OS
ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE
Paris,
8 - 11 de julho de 2000
Tema:
A Clínica Psicanalítica
MELANCOLIA
E VERDADE
Identificação
imaginária com o objeto real
Enaide
Bezerra Barros
O
trabalho realiza a descrição estrutural - e portanto metapsicológica
- da melancolia em psicanálise. Determina como argumento
fundamental a definição de melancolia como identificação
imaginária com o objeto perdido real. Mostra a perda do
objeto como momento determinante da constituição do sujeito e
relaciona-o com a nodulação real-simbólico-imaginário,
privilegiando as funções do ideal e revelando sua gênese
pulsional. Demonstra que a determinação da melancolia como
neurose narcísica deve ser tomada em sua radicalidade e
precisão: fenômeno que funda uma maneira radical de
tamponamento da perda estrutural do objeto sobre a operação de
denegação enquanto origem da subjetivação, marcando um uso
narcísico sempre possível da falha inerente à metáfora
subjetiva, e um ponto onde o investimento narcísico se coloca a
serviço do império da pulsão de morte e da exacerbação do
gozo do Outro.
XXXXXX
--- XXXXXX
LES
ÉTATS GÉNÉRAUX DE LA PSYCHANALYSE
Paris,
du 8 au 11 juillet 2000
Thème:
La Clinique Psychanalytique
RESUMÉ
MÉLANCHOLIE
ET VERITÉ
Identification
imaginaire avec l'objet réel
Enaide
Bezerra Barros
Ce
travail effectue la description structurelle, et donc métapsycologique,
de la mélancholie en psychanalyse. Détermine comme l'argument
fondamental la définition de la mélancholie en tant qu'identification
imaginaire avec l'objet perdu réel. Démontre que la perte
de l'objet est un moment déterminant de la constitution du sujet
et la met en rapport avec le noeud réel-symbolique-imaginaire,
relevant les fonctions de l'idéal et sa genèse pulsionelle. Démontre
que la détermination de la mélancholie comme névrose
narcissique doit être prise dans sa radicalité et précision:
phénomène qui fonde une façon radicale de tamponnement de la
perte strucutrelle de l'objet sur l'opération de dénégation en
tant qu'origine de la subjectivation, et qui signale une
utilisation narcissique toujours possible de faille inérente à
la métaphore subjective, et aussi un point où l'investissemet
narcissique se met à service de l'empire de la pulsion de mort
et de l'exacerbation de la jouissance de l'Autre.
MELANCOLIA
E VERDADE
Identificação
imaginária com o objeto real
Enaide
Bezerra Barros
A
psicanálise tem nos ensinado a nos deparar com os enigmas, ao
mesmo tempo em que nos propõe a decifrá-los. Essa foi a postura
de Freud com a histeria quando, no fim do século XIX, nos aponta
nos sintomas histéricos aquilo onde a verdade, ao não poder ser
falada, é dita e revelada no sintoma. Com isso faz nascer a
psicanálise que, enquanto prática teórica constrói um saber
sobre o não sabido - o inconsciente - e que, enquanto prática
clínica tange a verdade sempre relativa e parcial do desejo,
escondido e metamorfoseado para aparecer, nem que seja à custa
do sintoma, ou a custa do próprio ser do sujeito, como por
exemplo, a melancolia.
A
melancolia é um sofrimento muito antigo, mas ainda nos aparece
como um dos enigmas e que contemporaneamente, somos convidados
enquanto psicanalistas, a nos confrontar cada vez mais, com situações
clínicas de maciça resistência das inibições, e a melancolia
é aquela em que essas situações nos aparece em sua
radicalidade, pelo esvaziamento da dimensão desejante que ao invés
da fala inerente ao desejo, nos apresenta uma paralisia, ou seja,
o desejo inibido. Inibição no sentido freudiano,
quer dizer, um registro diferente do sintoma. O melancólico,
portanto, não apresenta propriamente um sintoma, ele é o
próprio sintoma, e é neste plano do ser, que freqüentemente
paga um preço muito alto.
