Não há dúvida que se impunha encarar - o que pela primeira vez se fazia depois do «25 de Abril», com 26 anos de inexplicável atraso... - o problema das graves discriminações de estatuto jurídico e financeiro entre a Igreja católica e as demais confissões religiosas, o que claramente afectava a situação da liberdade religiosa em Portugal. A isso tentou responder a chamada «lei Vera Jardim» que ontem deve ter sido acabada de votar na especialidade na competente comissão parlamentar.
A lei, da iniciativa do antigo Ministro da Justiça do Governo PS, introduz, em alguns aspectos relevantes, melhorias que seria insensato não reconhecer: garante-se aos crentes das confissões não católicas o direito ao nome, à validade do seu casamento religioso, à assistência religiosa hospitalar e prisional e aos feriados tradicionais. Não obstante, o documento legal que vai regressar ao plenário da AR para a votação final, é, no seu conjunto, uma oportunidade ingloriamente perdida para se salvaguardar a laicidade do Estado e a verdadeira igualdade de tratamento legal das confissões religiosas face à República. Chamemos as coisas pelos seus nomes: é uma derrota imposta ao princípio democrático da laicidade pela acção conjunta da hierarquia da Igreja Católica e do PS.
De um ponto de vista da filosofia geral do problema, havia dois caminhos para voltar a abordar a questão das relações do Estado e da Igreja católica no nosso país. Um, era o de igualizar juridicamente todas as confissões religiosas perante a lei e o Estado na base do princípio da separação entre este e aquelas. De onde decorreria, por exemplo, a ausência de um financiamento público permanente às igrejas ou de ensino religioso nas escolas públicas. Não me parece que possa haver outra via para assegurar a igualdade de tratamento e, portanto, a verdadeira liberdade religiosa. O seu fundamento repousa no carácter laico e neutro do Estado em matéria confessional, na sua não ingerência nas actividades religiosas, na separação clara destas das funções que o Estado é chamado a exercer. Salvo em duas situações: quando as práticas religiosas ofendam a lei ou o interesse público democraticamente definidos, ou quando o interesse público de certas actividades eclesiais (no campo da assistência, do ensino, da defesa do património, etc.) aconselhem o apoio do Estado (financeiro ou outro) a bem da colectividade.
Não se trata de o Estado se «desinteressar do fenómeno religioso» e da importância que certos sectores lhe atribuem nas «sociedades modernas». À busca de argumentos «sociológicos», é o que repete, sem grande rasgo, certo neoconfessionalismo ou certo neoclericalismo (no sentido rigoroso do termo empregue pelo pastor Dimas de Almeida), estranhamente interessado em fazer do Estado, do dinheiro dos contribuintes e das escolas públicas instrumentos centrais da viabilização ou da expansão das suas actividades confessionais. Trata-se precisamente do contrário: de permitir às igrejas o livre exercício do seu munus sem qualquer dependência financeira ou administrativa do Estado. Uma igreja não é um clube de futebol, uma companhia de teatro ou uma exploração leiteira que podem ou devem ser ajudadas financeiramente pelo Estado a subsistir - como, estupefacto, tenho ouvido a certos próceres da hierarquia católica. Uma confissão religiosa tem a ver com o pastoreio das almas, com as convicções profundas de cada um, com as relações inexoravelmente privadas dos crentes com o seu deus, com a liberdade de espalhar a sua noção de verdade e do bem, com a livre escolha, com a adesão espiritual voluntária, com a fé, o sacrifício e a determinação de a difundir, isto é, tem a ver com a liberdade no sentido mais denso do termo. Que mistério levará uma confissão religiosa a querer socorrer-se do Estado para atingir aquilo que deve ser, por definição, a obra do espírito e da revelação? Como entender que o dinheiro do Estado, o ensino do Estado, a intervenção do Estado entrem a fazer aquilo que haveria, por natureza, de pertencer à iniciativa, à solidariedade, à autonomia ou às convicções dos fiéis?
Nem se aceita que o Estado (e a escola pública) laico e religiosamente neutro seja uma espécie de Estado «amoral» que abandonaria os cidadãos (ou os estudantes) às piores perversões do mundo moderno. Primeiro, porque para os que o desejam, as igrejas existem e actuam com inteira liberdade, mesmo quando não são impostas à escola pública à custa dos contribuintes, sejam crentes ou não. Segundo (e que estranho é ver tantos socialistas esquecidos disto...), porque a República é portadora de uma ética, de valores republicanos de solidariedade, de interesse público, de justiça social, de liberdade, de respeito mútuo, de tolerância que devem informar a escola e os programas escolares porque são os fundamentos da ordem constitucional vigente, independentemente e para além das opções religiosas de cada um.
O outro caminho para abordar este assunto foi o que o PS seguiu: aceitando o argumento de que a religião maioritária deve ter um tratamento fáctico quase oficialista, o PS manteve intocáveis os privilégios herdados do Estado Novo pela Igreja católica e procurou compensar as demais confissões religiosas fazendo-as participar, mesmo assim, parcial e desigualmente, em alguns deles. Deve dizer-se, aliás, que esta lei, na prática, se não aplica à Igreja católica, escudada que continua a estar no privilégio absoluto da Concordata de 1940. Se partes desse texto cairam em desuso e outras houve declaradas inconstitucionais, o certo é que o regime concordatário continua a assegurar à Igreja benesses rigorosamente singulares (designadamente esse extraordinário «exército paralelo» de capelães militares que continua a existir nas Forças Armadas sob o comando de um Bispo equiparado a general!) que, mesmo na presente lei, não são extensíveis às demais confissões.
Às confissões minoritárias resta o temporal consolo de amealhar as parcelas do IRS que os crentes lhes destinarem, as isenções de IVA ou ter o ensino das suas religiões nas escolas públicas, além de outros direitos de elementar justiça já antes referidos. Mas nem todas gozam deste acesso à mesa do orçamento: o legislador permite-se excluir dos benefícios legalmente previstos as confissões não radicadas em Portugal há mais de 30 anos ou no estrangeiro há mais de 60. O Estado coloca-se na posição de definir quais são, ao menos para os efeitos da lei, as «verdadeiras igrejas». E com um resultado prático que, no mínimo, está longe de ser prejudicial à posição da Igreja católica nos meios urbanos e suburbanos.
O privilégio voltou a vencer, sustentado na complacência de um PS totalmente incapaz de se bater por princípios. Comparável com isso, só o tonitruante silêncio do PCP. Agora com renovados argumentos, o combate pela laicidade do Estado continua.
(Público)