em 24-OUT-1998
Junta Militar respondeu ao Presidente com um "cessar-fogo temporário"
"Nino" tem 48 horas de ar
Pedro Rosa Mendes
A Junta fez uma "simpatia": deu a "Nino" 48 horas de cessar-fogo. Dois dias para o Presidente explicar a sua "agenda negocial". Mas já ninguém duvida da ofensiva final. Com os combates, o desastre humanitário voltou à Guiné, onde cerca de 100 mil deslocados estão sem assistência alimentar.
O cessar-fogo unilateral do Presidente João Bernardo Vieira recebeu ontem resposta favorável da Junta Militar, que ordenou ao fim do dia o baixar das armas nas suas fileiras. "Nino" tem agora 48 horas para esclarecer os revoltosos sobre as suas propostas e intenções ou sujeitar-se à ofensiva final que parece inevitável. Os combates dos últimos dias provocaram, entretanto, uma nova crise humanitária, com "80 a 100 mil pessoas" refugiadas, sem alimento e debaixo de chuva, na zona de Prábis.
Dois dias depois de "Nino" Vieira ter decretado uma trégua unilateral, a Junta Militar divulgou ontem um comunicado em que "decide e ordena a todos os seus efectivos o respeito imediato pelo cessar-fogo temporário". A decisão foi tomada "considerando os apelos da comunidade internacional, da União Europeia em particular e da sociedade civil guineense" .
A decisão foi tomada pelo Conselho Supremo da Junta "no intuito ainda de oferecer ao senhor Presidente condições de clarificar 1) qual é a posição sobre a questão política fundamental da presença de tropas estrangeiras agressoras bem como do iminente reforço do efectivo dessas tropas", noticiado ontem na imprensa portuguesa. "E 2) a proposta de agenda negocial" de "Nino", que esta semana se mostrou disponível para um encontro com o brigadeiro Ansumane Mané.
A Junta "gostaria" de obter a "clarificação" em 48 horas, um prazo que, para o embaixador português em Bissau, é apenas a medida do adiamento do avanço rebelde. "A ofensiva final é algo que se tornou óbvio e a Junta apenas admitiu em retardá-la", declarou Francisco Henriques da Silva ao PÚBLICO. Por isso mesmo, o diplomata salienta que o cessar-fogo temporário foi "uma simpatia" da Junta e "uma pequena vitória" de Portugal, França e Suécia, cujos representantes se encontraram anteontem com o brigadeiro Mané. "Se não conseguirmos salvar a paz, pelo menos tentámos".
A resposta aos apelos de contenção foi trazida ontem, em mão, por dois portugueses - um sargento e um agente do Grupo de Operações Especiais - que atravessaram a linha da frente "debaixo de fogo" para a ir buscar. O comunicado foi, depois, entregue à Presidência.
Francisco Henriques da Silva admitiu que consultou Lisboa sobre "o que fazer se o Presidente vier pedir asilo" à embaixada, "mas apenas de forma abstracta" porque "não há planos" concretos. Quer isso dizer que o asilo não será negado, perante a alternativa de deixar "Nino" entregue à Junta? "Lisboa não respondeu dessa maneira".
A existência de planos de Lisboa e Paris para o exílio de "Nino" foi ontem avançada pelo semanário "O Independente". Uma fonte próxima de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, não desmentiu a notícia e, dado que a diplomacia portuguesa "está muito parca em produção de declarações" nesta matéria, adiantou e repetiu apenas que "há um acompanhamento muito directo e muito intenso da Guiné pelo Governo" português. José Lello, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, admitiu uma "intermediação" e adiantou que Portugal "pensa em todas as hipóteses".
O regresso de combates de grande violência a Bissau, desde segunda-feira, e os confrontos no interior do país provocaram uma nova onda de deslocados e uma crise humanitária. Em Prábis, segundo o embaixador português, "encontram-se de 80 a 100 mil pessoas", o que corresponde à maior concentração desde o início do conflito - na altura mais crítica da guerra, em meados de Julho, estavam 20 mil pessoas na localidade.
Desespero em Bissau
Os deslocados estão entalados entre as linhas da Junta, que já controla o município, e as forças governamentais. Não é possível sair para nenhum lado, nem para o arquipélago dos Bijagós, porque deixou de haver canoas. Ontem, os deslocados de Prábis receberam 20 toneladas de alimentos: contas feitas, um quilo de comida para quatro pessoas, o que dá para um dia. "Não há mais para distribuir".
Do lado contrário, na periferia Leste de Bissau, os padres italianos da Missão de Antula estão a prestar assistência a nove mil deslocados (seis mil no Centro Regional de Taquir e três mil no Centro Diocesano de Espiritualidade de Andame).
"Oferecemos água porque não temos alimentos. E estamos a distribuir um resto de medicamentos que a Cáritas tinha em Bafatá e que, depois da conquista da cidade [pela Junta], um padre trouxe para aqui", informou ao PÚBLICO um dos missionários. "Desde domingo, já houve aqui doze partos por causa das corridas, do espanto das bombas, do pânico. É horrível. Hoje evacuámos uma mulher que não deve sobreviver".
Em Bissau, os que ficaram foram tomados pelo desespero. O porto recebe gente que não vai ter barco porque não há condições de segurança para uma embarcação atracar sob os obuses; a rua da embaixada de Portugal encheu-se com centenas de guineenses que tentam saltar o muro, conseguir entrar numa qualquer lista, encontrar um refúgio (ilusório) dos morteiros - estão a dormir nos passeios e nas valetas.
Quase ninguém se movimenta dentro de Bissau e, por exemplo, o bispo está retido desde meio da semana na baixa da cidade, na casa dos padres portugueses, o que provavelmente o salvou porque a sua residência, na Cúria Diocesana, na zona do hotel Hotti/Sheraton, foi ontem de manhã destruída por uma granada. Não houve vítimas. Não muito longe, na paróquia de Fátima, o padre Dionísio tem mil desalojados a viver dentro da igreja, com todo o tipo de carências "porque na cidade não há nada para comprar", soube também o PÚBLICO junto dos missionários italianos.
Exceptuando Tite, a Sul de Bissau, há um controlo quase completo da Junta Militar no interior do país. Confirmada está também a existência de estradas minadas: há três dias, um camião cheio de passageiros que iam ao mercado accionou uma mina no alcatrão, entre Bambadinca e Xitole (ver mapa), que estava sob controlo governamental. "Houve muitos mortos e 12 sobreviventes internados em Catió", segundo um padre que ajudou as vítimas. "Não se compreende como não avisaram as viaturas de transporte colectivo!"
Depois das 48 horas, Bissau poderá não resistir muito tempo. A hipótese de "Nino" receber reforços não pesa sequer nos cenários da diplomacia europeia, como explicou Francisco Henriques da Silva. "O Senegal não é uma reserva inesgotável de soldados. E Dacar e Conacri sabem que não resolveriam o problema com mais um ou dois batalhões, muito menos fazendo-os entrar agora, sem objectivo nem direcção". Apesar disso, mais mil senegaleses foram ajudar os seus colegas sitiados em Bissau, segundo a imprensa senegalesa. Os jornais de Dacar falavam ontem de "armadilha" e do "drama em Bissau".