O anteprojecto de lei sobre
a liberdade religiosa apresentado pelo Ministro Vera Jardim propõe-se, quase 23
anos após o "25 de Abril", concluir aquilo que pareceria dever ter sido uma das
obras prioritárias do Estado republicano, laico e democrático: acabar com os
resquícios de tratamento privilegiado da Igreja Católica por parte do Estado e
estabelecer, com base no princípio da separação, uma relação de plena igualdade
de todas as confissões religiosas perante a lei e a Administração. Sem separação
absoluta do Estado e das igrejas, sem clara consagração legal do carácter laico
do Estado e sem o seu correlativo que é a plena igualdade de condições para a
criação e o exercício de todos os credos religiosos no plano jurídico, não há
liberdade religiosa. E sem liberdade religiosa não há verdadeira
democracia.
Portanto, mais vale tarde do que nunca: após as medidas parcelares de
revisão da Concordata, em 1975, o presente anteprojecto vem continuar aquilo
que, a meu ver, foi o principal legado da I República: a laicização do Estado,
não obstante os excessos e desvios que acompanharam, na teoria e na prática, a
Lei de Separação de Abril de 1911.
No entanto, seria enganoso ver no aparente consenso que cercou o anúncio
do anteprojecto - designadamente por parte de alguns dignatários da Igreja
Católica, a entidade potencialmente mais prejudicada com ele, dado o fim
eventual dos seus privilégios remanescentes a vários níveis - um curso fácil
para a respectiva aprovação, pelo menos sem possíveis deformações graves fruto
de um qualquer novo acordo rectificativo da parte do "Bloco
Central"...
Dois problemas merecem atenção particular.
Primeiro, o da "separação do trigo do joio", para retomar a expressão do
Bispo de Bragança, logo glosada pelo Primeiro Ministro. Isto é, para reduzir a
coisa aos seus verdadeiros termos, a questão de separar as "boas" das "más"
religiões, as "verdadeiramente religiosas" das "falsas", as "religiões"
propriamente ditas das "seitas". Não me parece de forma alguma aceitável que o
Estado possa vir a promover qualquer tipo de autorização prévia para a
legalização das associações religiosas baseado em critérios de fiabilidade,
directa ou indirectamente ligados a princípios de "legitimidade" ou de
"autenticidade" religiosa. Esse é um problema dos crentes, não do Estado ou de
qualquer "Comissão para a Liberdade Religiosa". A qual, se com essas funções,
acabaria sempre por descambar num lobby de selecção prévia ao serviço das
religiões mais influentes, neste caso da própria Igreja Católica.
Às associações religiosas deve aplicar-se, creio eu - e é isso que julgo
ver consagrado no anteprojecto - um estatuto semelhante ao de qualquer
associação cultural: liberdade de constituição, devendo elas, em especial neste
domínio, ser alvo de criteriosa fiscalização pública que ateste da conformidade
da respectiva acção com a lei. A legalidade da actuação compete ao Estado
fiscalizá-la a posteriori; a
credibilidade do culto é assunto privado dos cidadãos crentes que só a eles cabe
ajuizar.
O segundo problema tem sido apresentado como o da igualdade de tratamento
dos vários cultos por parte do Estado, designadamente no domínio fiscal (a
Igreja Católica goza, solitariamente, desde a Concordata de 1940, do privilégio
de isenção fiscal) e do financiamento público.
Salvo melhor opinião, parece-me que a questão está mal posta. Em
princípio, o Estado laico não tem que interferir na actividade religiosa a
nenhum título - designadamente isentando de impostos ou financiando -, salvo
para fazer cumprir a lei. Não se compreende, à luz dos princípios da separação,
que a comunidade, através do Orçamento de Estado, continue a subsidiar a Igreja
Católica ou que alargue esse financiamento a todas as demais (e com que
critérios de distribuição?), excepto em situações particulares onde de tais
actividades (designadamente no campo assistencial) resultem indiscutíveis
benefícios para a vida das populações. Só em tais casos se justificaria o apoio
público, criteriosamente avaliado e concedido para cada um
deles.
O mesmo se diga quanto aos privilégios de que ainda goza a Igreja
Católica no tocante ao ensino da sua religião nas escolas. Não se trata de o
ensino público os alargar aos demais credos: trata-se de reconhecer que a
difusão das crenças religiosas é um assunto privado dos respectivos crentes, a
ser realizado nos seus espaços privativos e com os seus meios próprios, fora do
espaço e do domínio curricular e docente do ensino público e sem qualquer apoio
(logístico ou financeiro) da parte dele.
À luz de tais princípios, o problema não será o de "democratizar" e
estender os actuais privilégios da Igreja Católica, mas sim o de extingui-los
genericamente, cabendo ao Estado apoiar pontualmente aquelas actividades de
qualquer confissão religiosa que se revistam de indiscutível interesse e
benefício público.
Nem se argumente, como já adiantou o Bispo de Bragança, que o privilégio
da isenção fiscal ou de certos financiamentos públicos (por exemplo, para a
construção de templos católicos) se deve manter para a sua Igreja a título de
ressarcimento das expropriações decretadas pelas leis de 1834 e de 1911. A
questão é duplamente falaciosa: por um lado, porque caberia perguntar que
indemnização era devida a uma Igreja que, antes e depois de 1834, até 1911, no
quadro do sistema regalista, do
Estado confessional então vigente, viveu longamente à custa do erário público e
do orçamento dos cultos; por outro, porque após uma primeira devolução dos bens
diocesanos durante o consulado sidonista, em 1918, a Concordata de 1940 regulou,
por mútuo consenso, as restituições a que a Igreja tinha
direito.
Os privilégios então concedidos de jure e de facto (a isenção fiscal, o
reconhecimento da personalidade jurídica, o papel no ensino, etc.) foram-no não
a título de indemnizações, mas no quadro de uma cooperação político-ideológica
entre o Estado Novo e a Igreja Católica, em que esta chamava a si funções
complementares de enquadramento e legitimação ideológica do regime salazarista.
E, convenhamos, esse tempo já passou.
(Público)