Tema:
A Relação da Psicanálise com a Arte, a Literatura, a Filosofia
A
Psicanálise e a Estética do Dizer Inconsciente
Maria
Inês França
O trabalho situa a psicanálise referida à dimensão
social de um campo de significações como uma estética do dizer
inconsciente. Uma definição que valoriza a teoria freudiana das
pulsões e a experiência analítica como espaço criativo através
do primado da estética, tornando "o belo efeito exemplar da
estética do desejo", efeito causador do desejo. A função
do belo perturba a estrutura desejante diante do enigmático e
inacessível "Bem" e, desta forma, remete a uma experiência
de indeterminação que representa, no campo do Outro, o
traumático que constitui o sujeito. Aceitando um princípio de
negatividade em relação a um defeito estrutural do discurso, o
texto revela a estética como uma experiência de fragmentação
acompanhada de uma estranheza inquietante, espaço que aprisiona
e que também liberta para uma outra dimensão: a do acontecer psíquico
na qual a criatividade se realiza como ato e símbolo.
-o-o-o-o-o-o-o-o-
Paris,
du 8 au 11 juillet 2000
Thème:
Le Rapport de la Psychnalyse à l'Art, à la Littérature, à la
Philosophie
RESUMÉ
LA
PSYCHANALYSE ET L'ESTHÉTIQUE DE LE DIRE INCONSCIENT
Maria
Inês França
Le
travail place la psychanalyse en rapport à la dimension sociale
d'un champ de significations comme une esthétique de le dire
inconscient. Une définition qui met en valeur la théorie
freudienne des pulsions et l'experience analytique comme espace
criatif à travers du primat de l'esthétique, en faisant "le
beau effet exemplaire de l'esthétique du désir"2,
effet qui cause le désir. La fonction du beau trouble la
structure désirante en face de l'énigmatique et de inaccessible
"Bien", et, de cette façon, remet a une expérience d'indétermination
qui represente, dans le champ de l'Autre, le traumatique qui
constitue le sujet. En acceptant un principe de négativité en
rapport à un défaut structurel du discours, le texte présente
l'esthétique comme une "expérience de fragmentation"
acompagnée d'une inquiétante étrangeté, espace qu'aprisionne
et que liberte aussi pour une autre dimension: a de "l'occurrence
psychique", dans laquelle la criativité se réalise comme
acte et symbol.
Psicanálise
e a estética do dizer inconsciente
Maria
Inês França
É
a expressão literária e a poesia que mostram, de forma exemplar,
a face transgressora e rebelde do belo, de onde jorra o seu fascínio.
O belo, como o poema, não visa nem descreve objeto algum; sua
função é deixar o desejo desvelado e a palavra nua no mesmo
instante em que isso causa a infinita possibilidade de suas
vestes.
Este
valor transgressor do belo se torna um paradoxo para Freud,
quando em sua referência a estética no texto sobre o "Mal-Estar
na Civilização", diz que o belo é inútil, porém
indispensável à cultura. A inutilidade do belo indica que ele
suporta mal, no nosso mundo de civilização "eficiente",
valores tais como os da clareza, da utilidade, ou as mensagens de
cunho pragmático, e, por outro lado, aponta o indispensável da
dimensão poética para a cultura. É a criação poética que
nos permite a ênfase na forma expressiva de dizer referida à lógica
do inconsciente.
O
tema da estética aparece no discurso freudiano suscitado pelo
impasse do familiar igual ao não familiar, ao qual ele dedica um
texto, "Das Unheimliche", em 1919. No
entanto, a dimensão estética freudiana está praticamente
presente em todos os seus trabalhos, seja colocando os dizeres
mais diversos de poetas, sendo o preferido Goethe, seja
explicitamente dedicando artigos a mestres da arte, como Leonardo
da Vinci e Michelângelo, ou, ainda, da literatura, como
Shakespeare e Dostoievsky. Ao lançar mão dos poetas é como se
Freud pressentisse que só a poesia suportaria o alcance
transgressivo de suas idéias, pois só a palavra poética
poderia carregar os desdobramentos possíveis contidos na riqueza
não-dita dos seus ditos, ou seja, só a dimensão estética da
palavra freudiana manteria seus leitores "en souffrance".
