Mas que surpresa tão desagradável e que forte decepção. O artigo publicado a 5 de Janeiro por Mário Pinto leva-me a pensar que o PÚBLICO poderia ser considerado como o órgão oficial do Estado do Vaticano em Portugal. Que Mário Pinto pregue em prol da sua religião, nada de mais natural: é um dos seus direitos elementares. Mas que o faça evocando factos e exemplos falsos, que nada têm a ver com o actual debate democrático em França sobre o projecto da nova lei regendo a laicidade, isso não posso aceitar.
A liberdade de culto e prática religiosos, no âmbito privado, está inscrita na Constituição francesa e é aqui, nesta sociedade livre e tolerante, algo tão corrente, tão habitual, tão aceite por todos os cidadãos, que nem sequer se sente a necessidade de pôr em relevo tal liberdade elementar. Vai de si. Estou certo que se um dia, por pura hipótese não provável, houvesse um governo com um projecto limitando a liberdade de consciência - ser livre de ser ou não ser crente, de escolher a sua religião - mesmo os democratas agnósticos e ateus se oporiam a esse projecto, em nome justamente da liberdade individual de consciência.
Estas disposições legais são guiadas pelos princípios básicos da Grande Revolução Francesa de 1789: Liberdade de culto e de não culto e de livre opinião política; Igualdade de todos os cidadãos (e residentes não cidadãos) perante a lei; e Fraternidade de todos para todos no seio da Nação.
O projecto da nova lei francesa ainda nem sequer foi dado a público e consequentemente ainda não foi votado pelo Parlamento. Aqui em França não é "o Estado que define" mas são sim os representantes da Nação que definem o teor das leis por meio de seus votos no Parlamento. E é o Estado que impõe o respeito dessas leis. Princípio elementar que o autor parece ignorar...
Aqui não há "um verdadeiro (nem falso) monopólio das escolas públicas". Há sim, em paralelo às escolas públicas, em nome da liberdade pessoal e da liberdade de consciência, escolas privadas de teor confessional - católicas, protestantes, ortodoxas, hebraicas,muçulmanas - onde cada um ou cada uma pode seguir os programas dos ensinos oficiais num quadro adequado à sua própria consciência ou à da sua família. É uma escolha que só diz respeito à intimidade pessoal ou familiar de cada aluno. Mas mesmo neste caso, a tolerância deste Estado laico é tão elevada que a Nação - ou seja todos os cidadãos, crentes e não crentes - participa, sob certas condições previstas na lei, no financiamento parcial destes tipos de ensino.
A lei actual que rege as relações entre o Estado e as Igrejas, define a separação do espaço estatal e do domínio da religião e data de 1905. Como pode Mário Pinto evocar os exércitos de Napoleão "exportadores para toda a Europa da cópia de uma democracia laicista, autoritária e jacobina"?
Em 1905 a Igreja católica francesa opôs-se fortemente à lei votada no Parlamento. Mas depois, com o andar dos tempos, com a evolução da sociedade democrática, adaptou-se e não se queixa mais de ter perdido um certo monopólio.
A lei actual (assim como certamente a futura) não proíbe "o uso de lenços na cabeça das meninas" nem o porte de outros sinais de distinção religiosa por homens ou mulheres, menores ou maiores. O que diz a letra e o espírito da lei é que a religião é algo do domínio privado, da intimidade pessoal ou familiar, onde a República nada tem a fazer nem a dizer. Mas a partir do momento em que o cidadão entra no domínio público (propriedade colectiva da Nação) - por exemplo estabelecimentos de ensino público, hospitais, tribunais, quartéis, etc - aí há uma neutralidade a respeitar porque todas as religiões têm os mesmos direitos perante o Estado, e este não pode, segundo a lei, conceder privilégios a nenhuma delas. O proselitismo, assim como os sinais aparentes (ostensivos) de distintivos religiosos, não são permitidos. O espaço republicano é neutro, justamente para a defesa da intimidade de cada crente (de qualquer religião) e do não crente. É o respeito da Nação para com todas as religiões.
É justamente esta neutralidade "imposta" pela lei, esta igualdade entre cada culto, cada crença, que permite pôr termo às guerras de religião. Os infelizes exemplos recentes ou actuais provam que as guerras de religião ainda não se extinguiram: recentes guerras étnico-religiosas na ex-Jugoslávia, actuais guerrilhas protestantes e católicas na Irlandado Norte, actos terroristas no mundo muçulmano...
Mas fora do domínio da autoridade do Estado - ou seja em casa, na rua, nos lugares comuns públicos - cada um age como entende nas suas formas de exprimir as suas convicções religiosas pessoais ou colectivas, desde que não perturbe a ordem pública. Com toda a liberdade, dentro do quadro da lei comum, sem agressividade, sem proselitismo, sem objectivo de dominação...
Na segunda-feira 5 de Janeiro um anónimo telefonou para a Agência France-Presse no Cairo, declarando que a sua organização islâmica tinha provocado a queda do avião da companhia egípcia Flash Airlines, em Charm el-Cheikh, Egipto, com 133 turistas franceses a bordo. Ele acrescentou que "se a França continuasse com a intenção de proibir o porte do lenço islâmico (na cabeça das mulheres) os aviões de Air France seriam no futuro alvo de atentados". Apesar de serem de proporção muito diferente, esta atitude terrorista e fanática de vínculo ultra-religioso e criminoso, tem a mesma raiz inaceitável do artigo: fundamentalismo, fanatismo e intolerância religiosa. Tudo isto me leva a crer que há algo de muito torto no mundo das religiões.
Vive la France!
Cidadão com a dupla nacionalidade, francesa e portuguesa
(in Público-14/1/2004)