"Caiu máscara de hipocrisia" com assassínio de Carlos Cardoso

 

Lisboa - O assassínio do jornalista Carlos Cardoso, na quarta-feira em Maputo, fez cair a "máscara da hipocrisia de se apresentar Moçambique como modelo de liberdade de imprensa em África", declarou Quinta-feira Fernando Lima, correspondente em Portugal da Mediacoop. Segundo o jornalista moçambicano, proprietário e fundador daquela cooperativa - "primeiro projecto de
ªmedia` independente do país" - e correspondente em Lisboa das publicações "Savana" e "Mediafax", do grupo, o crime não o surpreendeu. "Eu e outros amigos costumávamos dizer que um dia destes o Carlos levava um tiro na cabeça", acrescentou, lembrando que desde há sete ou oito anos que esta opinião era partilhada por vários conhecidos do jornalista assassinado. "Os estigmas de violência contra jornalistas e publicações independentes existem desde que há liberdade de imprensa", denunciou Fernando Lima, receando que o crime possa "assustar, amedrontar, outras vozes de jornalistas moçambicanos corajosos e audazes". "Com a morte de Cardoso está em perigo a liberdade de imprensa" no país, rematou. Por detrás do crime, garantiu, estão as denúncias que Carlos Cardoso fazia frequentemente no "Metical", jornal que criou em 1997. "Nestes três
anos, apesar de me custar reconhecer (devido ao facto de ter continuado no "Mediafax", onde estiveram juntos alguns
anos), o "Metical" era, sem dúvida, a publicação que apresentou um trabalho de maior qualidade jornalística, quer em
matéria de investigação, quer em matéria de opinião", afirmou. "Na economia tratava de todo o tipo de assuntos. O
tema recorrente dos seus trabalhos era a corrupção", adiantou, explicando que a "promiscuidade" entre o
poder económico e o político, denunciada tantas vezes por Carlos Cardoso, não pode deixar de estar ligada ao atentado em
que o jornalista foi morto. Interrogado sobre o crime, Fernando Lima disse que não se pode esquecer que "a sociedade
moçambicana é uma democracia emergente, portanto, não plena, e este tipo de situações (processos de desenvolvimento
democrático) tem os seus próprios anticorpos".
As"ameaças" e "conselhos" - formas que, segundo apontou, existem no país para "avisar" os jornalistas incómodos - Carlos Cardoso fez "ouvidos moucos". Chegou mesmo a dedicar artigos à teia de empresas em posse de Nimpine Chissano (filho do presidente moçambicano), um "jovem com menos de 30 anos", e à "arbitrariedade" nos negócios imobiliários da mulher do chefe de Estado, Marcelina Chissano. Carlos Cardoso "denunciava sistematicamente" os "novos negócios" (título de uma rubrica do seu jornal), manifestando estranheza pelo facto de estarem concentrados nas mãos de "antigos ministros ou antigos generais".
"As teias de interesses, favorecimentos e benesses funcionam em circuito fechado", afirmou, comunicando que foi exigido
pelos jornalistas moçambicanos ao governo "que rapidamente diga quem foram os mandantes do crime". Carlos Cardoso, 49
anos, e Fernando Lima, 46, conheceram-se em 1975 e além de pertencerem "à primeira geração de jornalistas
pós-independência", estavam "politicamente muito próximos", segundo o correspondente do "Mediafax" em Portugal. A relação pessoal juntou-se o relacionamento profissional na Agência de Informação de Moçambique (AIM),entre 1980 e 1989, anos após os quais Carlos Cardoso se dedicou a uma faceta "muito pouco conhecida": a pintura.
"Tinha uma veia de genialidade incrível", recordou, acrescentando que, além de escrever livros, o amigo "tocava viola, compunha música, cantava, praticava desportos e dançava muito bem, curiosamente, danças de salão". Sem esquecer
que "era muito bem sucedido entre as mulheres", rematou. Filho de portugueses e casado com uma norueguesa,
advogada da área dos Direitos Humanos, Carlos Cardoso tinha um filho e uma filha, de seis e dez anos - "com quem andei ao
colo" - e cuja imagem tem sido "a coisa que mais me vem à memória" desde que soube a notícia da sua morte, contou Fernando Lima, evocando também a sua condição de pai "


Boletim Lusa" de 24 de Novembro de 2000