Eles gostam de apanhar

Por Maria Rita Kehl

Artigo publicado na Revista da Folha do jornal Folha de SP em 14.03.99

O que mais me intriga é esse apelido: por que Tiazinha? No entanto, ele parece cair como uma luva na moça que faz o gênero "sadismo-light" para adolescentes no programa H, de Luciano Huck. Pode ser puro efeito da repetição; a TV tem um poder tão grande sobre nosso imaginário que, se da noite para o dia resolvessem rebatizar Jesus Cristo, uma semana depois já estaríamos perfeitamente adaptados ao "fato".

Antigamente, tia era parente. Irmã da mãe ou do pai. Uma tia assim jovem pode representar uma promessa de iniciação sexual para muitos adolescentes, brindada com uma certa dose de incesto consentido. Ué: tia pode? Pode. Não sendo mãe ou irmã (muito menos filha, claro!, mas estou me referindo a adolescentes), pode parecer meio esquisito, mas não é proibido.

A tia então, no caso, se mascara para esconder o excesso de familiaridade e usa o chicotinho corretivo, carinhosamente (coisa de brasileiro? até o sadomasoquismo aqui tem que ser com "jeitinho"?), para melhor instruir o sobrinho nas artes eróticas nas quais ela, também jovem -e mascarada!- não deixa claro até que ponto é experiente.

Só que, de uns 20 anos para cá, "tia" também virou o apelido genérico das professoras primárias. Nem tão impessoal quanto "fessora" nem tão respeitoso quanto Édona Fulana", pretendia-se que, chamando a professora de tia, a criança recém-chegada à escola se sentisse num ambiente familiar. Deve ter alguma relação com o "boom" das pré-escolas para a classe média no Brasil. Só que agora as professoras vão ter que inventar outro apelido.

Essa Tiazinha sexy também ensina. E pune. Sabatina os adolescentes e castiga os mais ignorantes com sessões de microdepilação nas canelas; o chicote, usa muito de leve. Não é de nada, essa Tia. Ainda bem. Quem quer humilhação e pancadaria pra valer? Mesmo assim a cena serve para nos fazer ver que os homens, às portas do ano 2000, também podem gostar de apanhar.

Se alguém me perguntar "onde é que nós vamos parar" com tantas alusões sexuais, inclusive perversas na televisão, fico confusa. Não sei se a sociedade brasileira vai virar uma grande Sodoma ou se, finalmente, vamos encarar o sexo, sem falsa moral, como ele deve ser entre pessoas livres: uma grande e feliz brincadeira.

Pena que Suzana Alves, a Tiazinha, seja evangélica.

Maria Rita Kehl, 46, é psicanalista, poeta e ensaísta, autora de "A Mínima Diferença" (Imago) e "Processos Primários" (Estação Liberdade).


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