MAS A
HISTÓRIA CONTINUA...
Rosa Albé
e Claudio Campos
SUMÁRIO
Este trabalho aborda a história da RIO1 (SPRJ)
e as vicissitudes da ética e da transmissão psicanalítica nas
relações de uma política institucional autoritária com a
tortura, na época da ditadura militar. Relações de poder,
repetição sem elaboração. A IPA e seus diferentes
posicionamentos ao longo do processo.
(Alain Badiou)
No período de 94/95, pela primeira vez na historia da RIO1, o
Conselho Diretor tinha, em sua composição, uma Comissão de Ética
e Comissão Científica formadas por membros que faziam parte da
oposição à corrente tradicionalmente no poder na RIO1,
desde a sua fundação. Uma das atividades da Comissão Científica
foi a programação de uma série de encontros sobre a ética
na psicanálise. Menos se discutiu, porém, sobre a ética da
instituição psicanalítica e sua importância na formação de
psicanalistas e transmissão da psicanálise. A RIO1 vivia, em
parte, num compasso de espera das conclusões a serem
apresentadas pela Comissão de Ética a respeito do processo ético
instaurado sobre o Dr. Leão Cabernite, conclusões estas
apresentadas, em dezembro de 1995, pelo Relatório da Comissão
de ética. Essa composição mista da diretoria que poderia
representar um desejo de mudança, de nenhuma forma aproximou os
diferentes grupos.
O espaço institucional garantia a afiliação à IPA e as
diretorias da RIO1, desde sempre, apresentavam a IPA como
instituição autoritária que só admitia uma relação de
submissão que implicava a impossibilidade de discordar de seus
mandamentos. Isto também valia para o terreno científico porque
o que pudesse constituir uma divergência às recomendações da
IPA não podia ser tratado abertamente já que, de forma implícita,
a ameaça de exclusão, desfiliação estava sempre presente. Uma
relação de poder com a encarnação do lugar do ideal que
não devia ser questionado para poder ser cultivado.
A submissão ao desejo e à iniciativa do outro ocupa o lugar do
próprio gesto criativo. É um preço caro para essa afiliação
e suposta proteção institucional. A impossibilidade de
uma relação verdadeira e criativa respeitando-se a autonomia de
pensamento tornava as relações da RIO1 desvitalizadas e
desesperançadas. Quase não havia inscrição de candidatos
e apesar do clima de desestímulo o estudo das causas
dessa situação não era aprofundado na propria RIO1.
Até então, as atividades científicas eram organizadas de forma
completamente dissociada do que se passava institucionalmente.
Era importante continuar produzindo um conhecimento
purificado das questões institucionais, independente do
conhecimento sobre o que estava sendo vivido, porque este diria
respeito ao que devia ser encoberto. Qualquer crítica era
neutralizada por interpretações e tratada como ataque à psicanálise
e à instituição. Programavam-se conferências e a maior
preocupação era encher o auditório como forma de provar o bom
andamento da instituição. Era a repetição da tentativa de
salvar não só a psicanálise como as aparências, ocultando a
crise na RIO1, numa postura de negação. O adjetivo purificado
é importante, porque o conhecimento teórico, a palavra produzir
e ainda mais produzir conhecimento sobre psicanálise parecem
atividades científicas e, ainda mais, ligadas a bons propósitos,
como busca da verdade e liberdade, mesmo quando a prática e convívio
institucionais desnudam intenções nem tão puras assim. Falar
de maneira geral ou teórica salva a idealização nas relações
institucionais e dessa forma, a erudição, o renome, bons
trabalhos sobre ética ou sobre psicanálise podem conviver com
atitudes omissas, manipuladoras e antiéticas.
O conceito de neutralidade psicanalítica foi usado de forma
defensiva na relação com o paciente e com a instituição
psicanalítica. A neutralidade, tornou o lugar de analista um
refugio encastelado em relação a seu próprio humano que
exposto revelaria um analista sem independencia e liberdade de
pensamento em relação à psicanálise e à própria instituição
psicanalítica. A neutralidade também pretendia um apoliticismo
em absoluta contradição com a prática institucional vigente na
época, encobrindo interesses e a manipulação no sentido
da conservação do poder.
Fica muito clara na RIO1 a interdependência da situação política
do país com a dinâmica da política institucional e com o
acobertamento das graves faltas éticas do candidato
Amilcar Lobo, seu analista Dr. Leão Cabernite e os então
diretores da instituição com a tortura do regime de ditadura
militar no Brasil.
