por Luis M. Mateus
Na sua última crónica (“Não Invocar Deus”) e a propósito do filme “A Paixão” (Mel Gibson), Miguel Poiares Maduro veio suscitar a questão do papel de Deus e da religião no espaço público e manifestar a sua discordância face àqueles que defendem que “um Estado laico tem de ser suportado por um espaço público laico”, que “a esfera religiosa deve ser estritamente privada” e que “argumentos de origem religiosa devem ser excluídos do domínio público”.
Sem qualquer dificuldade, acompanho a generalidade das afirmações que M.P. Maduro produz no seu artigo relativamente à legitimidade de qualquer seguidor de qualquer religião poder (ou até dever) intervir no «espaço público» – ou seja, no espaço da vida social, cultural, política, etc., i.e., no espaço amplo da vida colectiva –, ainda que intimamente movido por causas de fé ou quando sustentado por escoras de crença, desde que cumpra escrupulosamente o princípio de aí se limitar a agir “com a autoridade dos seus argumentos e nunca com argumentos de autoridade” (parafraseando a fórmula feliz utilizada no texto em causa), ou seja, garantindo que o seu discurso seja independente da fé, por forma a ter uma validade universal e, desse modo, a visar «convencer» e não a «converter».
Essa (boa) prática social – de matriz claramente humanista e racionalista, mas não religiosa ou confessional, lembra-se – constitui precisamente a aplicação dos princípios do «laicismo» («laos» = a sociedade no seu todo) ao «espaço público» e não pode sequer ficar confinada à orientação do comportamento de um determinado grupo social (por exemplo: dos cultores desta ou daquela religião), devendo antes ser extensiva à conduta de qualquer indivíduo que, fidelizado a um qualquer credo, seguidor de uma qualquer confissão, adepto de uma qualquer corrente de opinião e/ou membro de uma qualquer organização, seja ela religiosa, filosófica, ideológica, política, etc., pretenda intervir no espaço público, no espaço que se pretende pertença de todos.
Apesar de tudo o que frequentemente se afirma em contrário relativamente ao princípio do «laicismo», apesar da muita confusão conceptual (deliberadamente) criada em torno da norma de «laicidade» e, designadamente através da sua adjectivação («laicidade aberta», «laicidade tolerante», «laicidade moderna», «laicidade plural», etc.), a verdade é que, quer na sua dimensão ética, enquanto modo de (auto) regular o comportamento individual no trato com o/s outro/s, quer na sua dimensão política, enquanto modo (ou norma) de organização da vida cívica, institucional e social, não pode existir outra «laicidade» que não seja a que visa precisamente assegurar/garantir uma efectiva possibilidade universal e equitativa de acesso, uso e fruição do «espaço público» e que, concomitantemente, visa evitar/impedir que esse «espaço de todos», possa ser de alguma forma apropriado e controlado por um qualquer grupo social de ambição dominante, tenha ele fundamento religioso, filosófico, ideológico ou outro.
Em termos jurídicos, a «laicidade» pode apresentar-se como uma norma de «direito público» (uma norma «autoritária», de fundamento «racionalista», portanto) que o Estado adopta e através da qual remete para o âmbito do «direito privado» («individualista» e «contratualista») a regulação do livre exercício de qualquer opção religiosa, filosófica, ideológica, etc. dos membros da sociedade a que respeita, bem como das suas igualmente livres expressões colectivas (associativas ou outras). Nesse quadro formal, o Estado assume uma absoluta incompetência em matérias que relevam da crença e da convicção dos indivíduos e limita-se a assegurar, a todos e em regime de igualdade, o acesso, uso e fruição do espaço (físico, social, cultural, político, etc.) que entre si partilham, permitindo assim que esse «espaço público» se possa de facto caracterizar pela pluralidade decorrente das manifestações efectivamente livres da diversidade religiosa, filosófica, ideológica, etc.
Assim posicionado, sou levado a considerar – em aparente contradição com a posição de Miguel Maduro, mas será mesmo assim? – que “a esfera religiosa deve [de facto] ser estritamente privada”, que “um Estado laico tem de ser [efectivamente] suportado por um espaço público laico” e, sobretudo, que um Estado laico se deve efectivamente constituir como garante da laicidade do espaço público.
Enviado para o «Diario
de Notícias» a 11/5/2004 e não publicado.