Concebemos
que os limites da clínica psicanalítica devem ser reconhecidos
e especificados em sua abordagem, para que nela seja reconhecida
uma legitimidade discursiva. Freud construiu portanto, um novo
saber, um novo discurso sobre as chamadas afecções psíquicas,
com uma
especificidade
de buscar suas estruturas. Não levaremos adiante sua obra se
estivermos remetidos às intensidades dos fenômenos para
determinar a qualidade ou tipologia da depressão, (como por
exemplo, considerar a melancolia como uma depressão profunda)
pois, esses debates se situam fora do discurso psicanalítico, e
derivam de uma tradição psiquiátrica. Esse foi o esforço
de Freud, e consideramos que essa seja uma exigência ética
sobre o nosso trabalho enquanto psicanalistas. É
assim que se nos apresenta a melancolia hoje, como algo que
requer construir uma rede teórica própria, para que esta clínica
possa reconhecer quais os limites e possibilidades de sua
abordagem.
Nos
textos freudianos a melancolia aparece inicialmente com uma certa
confusão etiológica em relação às neuroses, para
posteriormente classificá-la como uma neurose narcísica. É
nosso objetivo determinar a que campo pertence tal denominação,
e definir portanto os registros onde se inclui a definição
freudiana proposta em Luto e Melancolia (1917), quando
afirma: "a melancolia é uma identificação do eu com o
objeto perdido."
Tendo
essa definição como "leme" de nossas investigações,
tomamos essencialmente como referência as articulações
metapsicológicas de Freud e Lacan, que nos permitem elaborar o
conceito de melancolia como sendo o da identificação imaginária
com o objeto real. Reservamo-nos com isso a possibilidade de
não considerar a especificidade da melancolia como um diagnóstico
nosográfico, e sim de usar o privilégio que tem o discurso
psicanalítico quando busca encontrar a estrutura das chamadas
"afecções psíquicas". Vale dizer que estamos
considerando a melancolia como uma neurose narcísica, tal como
Freud a abordou a partir de 1924 quando diz:
"a
psicanálise nos autoriza a admitir que a melancolia é um caso
exemplar do grupo que poderemos dar o nome de psiconeuroses narcísicas
(narzisstische Psycho-neurosen) e temos bons motivos para separar
a melancolia das psicoses."
O
modelo do luto utilizado por Freud apresenta uma tonalidade
afetiva próxima da melancolia; mas na medida em que é
apresentado mais como um modo de "resolução" e um
mecanismo psíquico "normal", não nos permite
encontrar a especificidade e a compreensão da melancolia. A
questão se coloca pois, em estabelecer essas diferenças. O
sujeito no luto, com efeito, sabe o que ele perdeu; o melancólico
não sabe mas, paradoxalmente, é sabedor de um esclarecimento
que se pretende muito próximo de uma verdade (que não pode ser
sabida). Mas, como se pergunta Freud,
"...
ele dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que
outras pessoas que não são melancólicas. ... pode ser, até
onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si
mesmo; ficamos imaginando, tão somente, porque um homem precisa
adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie."
"Por
que é que se precisa adoecer para saber dessa verdade?"
Pergunta instigante e que opera um impacto tal, que o seu efeito
é: resposta alguma.
Esse
efeito de paralisação, de nadificação, demonstra que Freud já
está no campo e no terreno próprio da melancolia, onde o nada
assume o lugar do tudo, reservando ao sujeito melancólico a
absorção de um lugar impossível de ser habitado entre os
humanos. Pois a dimensão do humano é caracterizada pelo
conflito psíquico, gerador de dúvida, isto é, daquilo que
divide o sujeito e o coloca como desejante. É por isso que a
morte o habita, por ele ser cúmplice da morte do desejo, que é
a morte do sujeito e, às vezes, a morte do ser de forma radical.
Parece que encontra a verdade ultima da aparência das coisas e o
suicídio é o encontro ultimo com a verdade da morte - "não
resta mais nada".
A
natureza da "anestesia sexual" parece demonstrar que
nenhum objeto caiu na preferencia do sujeito melancólico; o nada
então se encontra afirmado absolutamente, erigido em um conceito
positivo, na medida em que é com o nada que o sujeito se
apresenta identificado. É como se ele nos dissesse: "eis-me
aqui - o Nada".