É claro
que o recomendado e pretenso apoliticismo é entendido como
norma desejante da instituição que induz, dessa maneira, um
comportamento passivo e não crítico de seus candidatos e
membros. A submissão ao padrão científico dificulta um
questionamento aberto e legítimo de questões teóricas e técnicas,
além das institucionais, criando mais uma divisão entre a prática
e o discurso e reforçando o desestímulo. Nessa instituição e
com essa psicanálise, descomprometida com seus
fundamentos, aguardava-se o Relatório da Comissão de Ética, em
1995. Estava em jogo a instituição, mas, mais do que isso, o
resgaste da psicanálise dentro da cada um.
Voltando aos fatos
que desencadearam o Relatório:
Em 1993, na reunião
do Executive Council em Amsterdam, por iniciativa e exigência do
Dr. Wallerstein, membro de mais de um site-visit e da Dra. Hanna
Segal, o Executive Council decidiu pedir a expulsão do Dr.
Cabernite da RIO1, por conivência com o torturador confesso e
candidato da instituição Amilcar Lobo.
A Diretoria da RIO1,
então presidida pelo Dr. Claudio Campos, tentou cumprir a decisão
do Executive Council, convencida que estava da responsabilidade
ética do Dr. Cabernite no caso. Paralela e independentemente
a essa decisão da IPA, o próprio Dr. Cabernite pede
desligamento da RIO1 voltando atrás dessa decisão quando é
informado da expulsão da IPA. Em assembléia Geral é votada e
aprovada a readmissão Do Dr. Cabernite para que possa defender-se.
Considerando que a
readmissão votada e aprovada feria os estatutos da RIO1 e que o
Dr. Etchegoyen, em dezembro de 1993, recomendou à Sociedade que
começasse um processo ético e legal contra Cabernite, o
Presidente da RIO1, Dr. Claudio Campos renuncia, assim como todos
os membros da Diretoria.
Este Relatório de Ética é sobre o processo ético e
legal instaurado por recomendação do Presidente da IPA,
Dr. Etchegoyen, e mais as representações éticas feitas pelo Dr.
Jeremias Ferraz, membro da RIO1 e também pelo Conselho Diretor
dessa instituição.
Dr. Leão Cabernite é considerado culpado de infrações graves
à ética psicanalítica, à ética da dignidade humana e é
proposta sua exclusão do quadro societário baseado no artigo 33,
alinea A dos Estatutos. Dr. Ernesto La Porta, com fundamento no
mesmo artigo, foi suspenso por um ano, considerado copartícipe,
tratando-se como atenuante sua tentativa de reparar os danos
causados à RIO1 e à psicanálise. O Relatório foi apresentado
em 4 assembléias, sendo que ao final da 4ª assembléia
foi feita uma votação em que foram rejeitados o Relatório e o
Parecer da Comissão de Ética, por 55 votos contrários, 38
votos a favor e 9 abstenções.
A
condução da assembléia e o arquivamento do processo levaram um
grupo de pessoas a se retirar da assembléia, constituindo-se,
mais tarde, como Grupo Pró-Ética. Este grupo encaminhou seu
protesto ao Presidente da IPA, distribuído para o Executive
Council, em dezembro de 1995. O Pró-Ética constitui-se em março
de 1996, destacando-se da RIO1 e afastando-se de todas as
atividades societárias.
O Pró-Ética envia um manifesto ao Executive Council em que
define suas posições diante da rejeição do Relatório de 95,
lembrando que os acusados foram legalmente defendidos e que
tiveram condenações estabelecidas pelos Conselho Regional e
Federal de Medicina. Declara-se separado da RIO1 de acordo com os
princípios éticos consagrados pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, pela Declaração de Genebra, pela Declaração
de Helsinque, pela Declaração de Toquio e pelos princípios da
Ética Médica do Brasil e da Constituição Brasileira. Aguarda,
dessa maneira, o pronunciamento ético da IPA.
O Executive Council da IPA faz, em agosto de 1996, um
pronunciamento, com um levantamento histórico a partir da fundação
da RIO1, abordando a condução do conflito e assegurando no item
3 desse pronunciamento ao Pró-Ética que caso ele decida
formar uma nova sociedade, com o fim da canalizar os princípios
psicanalíticos, ele terá a assistência e o inteiro apoio da
IPA.
O Pró-Ética não achou oportuna, naquele momento, a proposta de
formar uma nova sociedade uma vez que isso deixaria em segundo
plano o que parecia mais importante: a defesa da ética nas
instituições psicanalíticas e a expectativa de que isso
pudesse ser também um movimento da IPA. Para deixar clara essa
posição, desde o início, fica acertado dentro do grupo que
nenhum de seus membros assumiria cargo ou posição de poder ou
interesse dentro da RIO1. Os didatas deixariam de dar seminários
e supervisões, mantendo apenas as análises em andamento.
O Pró-Ética começou a ser ouvido no espaço
internacional. Na RIO1, enquanto minoria, estava sempre fadado à
repressão, independentemente do mérito das questões éticas
tratadas.
