A PSICANÁLISE E OS NOVOS PARADIGMAS
Maria
Lucia Pilla [1]
Sonia
Viana[2]
INTRODUÇÃO
A psicanálise é uma das “criações”
do século XX que ajudou a romper, ainda que indiretamente, o paradigma que
sustentou a Ciência até o início do século XX, baseado na Física Newtoniana e
no pensamento Cartesiano.
No
entanto, apesar deste viés libertário e revolucionário, a psicanálise não teve
como evitar o sustentar-se, enquanto estrutura teórica, no próprio paradigma
que, em suas “entre linhas”, ajudou a romper.
No decorrer do século XX, dentro do campo da Física, a Teoria da Relatividade de Einstein e, depois, a Física Quântica, criaram novos paradigmas que, mais do que uma nova concepção para a física, influenciaram todos os campos do saber.
“Os físicos, até o século passado, faziam
uma distinção entre matéria e energia: “matéria era tudo o que ocupasse o
espaço e que possuísse massa (...) Quanto à energia, não ocupava espaço e era
desprovida de massa (...) (Asimov, 1986,71)”. Nos dias de hoje (com a teoria da
relatividade), não se concebe mais descrever massa e energia como dois
fenômenos distintos, “massa é energia e energia é massa”(Einstein,1976,200);não
se concebe mais espaço e tempo absolutos e separados, eles formam o contínuo
espaço-tempo; (com a física quântica) não se concebe mais ser possível a
determinação e a precisão dos fenômenos estruturais da natureza, estamos diante
do Princípio da Incerteza; e mais, não se concebe mais como com sentido, aquilo
com que não se interage.
Muito mais do que novos paradigmas
restritos ao campo da ciência física, estas descobertas apresentam uma nova
concepção da natureza e, portanto, do ser humano” (Ramos,1999, 23).
As
autoras consideram que é importante para a psicanálise, beneficiar-se daquilo
que ajudou a criar, permitindo que esta nova concepção penetre seu corpo
teórico.
Entendemos
que esta nova concepção postula a interação e a interdependência de todas as
coisas, privilegiando a visão dinâmica do todo ao invés da dissecação das
partes.
Com o objetivo de desenvolver nossas
idéias, trazemos a contribuição de uma psicanalista, que também é bacharel e
licenciada em física, com especialização em física moderna com base na física
clássica e que desenvolveu, por onze anos, uma pesquisa, onde tenta integrar a
psicanálise aos novos paradigmas propostos pela física moderna.
Em seu livro “Macromicro - a Ciência do
Sentir”, Maria Beatriz Breves Ramos (1998), partindo dos paradigmas da física
moderna, cria um novo paradigma - o Macromicro - e busca traze-lo para o corpo
teórico da psicanálise através do viés do “sentir”, fenômeno que, como sabemos,
é de importância fundamental para a psicanálise, mas de interpretação e
explicação complexa e controvertida.
Na
primeira parte do trabalho, faremos a exposição teórica desta nova abordagem da
Ciência do Sentir e, para isto, Ramos autorizou a reprodução parcial de dois de
seus textos: “Introdução ao Macromicro – A Ciência do Sentir” e
“Psicossomática: um novo paradigma”. A reprodução foi parcial pois, devido ao
limite de páginas do trabalho, foi privilegiado aquilo que pretendemos
abordar.
Optamos pela reprodução porque trata-se de uma teoria muito complexa e nova e, assim, se usássemos nossas palavras para apresentá-la, poderíamos correr o risco de deturpar os conceitos e as idéias propostas.
No entanto, apesar de ser uma teoria altamente complexa, a aplicação clínica dela faz-se simples. Uma simplicidade, sem dúvida, também complexa, porque envolve o sentir humano. Esta teoria propõe o desenvolvimento da análise, através do Princípio da Interação, da ressonância e da Consonância Analítica. Segundo a autora, a relação na clínica analítica envolve dois momentos: o primeiro momento é o Sentir; o segundo momento é a versão dada ao Sentir.
Em seu corpo teórico, a psicanálise
tenta dar conta do fenômeno do sentir através da teoria das pulsões que, como
sabemos, parte do paradigma mecanicista-determinista (newtoniano-cartesiano).
Ramos propõe uma outra abordagem teórica e clínica do sentir, fundamentada no
novo paradigma - o macromicro.
Na
segunda parte do trabalho, através de dois exemplos clínicos, faremos uma
exposição comparativa de duas possíveis abordagens do sentir - a clássica e a
macromicro - sublinhando o enriquecimento que a segunda traz tanto para a
teoria quanto para a prática clínica
psicanalítica.
PARTE I
Ramos[3]
(1998), em seu trabalho “Introdução ao Macromicro - A Ciência do Sentir”, inicia apresentando o ser humano como
resultado de um processo da evolução da natureza e fazendo referência à física
com os seus campos de domínio.