Não é à toa que Freud recebe o Prêmio Goethe de literatura,
pois seu estilo literário é uma "assinatura" original
que se torna "causa de desejo" para outros
sujeitos e de onde jorra o evento psicanalítico. Entendemos que
a palavra freudiana porta o "belo causa de desejo" como
um brilho que revela um duplo aspecto: ao pretender o fechamento
da incompletude do ser ele opera uma abertura para a confrontação
com a destruição do ser e, portanto, uma referência ao não-sentido.
É a linguagem poética que nos mostra esta abertura e esta
duplicidade, porque nela a palavra desvela e oculta ao mesmo
tempo. Quando a palavra tem este potencial de movimento, revela-se
a estética do desejo.
Por
esta via, a estética em psicanálise se aproxima da arte, pois
desde seu fundamento, o saber psicanalítico, provocado pela
produção histérica, se colocou nos limites do não-sentido.
Assim, não é permitida, nem ao psicanalista, nem ao artista,
qualquer forma de burocratização, pois ela cortaria a
possibilidade de presentificação de um radical desconhecimento
e, portanto, aboliria a referência ao ato criativo. Desse modo,
o efeito produzido na arte e na práxis psicanalítica é similar
no sentido de não garantir a produção de um novo efeito. Ou
seja, a obra criada é um efeito transitório, instantâneo, na
medida em que o efeito é causado pelos tropeços no real, em uma
origem perfeitamente desconhecida. Isto remete à dimensão estética
da verdade, a partir da indicação do vazio, do real irredutível
e que presentifica o "belo causa de desejo", enquanto
brilho que revela, de acordo com Badiou, "que a verdade
trabalha na retroação de um quase-nada e na antecipação de um
quase-tudo", o que significa um ponto de tropeço absoluto,
ponto inomeável pelo fato de não poder ser encontrado na ordem
da linguagem. Para Badiou, só
o
amor pelo inomeável é que permite sem desastre o amor pela
verdade em seu real. Neste sentido, a dimensão estética da
verdade é brilho, é clarão e não clareza, implicando em um
exercício rebelde e angustiante para a estrutura conflituada do
sujeito.
A
psicanálise mostra seu pensamento transgressivo ao apresentar o
sujeito do desejo, cuja verdade é sempre parcial, e ao operar
trazendo para o centro do seu discurso o conceito de inconsciente
e de pulsão e, ainda, ao apresentar sua fecunda forma
argumentativa em torno de um sujeito desejante na sua relação
com o real e com o objeto causa de desejo.
A
ruptura promovida pela psicanálise enquanto saber nos permite,
assim, perguntar em que ela e a estética mantêm uma relação
de afinidade.
Esta
afinidade se coloca diante da interrogação do tema do sujeito
do desejo e da questão central da linguagem, remetendo a uma
"experiência estética" como uma experiência de
fragmentação, e não uma experiência totalizante do belo harmônico.
A psicanálise, em sua perspectiva de uma estética do desejo e
do dizer inconsciente, marca a constituição do sujeito fundada
nas pulsões e nos seus destinos, registrada pelo testemunho da
angústia, pois se trata de uma constituição fundamentada na
perda e na separação, cujos jogos de dor, que daí decorrem,
colocam o sujeito diante de um desamparo que é estrutural.
Sobre
este desamparo Vital Brazil apresenta o enfoque do sujeito na
modernidade, enquanto aquele que se reconhece como "função
obediente" de uma estrutura ordenadora mais ampla e complexa,
que passa a "fazer por ele o seu pensar e agir". O que
se coloca é um sujeito fraturado e em desordem diante de um
mundo auto-determinado e indiferente aos projetos dos próprios
sujeitos. Neste sentido, o "modernismo" se apresenta
como uma competição entre o "novo" cosmopolita e sem
raiz e o "velho" das tradições provincianas e
antigas,
algo como uma confusão de uma "super-estrutura"
racional e globalizante com o mais "primitivo" dos
sujeitos.
Sobre
o sujeito na modernidade e sobre as afinidades entre psicanálise
e estética, Eagleton comenta a visão de Benjamin e sua concepção
de linguagem: "na visão de Benjamin, a humanidade decaiu do
estado de felicidade para o instrumentalismo degradado da
linguagem; e a linguagem, esvaziada de seus recursos expressivos
e miméticos, reduziu-se à situação reificada do signo
saussuriano. O significante alegórico é a terrível testemunha
de nossa luta de após a queda, na qual não possuímos mais
espontaneamente o objeto, mas somos forçados a fazer o caminho
complicado e tateante de um signo a outro, buscando a significação
entre os fragmentos de uma totalidade perdida".
