Andre Medeiros

 

O DIA EM QUE O MARACANÃ CHOROU


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Tarde do dia 16 de julho de 1950. A festa estava preparada para o que seria o maior feito do futebol brasileiro até então. O estádio, novinho em folha, especialmente construído para o evento, e cerca de 200.000 pessoas presentes, vibrando à espera do grande jogo. A Seleção Brasileira era a franca favorita ao título. Bem, pelo menos é o que todos pensavam. O adversário seria o Uruguai que, além de apresentar, segundo muitos, uma equipe fraca em relação às anteriores, não vinha de resultados tão expressivos como o Brasil. Foi, por força do regulamento, a primeira vez em que uma seleção precisaria somente de um empate para levar a Taça Jules Rimet para casa. Não, ninguém duvidava da vitória. Mendes de Moraes, prefeito do Rio de Janeiro, saudara "nossos campeões do mundo" antes do jogo iniciar. Mas o fim da festa todos nós conhecemos: Uruguai 2x1. Foi, também, a última Copa em que usamos o antigo uniforme branco com frisos azuis. A "seleção canarinho" ainda não havia surgido.

O Brasil foi o único país a se candidatar para ser a sede da IV Copa do Mundo. A Guerra Mundial acabara há pouco e a Europa ainda se achava abalada pelo gigantesco conflito. A Argentina, em litígio com a CBD, desistiu de comparecer. A França idem, por não aceitar a tabela proposta. A Itália, Bi-Campeã Mundial, veio muito desfalcada (muitos de seus craques que jogavam no Torino haviam sido vítimas de um acidente aéreo meses antes). A Copa ficou reduzida a apenas 13 participantes, sendo os mais cotados o Brasil, a Espanha, a Inglaterra, o Uruguai e, apesar dos desfalques, a famosa esquadra Azzurra italiana.

O Brasil vinha de expressivas campanhas sul-americanas, conquistando a Copa Rocca (em 45), a Copa Rio Branco (47) e o Sul-Americano (49), disputado no Rio de Janeiro. Neste último torneio assinalou goleadas históricas: 9x1 no Equador, 10x1 na Bolívia, 5x0 na Colômbia, 7x1 no Peru, 5x1 no Uruguai e 7x0 no Paraguai na revanche (havia perdido por 2x1 na 1a partida), além dos 2x1 no Chile. Foram 46 gols-pró e apenas 7 contra em 8 jogos. O Uruguai ficaria apenas com o 5o lugar. Bons tempos, em que na América do Sul muito poucos eram adversários à altura para nossa seleção.

O técnico Flávio Costa dirigia também o time do Vasco da Gama. Dos jogadores titulares da seleção, cinco eram deste clube: o goleiro Barbosa, o zagueiro e capitão Augusto, o meio-campo Danilo e os atacantes Ademir e Chico. Havia ainda três suplentes, também do Vasco: Ely, Alfredo e Maneca. Na equipe vascaína começou ele a implantar uma espécie de laboratório para suas concepções táticas de futebol. Como seu time era dos melhores do país e contava com excelentes craques, aí lançou seu "sistema diagonal", como se tornou conhecido.

Na 1a fase da Copa, o Brasil estreou goleando o México por 4x0 (24/06) no Maracanã, gols de Ademir (2), Baltazar e Jair. Na partida seguinte, em S. Paulo, o time empatou com a retrancada Suíça por 2x2 (28/06), gols de Alfredo II e Baltazar. De volta ao Rio, enfrentamos a Iugoslávia e vencemos por 2x0 (01/07), assinalando Ademir e Zizinho para o Brasil.

Classificados para a fase final da Copa, começamos massacrando os suecos por 7x1 (09/07), com gols de Ademir (4), Chico (2) e Maneca. Em seguida, pegamos a forte Espanha e impusemos aos adversários outra goleada histórica no Maracanã por 6x1, assinalando Chico (2), Ademir, Zizinho, Jair e um gol-contra dos adversários. Foi inesquecível ouvir nossa torcida cantando em uníssono a marchinha carnavalesca "Touradas em Madri" de João de Barro, enquanto nosso time passeava em campo contra os até então temidos espanhóis. O uruguaios, por sua vez, vinham de uma campanha inferior, vencendo a inexpressiva Bolívia (8x0), ganhando com dificuldades da Suécia (3x2) e empatando com a Espanha (2x2). Por tudo isto, um clima de euforia e de "já ganhou" estava no ar. Um padre chegou a ser chamado, antes da partida, para rezar a missa dos "campeões mundiais".

Chegara enfim o grande dia. O Maracanã transbordava de gente. Eram 200.000 pessoas a vibrar e a cantar intensamente. O Brasil parou: estavam todos nas ruas ou em suas casas com os radinhos colados ao ouvido. O país inteiro estava em festa. Afinal, seria fácil: tínhamos, de longe, o melhor time, a melhor campanha e precisávamos apenas de um empate. A equipe entraria em campo com sua formação máxima. Tudo nos era favorável … Mas, por estranho que possa parecer, o time se mostrou apático desde os primeiros momentos do jogo. Os uruguaios, liderados pelo grande capitão Obdulio Varela, estavam contagiados por uma garra e uma determinação incomparável, mas era visível que tinham entrado em campo apenas para perder de pouco. Mas o decorrer do jogo reformularia seus planos.

