Liberdade religiosa em risco

por

Ricardo Gaio Alves

 

Senhor Director,

 A tomada de posse da Comissão de Liberdade Religiosa (no dia 17 de março) passou quase desapercebida na imprensa. Trata-se porém de um evento de enorme gravidade, pois instaura uma hierarquização das igrejas e comunidades religiosas, e confere a um grupo de confissões religiosas −cooptadas pela Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR)− a prerrogativa de se pronunciarem sobre o reconhecimento estatal das outras confissões religiosas.

 Numa República laica, o Estado deve garantir as liberdades de consciência, de expressão e de associação necessárias ao exercício da liberdade religiosa, assumindo simultaneamente a sua incompetência em matéria de religião. A Constituição portuguesa garante essas liberdades e a igualdade entre os cidadãos independentemente das suas convicções filosóficas ou religiosas, e torna assim dispensável e mesmo inconstitucional qualquer legislação, seja a Concordata ou a chamada Lei de Liberdade Religiosa (Lei nº16/2001), que crie direitos específicos para uma dada confissão religiosa. A Lei nº16/2001, infelizmente, institui uma autêntica Comissão de Exclusão Religiosa formada por representantes nomeados pela ICAR (curiosamente, a única igreja a que a Lei não se aplica) ou indicados por outras confissões e nomeados pelo Estado devido à sua “respeitabilidade” adquirida através do “diálogo ecuménico” promovido pela ICAR (o despacho da Ministra da Justiça que nomeia a Comissão é explícito a este respeito). A Comissão será competente para emitir pareceres sobre o reconhecimento pelo Estado do carácter “religioso” das associações (apenas as confissões religiosas benquistas pela ICAR serão assim reconhecidas) e sobre os acordos a celebrar entre estas e o Estado, e elaborará um relatório anual sobre os “novos movimentos religiosos” onde se presume que as confissões religiosas que façam concorrência à ICAR serão referenciadas oficialmente como “seitas” perigosas e falhas de “qualidade religiosa”!

 A Comissão de Exclusão Religiosa lembra o Tribunal do Santo Ofício. Esperemos que desta feita não acendam fogueiras…

 

Nota: Publicado no “Diario de Notícias” de 3/4/2004, com os cortes assinalados a itálico.