Benjamin,
na sua abordagem, toma a via oposta da reflexão moderna da
teoria da linguagem e se dirige às concepções míticas, no
sentido de refletir a partir do mito para demarcar a sua
compreensão filosófica. É uma posição que se opõe a todo o
tratamento dado à linguagem na época de Benjamin. Para ele é
um paradoxo pedir que a linguagem e a escrita incitem à ação,
pois a linguagem já é uma ação. Ela não serve aos objetivos
nobres, ela é um ato, "um debruçar-se da linguagem sobre
si própria".
A
filosofia, para Benjamin, teria de abrigar idéias díspares -
sim e não - abrigar a convivência das diferenças na idéia. Em
Freud, a espirituosidade do chiste se afina com o pensamento de
Benjamin no sentido de um conhecimento imediato, pois a palavra
adquire seu valor pleno. Assim, como o chiste, a palavra poética
reivindica encontros-surpresa, inesperados, achados. Benjamin
concebe o ser como expressão constante e, portanto, tudo é
linguagem. Desse modo, a expressão não se manifesta pela
linguagem, ela está na linguagem. Isto permite dar ênfase à
multiplicidade das diferenças e dos estranhamentos
dos
vários níveis discursivos. Trata-se de evidenciar o aspecto
fragmentário, a estranheza própria da língua, ou, ainda, trata-se
de mostrar a língua se revelando como estranheza fundamental.
A
concepção de linguagem em Benjamin se articula à nossa concepção
sobre a estética do desejo, justo pelo viés do estranhamento
que vem da experiência inexorável entre o dito e o que se quer
dizer. Este espaço construtor de novas constelações de idéias
poria em cena o caráter de fracasso da unidade e enfatizaria o
fragmentário, uma estética cuja perspectiva para a psicanálise
se vincula à idéia de subverter a pretensão de reunir o belo
à harmonia, à totalidade e à aparência. A estética do desejo,
que lemos implícita no pensamento freudiano, é uma negatividade,
pois a dimensão da felicidade e da plenitude está fora da criação.
Neste sentido, não há pensamento idealista que se sustente; o
estranho habita em nós, não há como suprimi-lo.
A
linguagem concebida, assim, de forma mais ampla, assume o lugar
de condição das representações. A partir da segunda tópica
freudiana, o transbordamento pulsional é uma forma de
ultrapassagem do registro da representabilidade e é irredutível
ao campo da simbolização. A idéia de estrutura psíquica passa,
então, a conceber, além da ordem da inscrição, impressões
sem sentido que não se encontram no espaço psíquico da circulação
dos significados. São impressões que não passaram por uma
codificação da linguagem. É dessa forma que o Isso, polo
pulsional e lugar psíquico, ultrapassa o registro ordenado do
inconsciente, permitindo a inclusão na realidade psíquica das
impressões angustiantes dos "vazios de inscrição",
ou seja, daquilo que se encontra marcado como trauma e que não
foi inscrito e, ainda, que tem expressividade no discurso:
impressão-expressão do dizer inconsciente.
Em
1900, Freud apresenta o sistema de expressão que o sonho
constitui. A isso ele nomeou de "consideração à
figurabilidade" (Rücksicht auf Darstellarbeit). São
pensamentos representados em imagens e que figuram no sonho como
elementos significativos. A sobredeterminação do fato psíquico
em um "outro cenário" valoriza a presença das
possibilidades dadas da representabilidade na "apresentação"
(Darstellung). A expressão se refere à noção freudiana
de Darstellung como as apresentações que nos remetem às
impressões da exigência estrutural do sujeito.
A
expressão, como o que se apresenta em um fora-do-discurso,
representa o que há de enigmático no dizer, enfatizando o
caráter polissêmico da palavra, que no contexto da descoberta
interpretativa do para-além-do-enunciado vai nos referir à
transgressão das regras do código lingüístico. É o como-dizer
que enfatiza a diferença entre o sujeito interpretante e o eu
fenomênico, pois ao marcar, através da forma, que o que se diz
é sempre mais do que se quer dizer, solicita o lançamento do
sujeito em um contexto de dizeres significativos.