É
essa falta de referências identificatórias, que a nosso
entender, expressa a definição freudiana de "identificação
do Eu com o objeto perdido". Ao mesmo tempo, esta falta de
referência indica a tentativa imaginária de obtenção de uma
referência máxima, uma referência identificatória que fosse
à toda prova, absoluta, em resumo: que a identidade do sujeito
fosse a Verdade. Estamos afirmando que é precisamente nessa
identificação com o objeto perdido que figura o resto, "o
que resta" de uma operação falhada. Precisamos não
obstante indagar qual é a natureza dessa falha, na medida em que
ela pode ser a própria falta psicótica de um significante
forcluído, ou que, ao contrário, pode ser um recobrimento da
falha inerente à própria estrutura psíquica - a castração.
Não
se encontrar inscrito em uma relação de desejo é não se
encontrar marcado da marca do impossível mas necessário e, é não
se encontrar destinado à dependência obrigatória da relação
ao Outro que faz, de um sujeito, testemunho de sua incompletude.
Dito de outra maneira, é ainda enquanto um sujeito absoluto de
uma lógica exclusiva - única testemunha de uma verdade mortífera
- que o sujeito é impelido a "agir" o nada que o
define, um discurso formal destinado a demonstrar a positividade
de sua existência negativa - tal é a natureza desse nada.
Os
ensinamentos de Lacan revelam que o nada se situaria por detrás
das coisas e só poderia dali sair depois que elas tenham sido
todas eliminadas, de tal maneira que se pode dizer: "não
resta mais nada". Fazer desaparecer tudo que não seja o
nada para que se pudesse chegar por fim ao nada, consiste em
tratar de eliminar o nada para encontrar o nada. Torna-se pois
uma lógica sem fim.
A
operação melancólica da reduz os objetos mundanos a nada. Mas
como é o espaço do gozo para o melancólico que é justo
assinalado por aquilo que se encontra investido no campo do Outro?
Sabemos
que o gozo desliza no desejo, cuja definição é ignorar o que o
mobiliza; ele surge em seguida à dialética do desejo e da
demanda no interior da cadeia significante, oficializando a
inadequação absoluta entre um gozo indizível e uma demanda
condenada a se deslocar indefinidamente. Onde se situa o sujeito
melancólico em relação ao Outro e que, mais comumente,
condiciona as possibilidades de investimento do sujeito?
O
sujeito melancólico não demanda nada pois está inteiramente
rendido à sua inibição e quando demanda a outro sua demanda
parece atravessar o Outro. Nos dois casos, o desejo está ausente,
cortado por um gozo que não se rendeu aos avatares do
significante. "Não é pois da dialética demanda-desejo que
se trata para o sujeito melancólico, mas da passagem do gozo ao
desejo, estando entendido que essa passagem nada tem a ver com
uma transcrição. A inibição impera com tal ordem, que o
impulso parece ter desaparecido no melancólico que "não
deseja mais nada" e demanda menos ainda; só persiste, ousaríamos
dizer, o gozo que reforça a marginalidade da posição do
sujeito".
A
angústia é dificilmente expressa na melancolia, por
disfarçar-se na inibição generalizada. Em Inibição,
Sintoma e Angústia Freud nos falar de uma economia que
sidera, fixa, e tem como efeito a inibição generalizada, num
mecanismo onde o Eu paradoxalmente é econômico e perdulário.
Inibe para reduzir a perda (dispêndio) do já perdeu.
"Quando
o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente
difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda
supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias
sexuais tem que ser mantido sob controle, ele perde uma
quantidade tão grande de energia a sua disposição que tem de
reduzir o dispêndio da mesma em muitos pontos ao mesmo tempo.
(...) Temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível
chegar a uma compreensão da condição de inibição geral que
carateriza os estados de depressão, inclusive a mais grave de
suas formas, a melancolia". [o grifo é nosso]
Quando
se fala de uma perda de objeto para o sujeito melancólico, trata-se
de uma perda original do desejo - a perda da função de causa do
desejo e do correspondente objeto pulsional. Isso já deixa
entrever uma economia particular do objeto e um objeto particular
determinado na melancolia.