O presidente da IPA, Dr. Horacio
Etchegoyen em janeiro de 1997, constitui uma Comissão de Inquérito,
formada pelos analistas: Inga Villarreal (Presidente), Carlos
Mario Aslan, André Green, Ludwig Haesler, Günther Perdigão,
Leo Rangell, Joseph Sandler, Rober S. Wallerstein.
Esta Comissão tem a função de avaliar a situação
institucional da RIO1 e depois de meses de estudo emite um relatório
que passou a ser conhecido como relatório de Barcelona (por ter
sido aprovado no Congresso Internacional, em Barcelona), que
atesta problemas ético-institucionais da RIO1, recomendando
mudanças estruturais.
A IPA institui por recomendação do relatório de Barcelona a
criação de um Comitê Especial Ad-Hoc com a função de
acompanhar o Pró-Ética e a RIO1. Esse acompanhamento levou dois
anos de trabalho e constou de quatro visitas. No último ano,
firma-se um pacto-contrato entre as três partes. A aceitação
do Relatório de Barcelona é considerada como condição para o
início do diálogo, entre RIO1 e Pró-Ética.
Constituem-se então as Comissões
Coordenadoras que vão formar as subcomissões paritárias para
estudar e trabalhar a reestruturação ético-institucional da
RIO1.
A RIO1 aplaca a IPA e o conflito com uma concordancia inicial que
progressivamente começa a negar. Apesar de todo o conflito já
historiado em outro documento, as subcomissões produzem relatórios
que são aprovados por quase unanimidade em assembléia de 19/07/99.
Esta assembléia é iniciada com um pedido de desculpas da RIO1
à comunidade psicanalítica internacional. A RIO1 reconhece seu
erro ao manter a defesa intransigente do Dr. Cabernite, que
defendeu publicamente seu candidato Amilcar Lobo, torturador
confesso, acusado e como comprovado, posteriormente, comprometido
com a tortura.
Ainda que pudesse ser visto como um passo importante, o pedido de
desculpas apresentado pela RIO1 no Congresso de Santiago não
anula os efeitos que as sucessivas crises imprimiram na instituição,
seja em termos de sua imagem pública (já que durante muito
tempo era conhecida como a sociedade do torturador), seja em seu
quadro social, que vem sofrendo incessante esvaziamento. Seria
necessário, além disso, que este pedido de desculpas se fizesse
acompanhar por atitudes coerentes com esse reposicionamento, numa
reestruturação profunda da vida profissional como um todo.
Entretanto, em 5/11/99, depois de mais quatro meses de trabalho,
o Dr. Carlos Edson Duarte, presidente da RIO1 envia um documento
afirmando que a assembléia de 19/07 não tinha condições
legais para aprovar mudanças de estatuto. A última assembléia
convocada para votar o relatório sobre o novo Estatuto da
subcomissão paritária do pacto-contrato, a que comparecem o Pró-Ética
e o Comitê AdHoc, não pôde ser realizada por falta de quorum e
com isso rompe-se o pacto-contrato.
Esta vinda do Comitê Ad Hoc estava prevista para abril de 2000 e
foi antecipada pela IPA para antes de sua reunião de dezembro,
em Nova York e antes das eleições de janeiro da RIO1.
O Comitê Ad Hoc Especial envia seu parecer ao Presidente da IPA,
Dr. Kernberg.
Este parecer historia o longo e intenso trabalho feito com o Pró-Ética
e a RIO1. Reconhecendo a tentativa feita pela RIO1, conclui que
sua manifesta cooperação esconde uma atitude de oposição às
mudanças. Refere-se ao desejo manifestado pela RIO1 de separar-se
do Pró-Ética e de conduzir suas questões e trabalhos sem a
intervenção da IPA. Afirma que a ausência de membros da RIO1
na assembléia criou uma situação onde todos os esforços prévios
e árduo trabalho pareceram esvanecer-se. Dizem que é difícil
deixar de considerar essa ausência como um ataque ao Comitê Ad
Hoc e à própria IPA. Concordam com o Relatório de Barcelona,
em relação às questões básicas estruturais da RIO1 que
permanecem e que os problemas persistem em torno das mesmas
pessoas. Em função disso, endossam as conclusões deste Relatório
quando diz que se a RIO1 ignorar a necessidade de uma profunda
reforma nos hábitos e espírito da sociedade, não haverá outra
escolha para a IPA que o congelamento de algumas funções da RIO1.
Em relação ao Pró-Ética o parecer reconhece o esforço feito
pelo mesmo, nesse projeto. Refere-se ao fato de que também o Pró-Ética
acha que há incompatibilidades e diferentes tendências entre
RIO1 e Pró-Ética. Reportam-se, mais uma vez, ao Relatório de
Barcelona quando este afirma que numa sociedade democrática deve
haver lugar para que as minorias possam expressar-se. Recomendam,
para isso, que seja dada ao Pró-Ética uma sociedade provisória.