É
a expressão que permite entre-ver no enunciado o impacto da
impressão afetiva, angústia que é lugar-testemunha da verdade
parcial do desejo. É a impressão da angústia como afeto indizível
e indeterminado que carrega a verdade do não-realizado, como ruído
implicado no determinismo de uma estrutura ausente, ruído que
ecoa expressivamente, na estrutura e na rede significante, a dinâmica
da finitude diante da insistência pulsional.
Desse
modo, a estética encontra sua afinidade com a psicanálise na
estrutura afetiva, não só na expressão e na forma de dizer no
discurso, mas no sentido fundante de um sujeito fraturado e
incompleto, pois a verdade da dimensão estética em psicanálise
é a revelação de um corpo inserido traumaticamente na
linguagem.
A
dimensão estética revela as impressões (Einchücken) do
que é indizível no plano da consciência e que apresenta o
contexto da linguagem para além da ordem, pois se abre para o
discurso fragmentado e descontínuo, para a produção dos
efeitos do belo que se situam entre percepção angustiante e
fantasia. É um "instante Unheimliche", de angústia
inquietante e estranheza que revela o que habita nos sujeitos
desejantes como impossível de suprimir, que repete e insiste e
que se manifesta diante do desmoronamento-surpresa de tudo o que
é especular. Este movimento intenso demonstra o desejo em
permanente deslocamento, sempre referido ao desejo de outra coisa.
Assim,
o poder da impressão-expressão do dizer inconsciente é o poder
de momentaneamente subverter o pensar e que, ao circular na
transferência traz a revelação da inserção traumática do
corpo na linguagem. A transferência é, neste sentido, a Darstellung
deste corpo que transborda em expressão e nos coloca a questão
de como pensar nossa prática associada a esta expressividade que
é impressão de uma imagem-ação, impressão da mobilidade
pulsional que é atravessada por imagens e que carrega as
possibilidades polimorfas da imagem: fragmentar, deslocar,
condensar e deformar o já organizado. É esta experiência de
fragmentação na transferência que apresenta o contexto da pulsão.
Isto quer
dizer
que a pulsão não tem imagem, porém sua atividade acontece
através das imagens, o que remete ao fora do discurso como lugar
de intensidades indeterminadas que constantemente buscam expressão,
exigindo um trabalho psíquico referido à alteridade.
Desde
Freud, apreciamos uma "lógica" estética em seu
pensamento, pois suas idéias sobre o prazer, o sonho, o mito, os
símbolos e as fantasias estão implicadas na elaboração do
conceito de inconsciente, cujo trabalho de condensação e
deslocamento de imagens se produz em uma estrutura falha, que
apresenta o sujeito humano como fissurado e incompleto. É neste
sentido que o corpo nunca estará à vontade dentro da linguagem,
devido à sua inserção traumática e, dessa forma, a cultura e
o sujeito do desejo se encontram e se desencontram sempre em um
contexto de conflito. Há um permanente estranhamento, que
promove uma movimentação intensa no psiquismo, o qual,
diante da insuficiência de elaboração pela linguagem,
experimenta um confusionamento, um transbordamento da pulsão no
plano do eu. O estranho que se mostra se refere ao desejo
desconhecido, a algo radicalmente novo e imprevisível e que
apresenta a quebra narcísica do estranho encontro do "Isso
no Eu".
A
experiência analítica revela o prazer estético ao colocar a
direção da cura numa relação com o destino da sublimação e
a destituição narcísica. Neste sentido, uma análise é terminável
quando no lugar da demanda de felicidade se coloca uma "visada"
do belo, "visada" erótica que faz laço social.
Esse
esplendor que incita o desejo é o que expressa e revela
eroticamente a impressão de engodo na apreensão da beleza. O
erotismo que brilha é destacado do objeto, pois aí não há
objeto apreendido. De fato, o prazer estético para a análise é
o brilho da verdade com o qual analista e analisando se
comprometem durante o processo ao se interpretar o engano que
existe na demanda. O brilho do belo, enquanto guardião delicado
do desejo na cultura, é esta "visada" estranha e
fascinante, que desvela o engano e revela a verdade parcial que
concerne ao desejo, demonstrando o saber que não se sabe. Assim,
a partir de um desamparo primordial, enquanto efeito fundante do
sujeito diante da radical inadequação entre corpo e símbolo,
é que chegamos à dimensão estética para a psicanálise, onde
a liberdade estética de recriar o saber se dá a partir de um
penetrar no universo de dizeres significativos, de emoções, de
erotismo.
Maria Inês França
rafaelaf@rio.com.br
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