qual procura vender um pacote de filmes eróticos ao governo da República Popular da China, com todas as dificuldades e naturais resistências derivadas da Revolução Cultural Maoísta. Gere, após passar uma noite com uma prostituta de elite, é preso pela manhã ao acordar, sob a acusação de haver assassinado a jovem chinesa.

Levado à prisão, Gere passa a sofrer todas as humilhações e violências de um prisioneiro do regime comunista.

No seu julgamento, uma espécie de "formalidade" para a legitimação de uma iminente execução, Gere é defendido por uma jovem idealista advogada, que lhe surpreende, logo de início, ao afirmar perante a Corte, que seu cliente se declara culpado.

À medida que o "julgamento" prossegue, a intrépida advogada se vê diante de evidências que livrariam seu cliente de uma condenação. Mas como convencer um tribunal parcial, com uma convicção já formada acerca da culpabilidade do réu?


DESTAQUE JURÍDICO


Dentre outros temas abordados no filme, podemos destacar dois: 1) os perigos decorrentes da admissão generalizada da PLEA GUILTY e 2) a necessidade de se permitir ao acusado o exercício de sua AUTO-DEFESA, ao mesmo tempo que se lhe assegura uma DEFESA TÉCNICA efetiva.

1. Quanto ao primeiro destaque jurídico, o filme nos mostra que o prisioneiro na China é advertido com uma frase gravada na parede da sala de interrogatórios: "Indulgência a quem confessa; rigor a quem resiste". Daí porque a advogada de Richard Gere ter afirmado à Corte que seu cliente se declarava culpado (embora já houvesse ele, peremptoriamente, negado a autoria do homicídio), pois se mantivesse a afirmação de sua inocência, a quase inevitável condenação lhe renderia uma bala na nuca. Detalhe mórbido: o governo chinês enviaria à família do executado a conta pelo valor do projétil...

Desconsiderando as questões ideológicas subjacentes ao filme em comento, o sistema criminal chinês não difere muito dos seus correspondentes ocidentais, inclusive o nosso, em que as investigações e a produção da prova se condicionam, quase sempre, à confissão do acusado. A confissão, infelizmente, ainda é a "rainha das provas". Dizemos "infelizmente" porque já vimos, no passado não muito distante, os horrores que até mesmo a Igreja, em sua jurisdição eclesiástica, cometeu em processos criminais, sob a justificativa de que se pretendia obter do "criminoso" ou "herege" a confissão de seu crime ou pecado.

Até o início do século passado, tínhamos no Brasil expressa permissão legal (por força de dispositivo das Ordenações Filipinas) para o uso de tortura (as "tormentas") na obtenção da confissão do réu. E, ainda hoje, essa obstinação de se esclarecer crimes produz resultados muitas vezes catastróficos e irreparáveis (vide "O CASO DOS IRMÃOS NAVES", na seção "casos interessantes").

A esse respeito cabe também uma reflexão por parte de nós, promotores de justiça, a quem a lei atribui o poder transacionar pena, nas hipóteses reguladas pela Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Cíveis e Criminais). Não há, evidentemente, plea guilty, pois o autor do fato, para aceitar a aplicação imediata de pena, não precisa admitir sua culpa. Não há, também, ameaça de pena elevada ou capital (pois o instituto somente atinge crimes de menor potencial ofensivo). Porém, será que, eventualmente, não se vê o autor do fato em situação similar, mutatis mutandis, àquele outro que, ante o risco de uma pena grave (quiçá de morte), prefere confessar um crime em relação ao qual sente-se inocente? Daí porque alertamos quanto à preocupação que deve ter o membro do Parquet ao propor a transação penal, cuidando para que faça o autor do fato sentir-se encurralado, com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça. A aceitação da proposta formulada pelo Ministério Público há, portanto, de ser consciente, voluntária e isenta de qualquer tipo de pressão psicológica.


2. No que pertine ao segundo destaque jurídico do filme, recordamo-nos de que, logo no início do julgamento, há uma cena muito interessante, que nos fez lembrar do nosso sistema criminal: Quando estava na sala de audiências, surpreende-se o personagem vivido por Richard Gere com a entrada, na corte, de uma desconhecida que se afirma nomeada pelo governo para defendê-lo. Nesse momento, o acusado questiona à Presidente da Corte como é possível que o julgamento se inicie sem que ele, o réu, tenha mantido um prévio contato com sua defensora.

A surpresa do personagem decorre do fato de que, nos EUA e em quase todos os países do ocidente, o acusado tem o direito de previamente entrevistar-se com seu advogado, antes do início do processo, ou, ao menos, antes da produção da prova judicial.

No Brasil, todavia, não é o que ocorre, pois, quando se trata de acusado que não tem condições ou oportunidade de contratar um advogado de sua confiança, geralmente a sua defesa é confiada a um defensor público ou dativo, que na mor das vezes apenas passa a atuar na audiência de inquirição de testemunhas de acusação, após o interrogatório do réu. Por sua vez, o réu com recursos é assistido por advogado contratado, que geralmente intervém na causa ainda na sua fase inquisitorial, já interferindo na colheita da prova e preparando o terreno para um eventual processo. Mais grave, ainda, é o comportamento de alguns defensores nomeados pelo juiz ou pagos pelo Estado, que sequer se aproximam fisicamente de seus clientes - notadamente quando se apresentam algemados e com características físicas "lombrosianas" - para deles colherem informações úteis à sua defesa. A tolerância quanto a esse tipo de procedimento compromete a legitimidade do sistema, ainda quando o promotor de justiça, ou mesmo o juiz, tente suprir a deficiência da defesa.

Se a defesa técnica nem sempre se mostra, portanto, satisfatória, há que se cuidar, por outro lado, da auto-defesa, permitindo-se ao acusado participar, efetivamente, do julgamento, não sendo tratado como um mero observador. Como sujeito de direitos, e maior interessado no resultado da lide penal, o acusado deveria ter maiores oportunidades de ser ouvido, e de receber explicações detalhadas sobre seus direitos no processo, sobre as provas contra si apresentadas , sobre o conteúdo das decisões a ele desfavoráveis, não bastando, para tanto, a mera colheita do nome do réu em um formulário (exemplo: nota de culpa) ou no termo de audiência. É preciso que o acusado saiba não apenas as razões da acusação, mas, principalmente, o que levou o magistrado a condená-lo.

Que as propaladas reformas processuais nos tornem, em um futuro próximo, bem diferentes do triste modelo chinês! Qui lo sà?

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