"Não estamos aqui para julgar ninguém", dizia há dias, num debate televisivo, um partidário do "não" no referendo da despenalização do aborto. Mas esta frase só pode ser tomada à conta de indesculpável candura ou imperdoável cinismo.
0 referendo é justamente e somente para saber se quem faz um aborto até às dez semanas deve, ou não, ser poupado a uma condenação penal, incluindo a prisão. 0 "sim" é para despenalizar. 0 "não" é para manter a penalização. Nada mais está em causa no referendo. Não se trata de saber quem é contra e quem é a favor do aborto, quem o acha justificável ou não, moralmente condenável ou não. 0 que vai a votos é essencialmente a revogação de um artigo do Código Penal.
Aliás, ninguém pode ser a favor do aborto, a começar pelas mulheres que a ele têm de recorrer para pôr fim a uma gravidez indesejada e a acabar pelos que defendem a sua despenalização. 0 aborto é sempre um mal, sobretudo para quem o pratica, e isso basta para impedir a banalização dele. Dizer "sim" à despenalização não é incompatível com a sua condenação sob o ponto de vista religioso ou moral (ou outro). Há muitas coisas que são (ou eram) reprováveis e que não são criminalizadas, ou deixaram de o ser há muito (como o adultério, o homossexualismo, a prostituição, o alcoolismo). Do mesmo modo, os que defendem a despenalização do consumo da droga (e são cada vez mais) não passam por isso a aplaudi-lo.
0 Código Penal e a repressão penal do Estado não podem ser postos em movimento só porque uma parte da comunidade, por maior que seja, entende que uma certa conduta é censurável. A repressão penal deve servir para defender valores essenciais gerais da colectividade e deve ser sempre uma última instância. A banalização da repressão penal é um excesso inaceitável, sobretudo quando estão em causa valores não consensuais.
Ora é indesmentivel que a interrupção da gravidez nas primeiras semanas não é socialmente condenada, antes compreendida e tolerada. Praticam-se correntemente muitos abortos. Sabe-se onde e quem os pratica. Ninguém os denuncia. A policia e o Ministério Público ficam incomodados quando excepcionalmente um caso lhes chega às mãos (normalmente quando as coisas correram mal...). Os tribunais usam de excepcional complacência. 0 efeito da actual penalização legal não é portanto obter a punição desse suposto "crime". A sua consequência é somente a clandestinização do aborto, a sua prática em condições deficientes, por vezes degradantes, o risco de vida para a mulher se houver algum percalço, e a criação de um negócio subterrâneo que sacrifica sobretudo as camadas sociais mais desprovidas de meios. A penalização do aborto é um dos mais gritantes exemplos de hipocrisia pública e de discriminação social contra os mais carenciados. A despenalização é, por isso, um facto de transparência social, uma forma de salvaguardar a vida e a saúde das mulheres, um instrumento de igualdade social.
É certo que a Igreja Católica sempre procurou armar-se do braço penal do Estado para reprimir aquilo que ela entendeu condenável ao longo dos tempos. Assim sucedeu com as heresias ou a "bruxaria", a diferença religiosa, o livre pensa- mento, as práticas sexuais heterodoxas. 0 espirito da Inquisição ameaça sempre ressurgir nestas ocasiões.
Simplesmente, estamos num Estado laico, onde nenhuma confissão religiosa pode arrogar-se o direito de ditar que comportamentos podem ou não ser criminalmente punidos. Essa é uma tarefa exclusiva do Estado. De resto, quem, como a Igreja Católica, continua a diabolizar a educação sexual e a condenar desapiedadamente o uso de todos os métodos contraceptivos, a começar pelo inocente preservativo, não pode arrogar-se a mínima autoridade para exigir do Estado a repressão penal daquelas a que a ignorância e a impreparação condenam a gravidezes indesejadas.
É lícito exigir mais contenção na extremista campanha do "não". Mesmo descontando o patético episódio da santa de Oleiros que chorava copiosas lágrimas de sangue de galinha, por piedosa intercessão de um frade vigarista e para terrena escarmentação da confiança dos crentes mais bisonhos, não deixa de inquietar a incontinência de alguns ministros da Igreja no recurso ao anátema e a intimidação divina. Ainda que não houvesse a lei a interditar o uso da autoridade religiosa para determinar ou coagir o sentido do voto nas eleições ou nos referendos, devia haver os limites do decoro e do bom senso. 0 mesmo se diga da pedestre e indigna mistificação que consiste em apresentar como argumento contra a despenalização um "boneco" que representa um feto de mais de doze semanas como se fosse um embrião de dez semanas.
Na campanha do referendo da despenalização do aborto não pode valer tudo. E se a palavra tolerância pouco ou nada diz aos partidários do "não" – apostados em impor a todos os demais, por via penal, os seus próprios padrões de conduta (reais ou fingidos) –, ao menos que prevaleça um mínimo de decência e de respeito pela inteligência e sensibilidade dos cidadãos que vão ser chamados a votar.
(Público)