Degradação de Lacan e desprezo pela comunidade
analítica
Comentário sobre a entrevista de J. A. Miller no
Caderno Idéias do Jornal do Brasil
de 1 de abril de 2000
Antonio Quinet
Podia ser um
primeiro de abril. Mas não deu para rir. O tema principal desse
caderno de cultura era o evento que se realizará em julho próximo
em Paris quando psicanalistas do mundo inteiro de diversas
orientações se reunirão para debater o estado atual da psicanálise
e promover o intercâmbio e a abertura ao diálogo entre os
analistas. Nesse contexto, a
entrevista de Miller empobrece a psicanálise e degrada não só
aqueles que optaram em sua formação analítica pela linha
lacaniana como também o próprio Lacan que o elegeu executor
testamentário de sua obra publicada e a ser publicada.
No entanto, não é assim que ele é apresentado pelo
entrevistador, diretor de uma seção da Escola de Miller, e sim
como guardião da obra de Lacan. O que será um guardião? Em
nosso ordenamento jurídico, o Supremo Tribunal Federal é o
guardião da constituição. Cabe a ele julgar se a legislação
infraconstitucional está de acordo com os princípios ético e
políticos inscritos na Lei Maior. A operação de transformar um
"executor testamentário" em "guardião da obra"
sugere um deslizamento semântico: aquele que executa as vontades
do testador após sua morte no que diz respeito à parte material
de sua obra (estabelecimento de texto, publicação, difusão) se
transforma naquele que guarda seu sentido, sua
leitura e sua interpretação. Uma obra intelectual, e sobretudo
esta tão rica e com tantas entradas como a de Lacan, não é
passível de ser controlada e de se transformar em propriedade
privada. É possível alguém se colocar como o Supremo tribunal
que confere o grau de veracidade e correção a uma interpretação?
Bem que a santa inquisição tentou. Acaba-se com a interpretação,
prende-se o inconsciente.
Vem corroborar a esta designação, a definição de "lacaniano"
como um estilo, ou seja, na versão milleriana, lacaniano é um
estilo que se pode generalizar e colocar ao lado do barroco e do
rococó. Nessa versão, todos os lacanianos pertencem ao mesmo
estilo, no sentido da estilística, indo no sentido da
homogeneização de uma mesma maneira de falar, de escrever, de
ler, pensar e, talvez, até de viver. Ora, para a psicanálise,
como Lacan
mostra na abertura de seus Escritos, o estilo de cada um não é
determinado pelo Outro ( a cultura, os ideais), e sim por aquilo
que cada um tem de mais particular e inimitável, o objeto a, que
é da ordem do pulsional. É também nesse texto que Lacan propõe
ao leitor uma leitura em que ele coloque algo de si, implicando,
portanto, em uma elaboração e articulações que lhes sejam próprias.
Hoje em dia, aquele que se quer o grande e único
intérprete utiliza sua prerrogativa de executor testamentário
para se impor como guardião-exegeta ao publicar, por exemplo, um
seminário de Lacan (como é seu dever) seguido, porém, de um
manual de leitura. Cada um colocaria então não algo de si, mas
seria repetidor d'Ele, o Um da leitura. O que também é
congruente com a idéia, evocada pelo entrevistador, de que
"diz-se" (mas, onde?) que o seminário de Miller é um
upgrade do seminário de Lacan, ou mesmo "Lacan versão 2.0".
Será que Lacan precisa ser elevado
a um grau superior, ou essa posição tende, ao contrário, a
degradá-lo?
O pior nos é entregue no final, onde podemos ler: "os
lacanianos são os únicos psicanalistas que ainda hoje são
reconhecidos como subversivos". A ironia é grande quando
essa palavras vêm da boca do Delegado Geral da Associação
Mundial de Psicanálise, atualmente uma das associações mais
retrógradas e mais totalitárias no mundo analítico: o próprio
Delegado Geral controla todas as Escolas determinando seus
dirigentes, nomeando quem é e quem não é analista, promovendo
expurgos sistemáticos daqueles que expressam alguma crítica ao
regime, ou não seguem exatamente as diretivas do comando ou
simplesmente se mantêm em um "silêncio suspeito". Lá
são os subversivos que são excluídos (de cargos, funções e
responsabilidades) ou coagidos. Por outro lado, definir assim os
lacanianos é desprezar os outros analistas de outras orientações
e de outras sociedades. É portanto um insulto aos Estados Gerais
da Psicanálise, que é uma iniciativa que subverte as fronteiras
institucionais do meio analítico. É ainda mais chocante essa
opinião logo na semana em que Helena Besserman Viana, famosa
analista da IPA, recebe em homenagem à sua subversão ao regime
militar ( à qual se acrescenta sua subversão à estrutura de
sua sociedade) a Medalha Chico Mendes de Resistência. E no mês
em que sai no Brasil o último livro de Elizabeth Roudinesco Por
que a psicanálise? onde a autora chama a atenção do grande público
para importância subversiva da psicanálise que vai contra a
tendência atual de reduzir o homem a uma máquina ou a um número
num manual de diagnóstico. Felizmente, enquanto uns aviltam a
psicanálise, outros a enobrecem, mantendo viva a subversão do
sujeito e a dialética do desejo.
Antonio Quinet
quinet@openlink.com.br
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