Em
face do que dissemos até aqui, podemos concluir que no sujeito
melancólico há um real que escapou à simbolização, mas isso
não autoriza incluir a melancolia no registro das psicoses, nem
dizer que o melancólico estaria fora do simbólico e fora da
identificação a um significante primordial que insere o sujeito
na cadeia significante e condiciona sua existência à relação
com o Outro. Lacan em seu Seminário VIII nos refere:
"O
melancólico diz que é o último dos últimos, que acarreta catástrofes
par a toda sua parentela, etc. Em suas auto-acusações, ele está
inteiramente no domínio do simbólico. Acrescentem aí o Ter:
ele está arruinado".
Queremos
assim afirmar que no sujeito melancólico o nó borromeano
encontra-se nodulado e que seus recursos imaginários vastos e
infinitos em sua monotonia, são determinados exatamente por sua
identificação. Volto a insistir que a neurose narcísica
ou melancolia, é uma identificação imaginária com o objeto
real. Essas afirmações nos autorizam dizer que o
sujeito melancólico mantém uma relação com a castração,
relação essa que é ausente na forclusão psicótica.
Sabemos
com Lacan, que a maneira como se nodula os três registros (Real,
Simbólico e Imaginário) depende da simbolização primordial,
da organização especular e da atitude do sujeito diante da
castração.
O
artigo de Freud A Denegação (Die Verneinung) vai
nos ajudar a esclarecer a questão. Dando seguimento à segunda
teoria das pulsões, em referência principalmente ao Além do
Princípio do Prazer, Freud nos fala sobre a função de
unificação de Eros - a afirmação do que produz prazer - e
sobre a função de dissociação da pulsão de morte - a expulsão
para fora do eu do que é estranho e mau, portanto daquilo que se
opõe ao prazer. A afirmação, aparece nesse artigo, como
substituto da união (als Erzatz der Vereinigung), e a
negação como sucessor da expulsão (Nachfolge der
Ausstossung), e relaciona a primeira com a pulsão de vida e
a segunda com pulsão de morte. Nesse estado primitivo de
organização psíquica, a expulsão não equivale ainda ao símbolo
da negação.
"A
afirmação - como substituto da união - pertence a Eros; a negação
- o sucessor da expulsão - pertence à pulsão de destruição.
(...) O desempenho da função do julgamento contudo não se
tornou possível até que a criação do símbolo da negação
dotou o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências
da repressão, e, com isso, da compulsão do princípio do prazer."
Temos
que entender o negativismo da melancolia para não confundi-lo
"com o que é apresentado por alguns psicóticos". Se o
sujeito melancólico se identifica ao nada, se ele se considera
arruinado, quer dizer que a afirmação (Bejahung) anterior
logicamente à negação e que permite fazer surgir o sujeito,
"libertando o pensamento da compulsão do princípio do
prazer" difere o sujeito melancólico do psicótico, para o
qual a Verwerfung (forclusão) se opõe à afirmação
primordial e faz como se nada jamais tenha existido.
Mas
é justo as funções do julgamento que confirmam a neurose narcísica
da melancolia. A clínica nos demonstra que apesar do negativismo,
"a realidade, para o sujeito melancólico, não está
nulamente colocada em causa enquanto sua existência (juízo de
existência) mas no interesse que ela possa lhe oferecer. É pois
a relação que o sujeito possa manter com ela que está denegada,
desmentida (em Verneinung). Isso nos faz manter a operação
de denegação para caracterizar a posição do sujeito melancólico
no confronto com a realidade. O sujeito, mais do que utilizar a
negação-símbolo em seu discurso, ilustra concretamente por sua
atitude negativista um reconhecimento de si mesmo que é ao mesmo
tempo um isolamento da realidade. A formação do símbolo
e o automatismo da expulsão ficaram intimamente associados a um
modo de expressão específica do sujeito melancólico".
