Senhor Director,
Vários jornalistas católicos do D.N., que explicitam a sua fé, têm defendido a obsessão papal de tentar incluir uma referência ao papel do cristianismo na futura constituição europeia. Sendo evidente esse papel só o proselitismo pretende sublinhá-lo.
O laicismo, tal como a democracia, não é uma imposição, é uma exigência ética para não tratar de forma diferente as várias crenças. O laicismo não impõe o ateísmo ou o agnosticismo, não combate as religiões, apenas impede as tentações totalitárias destas. É por isso que os mesmos que pretendem impedir o uso do véu islâmico se opõem a qualquer referência religiosa nas Constituições, para evitar provocações.
Recordo que a Constituição Política de 1933, de cariz autoritário, reconhecia que Portugal era um país tradicionalmente católico. A actual Constituição é omissa a esse respeito e, no entanto, há uma liberdade religiosa que a ditadura não consentia. Bastaria este exemplo para nos fazer reflectir.
As teocracias são hoje um epifenómeno circunscrito aos árabes não por vontade das igrejas não muçulmanas mas por exigência das sociedades.
Aos que pensam que a igreja católica renunciou ao proselitismo lembro os casos recentes da Polónia e de Cabo Verde. Em 1971 a Irmã Lúcia ainda escreveu a Marcelo Caetano a pedir-lhe para que a lei do divórcio fosse abolida do Código Civil. Alguém acredita que foi por inspiração divina? A Sharia romana deixou de estar vertida na concordata, pelo menos no que diz respeito ao divórcio, graças a Francisco Salgado Zenha e contra a vontade do Vaticano.
Alfredo Carlos Barroco Esperança
Coimbra, 9 de Junho de 2003
Nota: esta carta de leitor foi publicada no «Diario de Notícias» a 23 de Junho de 2003 com o corte assinalado a itálico.