E começou a partida. Friaça assinalou o primeiro gol, logo no início da 1a etapa, aos 2 minutos. Brasil 1x0. Havia algo mais a temer? Havia. Aos 19 minutos, Schiaffino empatou para os uruguaios. A torcida se calou por instantes, mas… afinal tínhamos time para reverter o resultado, e como tínhamos... Lá pelas tantas, Bigode entrou com alguma rispidez em cima de Ghiggia, o ponta-direita do Uruguai. O capitão Obdulio Varela, então, chegou e deu um tapinha na cara do jogador brasileiro, dizendo: "Cálmate, muchacho". Dizem que o Brasil amargou mesmo sua derrota a partir deste incidente. Aos 34 minutos do 2o tempo, Ghiggia, que passava como queria por Bigode, numa dessas avançadas pela direita invadiu a área e, quando todos pensavam que fosse cruzar, chutou rente à trave esquerda, junto à qual estava o goleiro Barbosa, marcando o gol da vitória. Um silêncio assustador dominou o Maracanã. Era o fim de um sonho, quando pouco após o juiz apitou o fim da partida. O Maracanã se calou e não conteve o choro que tomou conta daquela multidão. Emocionado, o jornalista inglês Brian Glanville disse que, até então, tinha sido a única Copa que, não tendo seu final programado, teve a final mais emocionante de todas. O técnico Flávio Costa se lamentou logo após a partida: "Faltou espírito de luta aos nossos jogadores". Tinha razão, pelo menos foi o que se viu. Pouco mais tarde amenizaria suas críticas ao time dizendo que "foi o imponderável que liquidou todas as nossas pretensões".

O Brasil havia entrado em campo com Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. O Uruguai tinha alinhado Máspoli, González e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Rodriguez Andrade; Ghiggia, Pérez, Miguez, Schiaffino e Morán. Técnico: Juan López. O juiz foi o inglês George Reader.

Esta seleção de craques tinha ainda um ótimo time reserva, com jogadores como o grande goleiro Castilho, o zagueiro Nílton Santos em início de carreira, o meio-campista Ely do Amparo, o grande meia Maneca e o centroavante Baltazar, o "Cabecinha de Ouro". Entre os titulares, citaremos alguns:

Ademir Menezes, o conhecido "Queixada", centroavante e artilheiro da Copa com 8 gols. Marcou 301 gols pelo Vasco em 429 partidas. Jogou pelo Vasco de 42 a 56, exceto entre 46 e 47 quando passou pelo Fluminense. Foi 4 vezes Campeão Carioca pelo Vasco, Campeão do Torneio Municipal (45) e do Torneio dos Campeões Sul-Americanos (48). Jogou 39 vezes pela seleção, assinalando 32 gols.

Moacir Barbosa, o melhor goleiro de seu tempo. Jogou pelo Vasco até 1960 (exceto em 56 e 57). Foi 6 vezes Campeão Carioca por seu clube, 3 vezes Campeão Municipal e conquistou o Torneio dos Campeões Sul-Americanos (48). Foi injustiçado ao ser responsabilizado pelo gol da vitória do Uruguai na final da Copa. Teve uma excepcional carreira de 27 anos!

Danilo Alvim, meio-campo vascaíno, que voltou a jogar futebol após quebrar a perna em 39 lugares, em um atropelamento em 1940. Era chamado de "Príncipe", tanto por seu estilo elegante quanto por sua figura alta e esguia. Foi 5 vezes Campeão Carioca pelo Vasco e Campeão do Torneio dos Campeões Sul-Americanos. Encerrou sua brilhante carreira em 1958, no Botafogo.

José Carlos Bauer, zagueiro e meio-campista do São Paulo, dono de um belo e clássico futebol. Atuou, também, na Portuguesa de Desportos, no São Bento e no Botafogo do Rio. Foi 5 vezes Campeão Paulista, Campeão do Sul-Americano (49). Atuou na Copa de 54, na Suíça. Jogou 29 vezes pela seleção.

Thomaz Soares da Silva, o Zizinho, excelente armador e grande driblador. Possuía uma técnica refinada, armava e chutava com grande precisão. Jogou pelo Bangu, Flamengo, São Paulo e pelo Audax Italiano (Chile). Foi 3 vezes Campeão Carioca, Campeão Paulista, da Copa Rocca (45) e do Sul-Americano (49). Jogou 53 vezes pela seleção, assinalando 30 gols.

