João Paulo II, emigrante polaco residente no Vaticano, solteiro, de 82 anos de idade, papa católico de profissão, acumulou com a função de criar bispos e cardeais a obsessão de fabricar beatos e santos. Pela-se por milagres e gratifica os autores sem prejuízo da fixação em Maria e uma adoração por virgens que a idade e o múnus se encarregaram de exacerbar.
Mas os santos da igreja católica lembram funcionários acomodados. Fazem um milagre para chegarem a beatos, outro para serem promovidos ao posto seguinte e abandonam o ramo.
Enquanto candidatos praticam a intercessão que lhes rogam mas desistem da vocação milagreira logo que abicham o lugar. E, quando se julgava que a intermediação tinha esgotado as vagas, João Paulo II rubricou alvarás de santo a largas centenas que se estabeleceram em nítida concorrência com os anteriores. Alguns destes fecharam a porta, que é como quem diz, foram apeados das peanhas onde enegreciam com o fumo das velas, se enchiam de fungos com a humidade ou se deixavam corroer pelo caruncho. Com séculos de pequenos e honestos milagres, habituados à pedinchice autóctone e às lamúrias, quase sempre ao serviço de modestas comunidades que atendiam nos limites do razoável, perderam a aura e a devoção, submersos no tropel de novos e afidalgados ícones com vocação mediática. Migraram para as sacristias, acumulando pó a um canto, a delir a pintura e o préstimo, a desgastar as vestes e o respeito, em santa resignação.
Na religião há uma tendência para o sector terciário. Arrotear a fé, pescar almas, são tarefas pouco gratificantes. Transaccionar bulas para digerir carne à sexta-feira, vender indulgências, trocar santinhos, comercializar bênçãos, é negócio do passado. Agora o que está a dar é o lucrativo sector milagreiro em franca ascensão. Promover jubileus é também um sucesso garantido para escoar imagens do promotor e providenciar a divulgação dos promovidos.
Não sei quanto valerá um dente de S. Josemaria Escrivá de Balaguer, com certificado de origem. Há-de andar por uma fortuna, a avaliar pelo êxtase que o primeiro a ser exibido provocou aos peregrinos durante as exéquias de promoção. Estou certo que o mercado já está sortido de outras relíquias, nada restando do novel taumaturgo para exumar.
Pudessem os piedosos coleccionadores ter adivinhado o destino promissor post mortem deste servo de Deus e ter-lhe-iam recolhido em vida duas dezenas de unhas e trinta e dois dentes. E a perda irreparável da primeira dentição! Quem sabe se a premonição materna não terá acautelado o primeiro incisivo transformando um desvelo maternal num tesouro, através deste estranho processo alquímico – a canonização – segredo transmitido aos sucessores de Pedro e usado em doses industriais pelo último pontífice?!.
Pudesse Teodorico Raposo ter deposto no regaço de D. Patrocínio uma relíquia de S. Josemaria, que nem sobrinho, nem tia, nem Eça sabiam que viria a existir, e a devota Senhora ter-lhe-ia perdoado as relaxações a que o sangue inflamado do tartufo o induzia, embevecida pelos eflúvios celestes que dimanam da raiz do canino de um santo assim.
Tivesse a premonição dos membros do Opus Dei adivinhado a santidade do fundador, que grossos cabedais e a longevidade papal lograram, e teriam hoje em armazém abundante recheio de numerosos têxteis tingidos por flagelações ou impregnados de outros fluidos.
A onda de devassidão que grassa no clero amargura o papa – que fez do celibato dogma e da castidade virtude obrigatória – sem que a providência o tenha poupado à divulgação da corja imensa de pederastas, muitos deles pedófilos, que exornam as dioceses da igreja romana.
E um padre que não respeita uma criança não pouparia um anjo.
É, pois, necessário que floresçam santos como S. Josemaria cujas relíquias hão-de servir de benzina para desencardir a alma dos que sucumbem às tentações da carne.
Alfredo Carlos Barroco Esperança Coimbra, 8 de Outubro de 2002 P.S. – O autor está convencido de que o Céu é uma fasquia demasiado alta para ser tentada e a eternidade uma pena excessivamente severa para ser desejada. Nota: este texto foi recusado em três jornais.