O Executive Council da IPA emite um mandato, onde atendendo às
solicitações das sociedades psicanalíticas brasileiras resolve
dar mais um ano para os conflitos da RIO1. Não faz nenhuma
consideração sobre o parecer da Comissão de Inquérito de
Barcelona e sobre o parecer do Comitê Ad Hoc Especial afirmando
que este último será aproveitado por uma nova comissão criada.
Tudo se passa como se nada tivesse acontecido, sem menção ao
mérito das questões éticas tratadas. A proposta é
que prossigamos com uma nova comissão, adequando-nos ao que nos
foi proposto, até que sejamos capazes de viver integrados. Isso
se quisermos garantir nossa afiliação.
Concluindo..
A formação psicanalítica se dá de forma mais importante através
da análise do candidato. É fundamental que a relação analítica,
não seja atropelada pela rede transferencial viva na instituição
e que sofra a menor interferência possível das relações de
poder exercidas por aqueles que vão ter participação na avaliação
dos candidatos. É muito mais difícil quando uma relação analítica
acumula outras formas de poder além do constituído pela
transferência e quando este analista manipula a Lei,
segundo as conveniências do momento. Este tipo de situação
forma pessoas que ou se identificam com o poder onipotente ou se
submetem a ele.
A ética e a independência custam o
enorme passo para a solidão que só pode dar quem já suporta
perder a proteção e sabemos que a existência e incorporação
de uma Lei válida e respeitada por todos é uma das
condições para essa conquista.
A ética do poder, acima de tudo, obriga ao silêncio
porque, dessa forma, as técnicas de poder, de nenhuma forma
neutras, não sofrem qualquer análise. Alimentando-se da submissão,
a afiliação institucional e sua suposta proteção estimulam o
aprisionamento transferencial e a servidão voluntária. Um
exemplo disso são aqueles candidatos que não queriam saber nem
ser informados pelo boletim Destacamento do grupo Pró-Ética dos
conflitos societários. Uma ética do não saber.
O rompimento da repressão instituída precisa vencer as forças
da resistencia ao saber, da resistencia ao novo, da resistência
ao rompimento com os pais eternos e idealizados que são a
promessa de um poder secreto. Os maiores problemas não estão
ligados apenas ao desconhecimento mas à falta de vontade de
conhecer, à manipulação da lei e das relações para a manutenção
do poder.
O Brasil cassou professores politizados da mesma maneira que se
tentou fazer na RIO1. Não nos referimos aqui à política partidária
e sim à independência e autonomia de pensamento que conduzem à
consciência da importância da participação institucional. A
política institucional, até pouco tempo, era tratada como
privilegio de poucos e só estes deveriam ter acesso à
informação, valendo-se para justificar essa atitude do
argumento da proteção do candidato e de sua análise. A análise
do candidato só pode ser protegida na medida em que ficar fora
do poder da política institucional. Isto não quer dizer deixar
de fora dessa política esse candidato porque é uma forma de
aliená-lo, manietá-lo e infantilizá-lo. A relação com
o poder atuada e não elaborada é uma das fontes de maior
dificuldade institucional e também na relação analítica, seja
para aqueles que se identificam com o poder seja para os que se
submetem a ele. É impossível que isso não se constitua num
ponto cego ou em grande dificuldade na formação e no trabalho
pessoal dos analistas.
As crises da RIO1 são ligadas a questões éticas, à luta pela
liberdade de informação e expressão e por direitos na
redistribuição de um poder concentrado e autoritário. Nessas
crises, o Pró-Ética faz a tentativa de resgate de uma
psicanálise que se possa respeitar e investir por não estar
contaminada pela própria submissão, auto-desrespeito e
desesperança e que possa suportar a verdade que diz buscar.
Rosa Albé
Tel : 55 21 247-4938
(cons.)
Claudio Campos
Tel: 55 21
5375471 (cons.)
1)
Vianna, Helena B., Não conte a ninguém. Imago,1994.
2)
Comissão de Ética, Processo de Averiguação Ética 01/94,
Relatório Final: O caso Amilcar Lobo, 1995.
3)
Boletim Destacamento do Grupo Pró-Ética.
4)
Cerqueira Filho, Gisálio, Crise na Psicanálise, Edições Graal
Ltda., 1982.
5)
Sub-Comissão de Ética e História, Relatório da Comissão de
Ética e História. Pacto-Contrato. Rio de Janeiro,junho/1999.
6) Badiou, A., Ética. Um ensaio sobre a consciência do mal. Relume-Dumará. Rio de Janeiro,1995.
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