"RELIGIÃO OFICIAL"



por

Vital Moreira



Contaram-me que na última campanha eleitoral, numa sessão interpartidária realizada em Coimbra, julgo que sobre a questão da despenalização do aborto, um dos intervenientes - pessoa qualificada de um dos partidos que veio a integrar a actual coligação governante -, para contestar a ideia de que o Estado deveria resolver este assunto independentemente de considerações religiosas, exclamou, para estupefacção dos presentes: "Que eu saiba, Portugal ainda não é um Estado laico!"

Ocorreu-me este hilariante episódio, quando no outro dia, em pleno Parlamento, uma secretária de Estado do actual Governo, ainda por cima da Educação, se referiu à Igreja Católica como "igreja oficial", numa "gaffe" a que a distracção ou o pudor da imprensa não atribuiu grande importância. A meu ver, tem-na, e de que maneira!

Na verdade, não se trata de um lapso, nem sequer de tomar os desejos por realidades, mas sim de uma cândida interpretação da realidade de facto no nosso país. Com efeito, só num Estado quase-confessional, com uma religião para-oficial, é que se poderiam passar as coisas que se verificam em Portugal. Um observador estrangeiro desprevenido, que não conhecesse a Constituição do país, dificilmente poderia deixar de colher a mesmo impressão.

Um Estado em que nas cerimónia oficiais o representante da Igreja tem sempre lugar de destaque, em que as inaugurações oficiais de obras e outros eventos incluem uma bênção religiosa, em que os titulares de cargos públicos assistem nessa qualidade a cerimónias religiosas, em que organismos oficiais mandam celebrar missas, em que o Estado, as regiões autónomas e os municípios sustentam largamente a edificação e manutenção de igrejas e outras instalações religiosas, em que o Estado assume como seu o encargo do ensino da religião católica nas escolas públicas, bem como a missão de formação pedagógica dos respectivos professores, em que a Universidade Católica beneficia das prerrogativas oficiais das universidades públicas (mas sem estar sujeita aos correspondentes deveres e obrigações), em que os organismos da Igreja Católica gozam automaticamente de personalidade jurídica, independentemente de cumprirem os requisitos e procedimentos dos correspondentes organismos laicos -, um Estado assim não pode ser de facto um Estado laico. Tudo isso e muito mais isso só é compreensível no quadro de um Estado confessional e de uma igreja oficial.

Mas que essa seja a convicção expressa por um membro do Governo, é demais! Existe um dever de conhecimento constitucional mínimo por parte dos titulares de cargos públicos, ainda por cima no Governo. Mesmo sem obrigatoriedade de leitura prévia da Constituição da República, não ficaria mal um teste de formação cívica elementar em relação aos candidatos ao Governo. A ignorância boçal a respeito de traços básicos do nosso sistema democrático deveria ser motivo de incompatibilidade liminar absoluta.

No fundo, porém, esta ignorância alvar não é mais do que a consequência natural da nossa generalizada incultura cívica. Quanto as escolas públicas ensinam religião, substituindo-se às igrejas, em vez de ministrar formação cívica sobre os fundamentos constitucionais da colectividade política, quando os poderes públicos actuam como se vivêssemos num Estado quase-confessional, quando a Igreja se comporta como se fosse realmente parte do poder, o resultado só pode ser, na melhor das hipóteses, a complacência com as mais flagrantes violações do princípio da separação entre o Estado e as igrejas e do princípio da igualdade destas, e, na pior das hipóteses, a justificação para pôr as leis de acordo com os factos, em vez do contrário.

Esta situação é especialmente preocupante numa altura em que, no segredo dos deuses (e temo bem que isto não seja simples metáfora), se desenvolvem as negociações para a revisão da Concordata de 1940 entre o Vaticano e o Estado Português. É de temer, à partida, que esse instrumento continue a regular bilateralmente, de forma singular para a Igreja Católica, matérias que deveriam constar de lei geral da República, com aplicabilidade universal, como o ensino e aspectos relevantes da liberdade religiosa. Pior do que isso, não está excluído que a nova Concordata, a pretexto de eliminar alguns pontos arcaicos do acordo de há seis décadas, venha aumentar ainda mais os privilégios e prerrogativas especiais da Igreja Católica.

O segredo que rodeia as negociações é intrigante. Sabe-se qual é a "agenda" do Vaticano e do episcopado português para as negociações: manter e se possível reforçar as suas posições face ao Estado (e, em particular, tentar "legalizar" o actual estatuto da Universidade Católica, que além de inconstitucional nem sequer tem base concordatária). Ao invés, não se tem a mínima ideia das posições do Governo e das orientações dos negociadores do Estado, se é que algumas foram dadas. Não se sabe se o primeiro-ministro acompanha politicamente as negociações, nem se o Presidente da República se mantém informado, como é seu direito.

É, pois, de temer que a futura Concordata seja mais o produto de um "diktat" da Igreja do que um verdadeiro acordo bilateral, de Estado a Estado. Quando da recente discussão da lei da liberdade religiosa - de que a Igreja Católica ficou isenta, a pretexto da Concordata -, deu bem para ver que nesta matéria o Estado abdicou da sua soberania e se conformou a um papel de espécie de protectorado do Vaticano. Tudo se encaminha, portanto, para que o acordo apareça pronto, como facto consumado, para inibir qualquer veleidade em matéria de subsequente aprovação parlamentar, ratificação presidencial e fiscalização preventiva da constitucionalidade.

A poucos anos da comemoração do centenário da República - que inseriu no nosso património constitucional a liberdade religiosa, o casamento e o registo civil, o ensino público laico e o princípio da separação entre a Igreja e o Estado -, corremos o risco de que essa herança constitucional do actual regime democrático venha a sofrer um golpe ainda mais profundo do que o que contra ela foi desferido em 1940, em plena II Guerra Mundial, pelas generosas concessões que Salazar prodigalizou, em homenagem à solidariedade política da Igreja lusitana e do Vaticano com a ditadura. Neste ponto, o Estado Novo redivivo triunfa, de novo, sobre a República?

Adenda: Entretanto em Timor o bispo Ximenes Belo resolveu "borrar a escrita" ao pedir a expulsão de um jornalista português que teceu considerações sobre o poder da Igreja Católica em Timor, que não agradaram ao prelado. Com isso o bispo não manchou apenas o seu currículo de prémio Nobel (será que o regulamento do prémio não prevê a retirada do galardão, por indignidade?), também lançou dúvidas sobre a consistência das liberdades públicas no novo país, atento o enorme poder que a Igreja aí tem. Se isso ocorreu com um jornalista estrangeiro, que receio não hão-de ter doravante os jornalistas timorenses em criticar a todo-poderosa instituição. Seria bom que as novas autoridades democráticas de Timor não deixassem margem para o risco de uma teocracia larvar...


(Público)



Associação República e Laicidade