SANTA ALIANÇA



por

Fernando Rosas



Não deixa de ser curioso e pedagógico constatar a reacção das forças políticas e ideológicas à direita - que há anos vêm reclamando pelas famigeradas «reformas estruturais» - e perante o ensaio, e de um tímido ensaio se trata, em todos os casos, de algumas medidas de fundo aprovadas na Assembleia da República nos últimos meses. Pedagógico, porque a reacção hiperbólica desse campo, onde se misturam numa aliança seguramente santa, partidos da direita, banqueiros, hierarcas da Igreja Católica, associações patronais, plumitivos e comentadores vários, juristas solenes ou economistas dando-se fumos de autoridade e «independência», tal reacção mostra o equívoco da reclamação por «reformas». O que o campo conservador deseja como tal, são as contra-reformas que faltam para esvaziar a denúncia política e social remanescente de qualquer significado, e para embrulhar tudo isso numa retórica moralista e hipócrita, uma espécie de regresso utópico a uma ideologia enquadradora de «antigo regime». Esta é a primeira vantagem da presente ofensiva conservadora: esclarecer que as «reformas» representam coisas socialmente distintas para a direita e para a esquerda.

Efectivamente, o Governo lá se convenceu, muito a medo, a promover um conjunto modesto de medidas de combate ao escândalo da evasão e fraude fiscal e de justiça distributiva elementar - logo um coro colérico de barões da banca, de grandes patrões, de economistas de serviço, de editorialistas conspícuos, secundados pelo PSD e pelo PP, fazem equivaler justiça fiscal ao «saque das poupanças» e ao desinvestimento, ameaçando, sem pudor, com a sabotagem da economia do país, com a fuga de capitais, a deslocalização ou encerramento das empresas e o desemprego a suportar pela imensa maioria que não tem «poupanças» e paga impostos...

A Assembleia da República logrou aprovar um primeiro conjunto de medidas para um novo tipo de combate à toxidependência, partindo da consideração dos toxicodependentes como doentes que carecem de cura e de novas oportunidades, despenalizando consumos ou criando salas de consumo assistido. Conseguiu, também, aprovar legislação que reconhece juridicamente os direitos das uniões de facto, incluindo as uniões entre pessoas do mesmo sexo, tentando, assim, proteger as novas formas de agrupamento familiar. Procurou ainda o parlamento moralizar o privilégio pedagógico e financeiro em que vive a Universidade Católica, condicionando a sua faculdade de abrir novos cursos aos princípios regulamentares existentes por todas as demais universidades e acabando com o regime de financiamento público sem controlo de aplicação das verbas. Finalmente, a AR está a discutir uma lei da liberdade religiosa que regule globalmente as relações do Estado com as igrejas, igualizando juridicamente o tratamento delas perante a lei - diploma, diga-se de passagem, com evidentes derrogações anticonstitucionais ao princípio da laicidade do Estado.

Pois contra este conjunto de medidas levantou-se a exacerbada reacção do mundo conservador, com lamentável saliência da hierarquia católica, secundada, ou com mais propriedade se diria, acolitada, pelos partidos da direita parlamentar. Usando de inusitada agressividade, e recorrendo até ao discurso dominical dos púlpitos, algumas autoridades católicas vêm desenvolvendo uma campanha política contra a «dissolução da família», a permissividade face aos «comportamentos desviantes» ou o «estrangulamento da liberdade de ensino da Universidade Católica». Esclarecendo algumas declarações contraditórias anteriores, o Patriarca de Lisboa não hesitou em aproveitar a solenidade da liturgia pascal para, na homilia de Domingo, declarar que a Igreja Católica se colocava fora da lei em discussão na AR, só aplicável, a seu ver, às minorias religiosas; que queria transitar directamente dos privilégios da Concordata de 1940 para os da nova concordata a negociar com o Estado como regime próprio, e que considerava o parlamento incompetente para deliberar sobre as relações da República com a Igreja Católica, pois esta estava sujeita ao actual e ao futuro regime concordatário onde entendia que os deputados não tinham poderes para intervir. Uma igreja não só com direitos especiais garantidos por legislação particular, como acima da lei ordinária e até acima das competências do parlamento!

Tudo isto me merece três comentários breves.

O primeiro, para referir essa oligarquia obtusa e arrogante, paulatinamente reconstituída nos últimos anos, legítima herdeira de uma cultura de acumulação durante décadas realizada à sombra das pautas, do condicionamento industrial, dos salários baixos e das polícias que os garantiam. Passado o «grande susto» de 1974/75, a nova elite económica entendeu a «normalização democrática» como o regresso à oportunidade de recuperar todos os privilégios recuperáveis, desde a fuga ao fisco, aos salários baixos, à sobrexploração dos imigrantes ou à revisão mais drasticamente redutora de tudo o que sejam direitos sindicais e sociais. Não esqueceram nada e não aprenderam nada.

O segundo, para dizer que vejo com agrado a prolixidade com que a hierarquia católica encerrada num silêncio cúmplice durante quase meio século de violências e violações dos direitos fundamentais por parte da ditadura e do Estado Novo, agora recuperou a fala. Ainda bem: os que lutaram e sofreram pela liberdade, fizeram-no também para que todas as confissões religiosas se pudessem exprimir e associar livremente. A Igreja tem, por isso, um inquestionável direito a pronunciar-se sobre o que quiser e como o entender fazer. Mas deve ter consciência dos efeitos inerentes ao registo da intervenção por que quer optar. Se a hierarquia pretende enveredar, como parece, por um estatuto de intervenção política, semelhante aos das demais forças partidárias, atacando correntes de opinião política, apoucando o parlamento e apreciando em termos de ideologia política os actos do Governo, há-de compreender que deve aceitar as regras do jogo próprias dessa escolha sem se acobertar por detrás do estatuto religioso, nem manipular politicamente as crenças religiosas de cada um. Não é, na realidade, de religião que, nestes casos, estamos a falar, mas de política: das relações políticas do Estado com as igrejas, de política educacional, de política social. No debate político para que a hierarquia se parece posicionar, a fé dos crentes só pode ser trazida à colação por acto de baixa política: não quero crer que quem anda tão perto da transcendência possa cair em tal pecado.

Finalmente, uma referência ao desnorte e à falta de princípios do PS e do seu Governo nesta conjuntura. Qualquer pequeno passo, face ao vozear ultramontano, é pressurosamente corrigido em pânico, num ziguezaguear patético e oportunista que redunda sempre nas piores capitulações. O PS já jurou que repunha o subsídio à UC, já sugeriu que as «salas de chuto» não eram para levar a sério, já garantiu que congelava os salários este ano, já aprovou, sem corar de vergonha, a «lei da família» do PP e prepara-se para ceder tudo, sem pudôr, sem dignidade e até sem respeito pelas instituições da República, na lei da chamada liberdade religiosa. A ausência visível de reacção interna a esta situação é muito preocupante, pois os movimentos populares e as esquerdas têm de contar, na resposta à ofensiva conservadora, com as mulheres e os homens socialistas dispostos a bater-se por causas e por objectivos comuns. Ou será preciso fazer como velho Diógenes, de lanterna na mão à luz do dia: «Procuro um Homem!». Ou uma mulher.


(Público)



Associação República e Laicidade