 

Jair da Rosa Pinto, o Jajá, armador de excelente técnica e com uma canhota irresistível, alem de ótimo cobrador de faltas. Jogou pelo Madureira, Vasco, Flamengo, Palmeiras, Santos, onde chegou a atuar com Pelé em início de carreira, além de se apresentar pelo São Paulo e Ponte Preta. Campeão Carioca, 4 vezes Campeão Paulista, Campeão da Copa Rocca (45) e do Sul-Americano (49). Jogou 39 vezes pela seleção, assinalando 20 gols.

 

Na tabela a seguir, os jogos da Seleção Brasileira de 1947 a 1950

29/03/47 Uruguai Em casa 0x0
01/04/47 Uruguai Em casa 3x2
04/04/47 Uruguai Em casa 1x1
04/04/48 Uruguai Fora 1x1
11/04/48 Uruguai Fora 2x4
03/04/49 Equador Em casa 9x1 (Sul-Amer.)
10/04/49 Bolivia Em casa 10x1(Sul-Amer.)
13/04/49 Chile Em casa 2x1 (Sul-Amer.)
17/04/49 Colômbia Em casa 5x0 (Sul-Amer.)
24/04/49 Peru Em casa 7x1 (Sul-Amer.)
30/04/49 Uruguai Em casa 5x1 (Sul-Amer.)
08/05/49 Paraguai Em casa 1x2 (Sul-Amer.)
11/05/49 Paraguai Em casa 7x0 (Sul-Amer.)
06/05/50 Uruguai Em casa 3x4
07/05/50 Paraguai Em casa 2x0
13/05/50 Paraguai Em casa 3x3
14/05/50 Uruguai Em casa 3x2
18/05/50 Uruguai Em casa 1x0
24/06/50 México Em casa 4x0 (Copa)
28/06/50 Suíça Em casa 2x2 (Copa)
01/07/50 Iugoslávia Em casa 2x0 (Copa)
03/07/50 Suécia Em casa 7x1 (Copa)
13/07/50 Espanha Em casa 6x1 (Copa)
16/07/50 Uruguai Em casa 1x2 (Copa)

 

O ESQUEMA TÁTICO

O esquema tático do Brasil (ver ilustração) foi realmente inovador em sua época. O técnico do Vasco e da seleção, Flávio Costa, começou a implantar no time de craques do Vasco algumas de suas concepções táticas, como vimos. Partindo do sistema WM, teve a grande idéia de fazer uma rotação de 90o no quadrado de meio de campo que o tradicional esquema apresentava. Com isso, criou um losango, em que o vértice avançado era ocupado pelo centro-avante (Ademir) e o vértice recuado pelo homem de criação e iniciador das jogadas ofensivas a partir do meio-campo (Bauer). Os dois vértices laterais foram preenchidos pelos meias (Zizinho e Jair), quase sempre no apoio e também presentes no ataque. Some-se a eles dois extremas velozes (Friaça e Chico) e tínhamos aí formado um time muito ofensivo. Mais atrás, na defesa, havia dois jogadores abertos pelas laterais (Danilo e Bigode). Seriam algo parecido com os "alas" de hoje, porém mais defensores que armadores de jogadas de ataque. Mais atrás ainda, os dois zagueiros, um de primeiro combate, uma espécie de "líbero" que eventualmente saía com a bola dominada (Juvenal) e o outro bem recuado (Augusto). Este era o último homem da defesa e que partia para cima do adversário que entrasse área adentro. Este esquema tático ficou conhecido como "diagonal". Foi a grande contribuição à Copa, em têrmos de criatividade. Quanto ao Uruguai, apesar de se tornar Campeão, o fez mais na base do grito e do entusiasmo na partida final, aliado à misteriosa apatia que tomou conta do time brasileiro. Em têrmos táticos, os uruguaios nada apresentaram de novo.

Analizando a Seleção Brasileira de 50 na distância do tempo, vemos que ela foi uma das melhores que já formamos para uma Copa do Mundo. Mas o jogo que nos faria verdadeiros campeões por mérito e por direito, por uma fatalidade do destino, pendeu para o time uruguaio que vinha de uma campanha sem brilho se comparada à nossa e, além do mais, sem os grandes craques que possuíamos. Sem dúvida, foi a maior tragédia da história do nosso futebol. Ainda hoje nos perguntamos: o que teria ocorrido com nossa equipe naquela fatídica tarde de 16 de julho? Teria sido o "imponderável", como disse Flávio Costa após o jogo? Ou então a garra transmitida a seus companheiros pelo grande capitão Obdúlio Varela? Ou a incompreensível passividade de nossa equipe naquela tarde? As hipóteses são tantas quanto as cabeças que as formulam. O certo é que o desfecho desta Copa marcou uma geração inteira em nosso país. A tristeza e a amargura pela derrota custaram a se diluir nos anos. Aquele havia sido, realmente, um dia muito especial: foi o dia em que o Maracanã chorou.

  

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E-Mails para a coluna: alspm@unisys.com.br

André Luiz Medeiros é
arquiteto e pesquisador
do futebol.

 

 

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