Na
relação com o juízo de atribuição e de existência, o
sujeito melancólico teria julgado, de uma vez por todas, que as
coisas não valem a pena que ele se interesse por elas - sem
negar entretanto que elas existam. É este lugar imaginário e
excepcional, reservado para o sujeito, que revela finalmente o
aspecto narcísico e libidinal de toda a operação melancólica
de denegação. A negação se refere à questão do ser às
custas da relação com a "Coisa", através dos
julgamentos de existência e de atribuição. Lembremos Freud:
"
Agora não se trata mais de uma questão de saber se aquilo que
foi percebido (Das Ding - a Coisa) será ou não integrado
ao ego, mas de saber se algo que está no ego como representação
pode ser redescoberto também na percepção. A experiência
demonstrou ao indivíduo que não só é importante saber se uma
coisa -Das Ding - ( um objeto de satisfação
para ele) possua um atributo 'bom', assim merecendo ser
integrada ao seu ego, mas também de saber que ela esteja no
mundo externo, de modo que ele possa se apossar dela sempre que
dela necessitar. .A fim de entender esse passo à frente, temos
de relembrar que todas as representações se originam de percepções
e são repetições dessas. "
Tendo
julgado "de uma vez por todas", o sujeito melancólico
renuncia a encontrar na realidade a Coisa (Das Ding) da
qual ele teria a representação e que corresponderia segundo
Freud a uma percepção originária - mas coloca-se
imaginariamente no lugar dessa Coisa e toma isso como uma
demonstração de sua existência positiva.
O
melancólico é portanto vítima de um desvio do julgamento em
prol de um imaginário que comanda a sua identificação. A dialética
pulsão de vida - pulsão de morte, gozo fálico - gozo do Outro
se encontra abolida na melancolia, e isso, de maneira diversa da
forclusão psicótica. Do ponto de vista simbólico, é a própria
organização do Eu e da realidade exterior a partir dos juízos
de afirmação e de existência que possibilita a operação
melancólica de identificação imaginária. Mas isso só tem a
força e só dispõe da intensidade de adesão libidinal que se
constata na clínica psicanalítica da melancolia, na medida em
que há um reforço da nodulação simbólico-imaginário-real.
À denegação como operador simbólico de inserção na cadeia
significante responde um resto de gozo resistente à significação:
tal resto configura um objeto. É o objeto a na sua
vertente real. Claro está que esta configuração de objeto
escapa à descrição totalizante: é em cada caso, é, como
vimos, no nó estrutural específico da fantasia fundamental que
o sujeito aparece em posição de objeto e porta daí o real.
Mas
sabemos que a fantasia aparece como uma resposta à injunção
desejante do Outro, injunção essa que Lacan expressou no Che
Vuoi?, mostrando que sua posição corresponde à denegação
da castração do Outro - e portanto esconde a angústia. A
denegação específica do melancólico se expressa na fórmula:
o Outro nada deseja, pois o único objeto digno de ser desejado não
existe - e sou Eu, esse nada.
Isso
deve e pode ser descrito do ponto de vista econômico. Vimos que,
em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud unificou o dispêndio
do Eu com a sua parcimônia de investimento objetal. O trabalho
psíquico excessivo de que falava então é a confrontação com
a falta significante no seio do Outro. Quando a totalidade da
libido é convertida em libido narcísica e é chamada a tamponar
esta hiância, configura-se então uma situação de compromisso
que atende a diversas exigências contraditórias: mantém-se a
onipotência imaginária do Eu, que acede, indiviso, ao Ser,
ainda que sendo um resto, um dejeto; abre-se o livre caminho para
a destrutividade e para o sadismo, via Supereu - que veicula não
apenas os componentes sexuais da pulsão, mas também o próprio
gozo pulsional enquanto gozo do Outro, ou seja, enquanto império
da pulsão de morte. Abolem-se duas paixões fundamentais da
existência, o amor e a ignorância: o sujeito não apenas não
deseja mais nada, não tendo portanto porque amar alguém, como
sabe efetivamente a verdade sobre o desejo - e essa verdade é a
morte. Pois a paixão que o melancólico sustenta, a única que
se mantém - voltada para o Eu ou para os objetos - é o ódio.
Qual
seria a configuração específica que faz com que essa
possibilidade estrutural passe a ser opção de investimento de
um sujeito? Esta é a questão que insiste. Insiste na medida em
que escapa à descrição puramente metapsicológica. Insiste na
medida em que exige a psicanálise não só de um paciente, mas
daquilo que, nos pacientes, é a psicanálise do tempo presente.
