Dez, 28, 1964
Carissimo Paulo: no dia 25, em casa dos Wagleys, que não o esquecem,
recebi a sua carta de 15 deste. Impossivel recordar a carta que lhe escrevi. Devia estar
sob a ação de algum filosofo existencialista - Camus ou Sartre. O fato é que éles me
impressionam sempre. Passado o período dos mitos e resolvidos os problemas fundamentais
do alimento, da roupa, da casa e da saude, incluidos nesta sexo e familia, o problema do
sentido da vida ganha uma dimensão voluntaria desconcertante. E
necessario engajar, como diz o Sartre, e esse engajar-se tem qualquer cousa de arbitrario,
é uma simples escolha, quasi que um exercício de ginastica necessario para suportar-se a
vida e torna-la, deste modo, significativa
Veja como a paixão dos esportes é
afinal uma paixão antiga e sempre nova. Ora os esportes são algo de modesto, sem
filosofia nem metafisica alguma, e tudo que exige é saude e certo saudavel e
descomprometido companheirismo. Uma porção de virtudes claras e transparentes
infundem-lhe um certo tom de espiritualismo alegre e lirico. Será que temos de considerar
esportes as nossas convicções, as nossas filosofias, as nossas fés, as nossas
aspirações, a nossa busca sempre inquieta e nunca satisfeita? Com isto não lhes
retirariamos o tom trágico que nos vem de tão longe?
Bem sei que ha a morte. Será
que não a podiamos aceitar? Não ronda ela também os esportes e não são eles a mais
simples e mais permanente paixão humana? Está claro que estou admitindo que tenhamos
todos os meios de evitar o sofrimento ou a morte evitaveis e que o nosso amôr seja pela
vida e pela perigosa aventura de viver. Sua indagação, porem, não é esta mas a da
justiça social e da construção da bôa sociedade. E com isto voltamos ao problema
objetivo e não apenas subjetivo do sentido da vida. Damos de barato que a vida é bôa e
a questão é a de organiza-la bem. E como isto aqui é o mais avançado estagio de
organização a que já atingiu a vida humana, nada mais proprio do que analisar esta
organização. Até agora, o que ficou, ao que parece solidamente, organizado foi o
sistema de produção. Os 180 milhões de americanos estão a produzir por ano 624
bilhões de dolares, mais de 3 bilhões por milhão de pessoas. Ontem, dizia-me um
professor que para a sua produção agricola, em que se ocupam uns 10 milhões de
americanos, bastariam 1.7 milhões de pessôas. E. V. sabe que os EEUU produzem mais de
40% do alimento do mundo. Este sistema de produção comanda, porem, a vida de tal modo,
que todos os outros sistemas - o político ou o das decisões, o cultural ou da
comunicação e da educação e o da familia, ou da geração e criação do homem - lhe
estão subordinados e, segundo o determinismo marxista, não passam de racionalizadas
super-estruturas. Ora, parece ser exatamente isto que alienou o homem de sua sociedade.
Como a produção ganhou um grau incrível de organização e se baseia em extrema
especialisação de conhecimentos, o saber humano deixou de constituir uma cultura comum e
a propria educação passou a separar os homens, com a extrema especialização dos
conhecimentos. Isolados dentro da macro-organização da produção, isolados pelos seus
conhecimentos cada vez mais especializados, isolados pela separação entre o trabalho e a
vida pessoal - o homem moderno americano tem duas vidas, a do trabalho impessoal e publico
e a da vida pessoal, isolada e privada. Essa vida pessoal passou a ser a da familia, mas
não a grande e extensa familia com a sua riqueza de relações e de afetos, que tão bem
conhecemos, e sim a da pequena familia conjugal - marido, mulher e filhos até
adolescencia, a viver juntos e segregados em apartamentos ou casas de subúrbio. O
desaparecimento da comunidade - tornada impessoal e anonima - e a vida pessoal reduzida
aos limites da pequena familia e dos poucos amigos privados, é algo de absolutamente
novo. Para que essa vida se faça significativa, precisa-se ou de extrema simplicidade ou
de extrema cultura. Pela simplicidade e as virtudes que a acompanham, teriamos algo de
parecido com a vida dos esquimós ou a de camponeses isolados de algumas regiões. Ainda
assim não seria o mesmo, pois os esquimós ou os camponeses entenderiam toda a sua vida e
os isolados da industrialização total não compreendem o seu trabalho, demasiado
complexo e demasiado dividido para, em sua simplicidade, o compreenderem. Só pela extrema
cultura seria possivel a reconstrução da comunidade, pois ai o individuo entenderia o
seu presente como os cultos entendem todo o passado humano, pela informação e pelo
saber. Deve ele viver numa comunhão humana invisivel, que sente e percebe
imaginativamente, graças ao jornal, ao radio, à televisão, ao livro, que o informam por
comunicação impessoal e parcial, pois não permitem nem o diálogo, nem a conversação,
nem a resposta. Quantos são suficientemente cultos para essa experiência? Está claro
que sempre houve homens capazes disto. Sempre houve homens cuja sociedade foi a de todos
os homens - os que já viveram, os que vivem e os que vão viver. Será que conseguiremos
educar todos para se tornarem capazes disto? Este me parece o problema da sociedade
globalmente industrializada de hoje e atirada ao consumo global
Si cette chause on
ne vous embête, fica V. convidado para uma discussão, que gostarei de fazer, se V. me
provocar com as suas respostas. Mil e mil saudades de Emilinha e do muito seu
Anísio