“O universo, em
um processo de expansão e transformações, levou aproximadamente, dez bilhões de
anos para construir o complexo humano como somos hoje. Um complexo humano com
uma estrutura que apenas permite ao homem, entrar em contato direto, com alguns
aspectos da natureza.
A
natureza é inteira mas, em conseqüência dos limites da condição humana, só
temos acesso direto a alguns de seus aspectos e, em função disto, a matéria
existente no nosso universo acabou ficando dividida, para fins de estudo, em
dois níveis: o nível macrocósmico e o nível microcósmico.
O nível macrocósmico é
estudado pela física clássica, iniciada como estrutura científica por Galileu e
Newton e que, podemos dizer de forma simplificada, trabalha com os aspectos da
natureza que os nossos sentidos alcançam. Esta área da física baseia-se no
determinismo, na precisão das causas e dos efeitos dos fenômenos físicos.
O nível microcósmico é
estudado pela física quântica, iniciada como estrutura científica por
Heisenberg e Schröndinger e que, podemos dizer de forma simplificada, trabalha
com os aspectos da natureza que os nossos sentidos não alcançam, com o
inimaginável, com o inatingível pela nossa percepção, ou seja, o mundo da
estrutura atômica ¾ o interior
atômico. Esta área da física baseia-se no indeterminismo, na imprecisão das
causas e efeitos dos fenômenos físicos.
Faz-se
importante frisar que até o século passado, os físicos acreditavam que a física
newtoniana seria capaz de descrever todas as leis da natureza, até que foi
verificado que a natureza seria muito maior do que a capacidade da percepção
humana, ou melhor, que a natureza seria muito maior do que aquilo que os nossos
sentidos poderiam alcançar.
A física
quântica surgiu demonstrando o princípio da incerteza. Este princípio demonstra
que o homem é limitado para o conhecimento, ou seja, que existe uma
indeterminação entre o homem e a natureza, devido a própria condição humana.
A estrutura da matéria é o
átomo. Átomo que em seu interior possui um enorme potencial de energia (...) O
ser humano, também, possui como estrutura os átomos. As células são
constituídas de átomos. Se tivéssemos evoluído para entrar em contato com o
nível microcósmico (...) perceberíamos a nós mesmos como um complexo energético
e não como um ser material.”
Adiante,
no mesmo trabalho, demonstra cientificamente, que os mecanismos de formação dos
sonhos, apresentados por Freud, nada mais são do que efeitos relativísticos.
“De acordo com os conhecimentos atuais,
faz-se impossível a percepção de cor se não houver luz (ondas eletromagnéticas
da faixa visível) para refletir e um aparelho visual para capta-la. Assim,
podemos afirmar que, na natureza, onde há cor, há ondas eletromagnéticas.
Durante o sono, nos sonhos, os nossos
olhos, receptores de ondas eletromagnéticas em nosso organismo, movimentam-se
no conhecido movimento REM (movimento rápido dos olhos) e, também, ao
sonharmos, sonhamos colorido.
Pesquisando sonhos de deficientes
visuais, foi verificado que essas pessoas utilizam a memória nos sonhos. As
imagens que aparecem em seus sonhos são do tempo em que podiam enxergar.
Durante os sonhos ocorrem as articulações
entre os traços mnêmicos que produzem as histórias sonhadas, promovendo o sonho
como um fenômeno psicológico.
Assim, podemos dizer que o sonho é um
fenômeno psíquico e com um estudo mais aprofundado (...) pudemos concluir que
(Ramos, 1991):
sendo as ondas eletromagnéticas um
fenômeno periódico que transporta energia e se, nos sonhos, somos capazes de
detectá-las, podemos pensar que, sendo o mundo quântico um mundo de energia, ao
sonharmos estaríamos processando este aspecto de nossa estrutura. A própria
vivência dos sonhos seria a verdadeira experiência do nível quântico humano.
Sendo os sonhos ondas eletromagnéticas,
eles estariam sendo processados à velocidade da luz. Consequentemente, sendo os
sonhos uma manifestação do sistema inconsciente, este, o sistema inconsciente,
funcionaria à velocidade da luz.
Como sabemos, de acordo com a teoria da
relatividade restrita (de Einstein), todas as vezes que nos depararmos com dois
sistemas, um próximo ou à velocidade da luz e outro próximo ou à velocidade
zero (se comparada à da luz) interagindo entre si, verificaremos os efeitos
relativísticos de espaço contraído e tempo dilatado.
Através de estudos mais aprofundados (id,
1998), pudemos verificar que os mecanismos de formação dos sonhos, a
condensação, o deslocamento, a representabilidade e a elaboração secundária,
nada mais seriam que efeitos relativísticos, resultado da interação entre o
sistema inconsciente (à velocidade da luz) e o sistema percetivo-consciente (à
velocidade próxima a zero).”