A sociedade moderna já foi descrita como narcísica: talvez
nossa interrogação final convide a assumir essa fórmula em
toda a sua radicalidade e no apontamento ético. Pois é
precisamente esse círculo vicioso da neurose narcísica que é
preciso quebrar. E, se essa quebra é exigida na forma de uma
questão, isso procura responder não somente ao lugar estrutural
da fantasia - que é a tentativa de encerramento de todas as
questões - mas também àquela que tem de ser a paixão do
analista sempre e, em especial, no tratamento da melancolia - a
paixão da ignorância - doutamente assumida.
A
melancolia é a identificação imaginária com o objeto real
porque esse objeto como pura exterioridade sempre está à
disposição de um super-investimento narcísico, um investimento
que funciona como uma "hemorragia libidinal" que
converte toda a libido em libido do Eu, reforçando a onipotência
do único modo sempre resistente: a do dejeto, do resto. Mas
nossa definição exige a determinação simbólica dessa definição,
centrada nas dimensões do imaginário e do real: eis que o
operador simbólico que funda a melancolia é a denegação, a
dissimetria entre a afirmação primordial e a ruptura que a pulsão
de morte não cessa de tentar inscrever.
A
melancolia interroga a psicanálise desde a origem, obriga a
Freud uma tomada de posição frente à medicina, frente aos
preconceitos que compartilhava com seu tempo, obriga-o ao
trabalho duro de elaboração conceitual a partir da prática clínica
que seja guiada pela realidade do inconsciente. O conceito se
depura, se aperfeiçoa. A chegada na definição da neurose narcísica,
a fórmula da sombra do objeto perdido caindo sobre o Eu., ponto
de inflexão da teoria psicanalítica, inflexão cujos riscos
assombram até hoje uma certa maneira de encarar a atividade
psicanalítica. O Eu brota da psicanálise como objeto de amor,
como sede dos investimentos libidinais narcísicos e objetais,
porém irremediavelmente fraturado, cindido, sempre em Spaltung,
sempre em busca de uma restauração que condena o homem ao império
do Ideal - este também cindido, portador da diferença em estado
puro, instaurando os avatares mesmo da temporalidade subjetiva,
colorindo os significantes nus que são a frágil âncora
do sujeito na ex-sistência. E irremediavelmente ligado à
assombrosa figura do Supereu, ao representante da cultura que
dissolve mais uma oposição da tradição do pensamento
ocidental: a distinção entre o individual e o social. É o que
nos faz pensar como o encontro estrutural de Édipo com
Narcisismo.
Mas
o Eu revela-se também como mais um dos objetos para esse sujeito
que o inconsciente obriga a supor nas articulações
significantes. O objeto se desdobra a partir do conceito
fundamental de pulsão, desse conceito cuja posição na economia
discursiva é de fronteira e que importa na subversão de
qualquer natureza humana determinada de uma vez por todas. O
objeto da pulsão, parcial, vazado, virtual subjaz entretanto ao
objeto de amor e a todos os seus engodos. No limite, o
deslizamento sempre infindável da metonímia desejante constrói
o mito da superposição perfeita entre impulso, desejo e amor.
Mas o que sustenta esse mito é, a mesma operação formal
que cria o Eu em torno de uma hiância. O objeto é inseparável
dos modos da falta. Castração, privação e frustração
circunscrevem seus avatares e determinam as vertentes simbólica
imaginária e real do objeto - que podemos agora assinalar pela
letra a, lembrando que sua inserção se faz através da
estrutura significante. O objeto humano porta as marcas da
mortificação das coisas na linguagem, existe em exterioridade
ao ser.
Isso
é o que sustenta a nossa proposta: a melancolia é a
identificação imaginária com o objeto real.
Porque esse objeto como pura exterioridade sempre está à
disposição de um super-investimento narcísico, um investimento
que funciona como uma "hemorragia libidinal" que
converte toda a libido em libido do Eu, reforçando a onipotência
do único modo sempre resistente: a do dejeto, do resto. Mas
nosso fundamento exige uma determinação simbólica centrada nas
dimensões do imaginário e do real.
Enaide
Bezerra Barros
![]() |
Clique aqui para voltar à página dos Estados Gerais da Psicanálise de São Paulo |
http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm |