DEPOIS DE FÁTIMA



por

Fernando Rosas



Digamo-lo sem rodeios: a cobertura televisiva e radiofónica das cerimónias de Fátima no passado dia 13 de Maio, salvo honrosas excepções (para algumas rádios), foi um dos mais lamentáveis espectáculos de manipulação a que os media portugueses se prestaram desde que desapareceu a censura no nosso país. Entre as coberturas televisivas do passado «13 de Maio» e as que se faziam no tempo do Estado Novo só mudou a cor. Digo-o sem pretensão de exagero: repórteres no local transformados em oficiantes (como assinalou, sempre pertinente, Mário Mesquita neste jornal), alguns em transe, lançados em arrobos disparatados; referindo-se, sem o menor distanciamento ou rigor profissional, aos «milagres», aos «pastorinhos» e aos «segredos», como se fossem funcionários eclesiásticos de serviço no local; comentadores e «debates», antes e durante as reportagens, unilateralmente alinhados, e em coro, com o mais redutor espírito mariano, como se não houvesse, dentro e fora do campo cristão, vozes críticas e dissonantes (nem o programa, normalmente de salutar pluralismo, de Maria Elisa escapou a este unanimismo ¾ escapou, sim, como quase sempre, a TSF, louvado seja Deus...); tentativa grosseira de fabricar um consenso nacional (incluindo o recurso a sondagens risíveis) em torno do «altar da pátria»; omissão quase generalizada do óbvio incómodo: que a mobilização ficou muito aquém do «milhão» anunciado e que a revelação do «segredo» lançou na estupefacção geral dos meios teológicos ¾ tudo isto com triste destaque para a televisão do Estado regressada, no passado Sábado, à vertente mais sinistra dos tempos da propaganda.

Confesso que, apesar de esperado, me custou assistir ao espectáculo a que se prestaram os dirigentes do Estado e de quase todos os partidos parlamentares: Jorge Sampaio, rosto compungido, contricto, dizendo-se «reconfortado» com o quarto de hora de conversa que o Papa lhe concedeu, passeando-se no meio daquilo tudo qual «pássaro sem asas», como canta a Betânia; Durão Barroso que, apesar dos ares de conselheiro Acácio em dia de missa, não consegue sair da pele de ex-maoísta convertido aos mistérios de Maria; Paulo Portas, desfazendo-se em lágrimas de unção, estava no seu ambiente: dali há-de ter seguido para Vidal Pinheiro, passando de um «F» ao outro com a mesma convicção com que visita a feira de Viseu, e o dr. Carlos Carvalhas não podia faltar, ainda que só para cumprir o protocolo, muito composto na fila dos cumprimentos papais, naquela atitude que marca o PCP nestas e noutras questões: não entra, nem fica de fora. De fora ficou, e bem, a meu ver, o Bloco de Esquerda, solitariamente certo na sua atitude de condenação do envolvimento do PR e do Governo nas cerimónias fatimistas. Por vezes, a minoria tem razão e, neste caso, há três razões para ter razão.

A primeira, é que, como se confirma neste rescaldo do «13 de Maio», o chamado milagre de Fátima é uma questão muito controversa, mesmo do ponto de vista teológico (não é por acaso que ele não é dogma de fé) não só entre os cristãos, mas nos meios católicos. Este marianismo idólatra, assente na exploração dos sentimentos e emoções primárias da massa, fomentador do espectáculo absurdo e intolerável de gente, dos mais jovens aos mais idosos, arrastando-se de joelhos ou rastejando em «pistas» preparadas pelo santuário para o efeito ¾ este culto com indiscutíveis ressaibros mais de obscurantismo do que de fé, está longe de ser consensual entre os crentes e é sabido ter sido objecto de críticas e reservas pelo espírito e pela letra conciliar do Vaticano II. Que os representantes do Estado português se adiantem a caucionar uma das leituras e expressões públicas desta polémica religiosa (e logo a mais conservadora), só porque ela arregimenta grande número de fiéis, é algo que, obviamente, transcende o que lhe compete no relacionamento com a Igreja, e transcende o entendimento laico dessa relação.

Em segundo lugar, porque o «milagre» e as «mensagens» de Fátima foram sempre, historicamente, desde a sua origem, em 1917, uma arma de arremesso política e ideológica. Contra a República afonsista e a participação portuguesa na Grande Guerra, naquele ano; recuperada a partir do patriarcado do cardeal Cerejeira (1929), Fátima transforma-se, já com caução explícita da hierarquia católica portuguesa, nos anos 30, em bandeira do anti-comunismo: para consagrar Salazar e o salazarismo como expressões da «providência divina» e da «bondade de Maria»; para apoiar a «cruzada» de Franco contra a República espanhola ¾ e é neste contexto que se «revela» o «segredo» respeitante à «conversão da Rússia», nunca referido anteriormente. A Fátima e à Virgem percorrendo o país se recorrerá, como prevenção contra as ameaças dissolventes do pós-guerra, nos anos críticos para o Estado Novo de 1945 e 1946. E com especial apoio de Pio XII (o Papa que se calou sobre o holocausto e deu a fuga aos criminosos de guerra nazis), a vertente anti-comunista continua marcante na Fátima dos anos da guerra fria: a «praça branca» contra a «praça vermelha», um argumentário insistentemente utilizado pelo regime salazarista e pela sua polícia política para legitimar a perseguição e a violência contra a oposição e a resistência à ditadura. Finalmente, a Fátima que abençoava a guerra colonial e o colonialismo português. Se se trata da unidade dos portugueses e de os representar como um todo, eu pergunto se a caução dos dirigentes do Estado a uma cerimónia religiosa com esta carga política, não acentua mais os factores de divisão e de polémica do que a discreta abstenção de nela participar, o que, aliás, era imposto como decorrência do princípio constitucional de separação do Estado e das igrejas.

O problema, e esta é a terceira razão, é que a revelação, ou a proto-revelação, do «terceiro segredo» não vem senão acentuar os factores de polémica e de perplexidade anteriores. Para quem esperava uma «revelação» voltada para os sofrimentos da humanidade e para o futuro, depara-se um Papa que se auto-declara como miraculado, que faz do seu percurso o próprio milagre, num contexto de repetição de uma estafada e desactualizada retórica anti-ateísta. Como alguém escreveu, Fátima, sem «segredos» e voltada para o passado, parece deixar de Ter futuro para a esperança dos fiéis na redenção dos homens. E o PR, queira ou não, acaba por ficar pendurado nisto tudo.

Em resumo: o que se passou em Fátima confirma que o Presidente da República Jorge Sampaio não devia ter participado nas cerimónias religiosas da Cova da Iria, com ou sem beatificação dos pastorinhos. A razão política, e muito especialmente a razão de Estado, para ser lúcida, tem de Ter a coragem de remar contra a corrente quando é necessário. Lamento dizê-lo, mas foi essa coragem política que faltou ao Presidente da República no passado «13 de Maio».


(Público)



Associação República e Laicidade