Prosseguindo,
Ramos demonstra a concepção Macromicro, que apresenta o ser humano como inteiro
e indivisível.
“Assim, o ser humano, em
nossa concepção, é macromicro, ou melhor, é um complexo macromicro, onde em
nível macrocósmico, a natureza humana manifesta-se, à percepção humana, como um
ser biológico (material) e em nível microcósmico, a natureza humana manifesta-se,
à percepção humana, como um ser psicológico (energético). “Bio é psíquico e
psíquico é bio, o macromicro” (id, 1993 e 1998) (...)
Compreendemos que é a
condição humana, limitada na sua relação com a natureza, que cria a fronteira
entre o material e o não material, entre o visível e o invisível, entre o
perceptível e o não perceptível, entre a matéria e a energia. Fronteira que na
realidade não existe, mas que se faz presente, devido a forma como a evolução
do universo “construiu” o homem. Nós, seres humanos, do jeito que somos hoje,
estaremos sempre posicionados no referencial de nossos sentidos e, portanto,
estaremos sempre limitados pela nossa percepção.
Portanto,
por nossa própria estrutura, somos um ser vibratório. O complexo macromicro
humano é um complexo vibratório. Podemos observar isto mesmo em nível
macrocósmico. As relações humanas processam-se através de pulsos vibratórios
quando, por exemplo, a voz é uma onda mecânica emitida, a visão é uma onda
eletromagnética captada, os neurônios propagam uma corrente elétrica
desencadeando os neurotransmissores, etc (...)”
Sobre o Sentir, Ramos, escreve:
“O sentir
faz-se na vibração. Ninguém consegue explicar, por exemplo, como é
a cor. Para
compreendê-la é preciso sentir através da visão.
O sentir é o elemento
universal do ser humano. Desde que o homem se conhece como homem, ele sente, o
que pode variar é a expressão do sentir. O sentir ultrapassa os tempos, as
culturas, as raças, as religiões, etc. Sabemos muito bem a que um autor do século
passado referia-se quando escrevia a palavra amor, raiva, tristeza, frio,
calor, pânico, etc. Ao contrário, a construção intelectual não pode ser
compreendida como universal, esta varia com os tempos e com as culturas (...) O
sentir precede o intelecto.(id, 94-95)”
Acrescentamos que Ramos diferencia
sentimentos de sensações. Os sentimentos seriam uma manifestação, no nível
microcósmico, do sentir, enquanto que as sensações, uma manifestação, no nível
macrocósmico, do sentir. De acordo com a teoria, o sentir é a vivência
vibratória que o homem experimenta de seu complexo macromicro.
Como explicação, dentro do campo da
ciência, para a comunicação humana, descreve a ressonância.
“Através da
ressonância faz-se a comunicação humana. (...) Como já foi descrito em outro
trabalho de minha autoria, uma experiência simples de ressonância:
um violão e um diapasão (...); alinha-se o violão perpendicularmente ao
diapasão de forma que as cordas fiquem paralelas ao diapasão; coloca-se em cada
corda do violão um fio de linha; toca-se no diapasão uma nota qualquer;
resultado: verifica-se que a corda do violão correspondente a nota tocada no
diapasão vibrou sem que ninguém a tenha tocado. Isto é fácil de ser observado
porque o fio de linha das outras notas permanecerão parados. Interpretação da
experiência: quando emitimos a nota no diapasão, houve emissão de uma onda com
uma determinada freqüência, uma transferência de energia, que ao encontrar na
corda do violão a mesma capacidade de emitir a mesma freqüência, a fez ressoar,
entrar em ressonância com a freqüência emitida pelo diapasão (id, 1991).
Qualquer corpo
capaz de vibrar possui uma freqüência natural e, assim, será capaz de
transferir energia sempre que encontrar em um outro corpo a capacidade para
vibrar a sua mesma freqüência.”
A teoria demonstra, a partir do complexo
macromicro como um complexo vibratório, que toda e qualquer comunicação, verbal
ou não verbal, processa-se através da ressonância. Isto explica toda a
comunicação entre mãe e bebê.
Sobre a formação da capacidade
simbólica, propõe:
“Através de
estudos mais aprofundados foi demonstrado que:
A nossa consciência por ser
passível de capacidade simbólica está inserida no contexto de três dimensões. E
tudo o mais do psiquismo que tem seus efeitos, mas não é passível de construção
simbólica estaria inserido no contexto de quatro dimensões. O aparelho psíquico
estaria então em quatro dimensões, onde o tempo é variável e é a quarta dimensão.
Portanto, é impossível criarmos um modelo simbólico para o aparelho psíquico;
ele é inimaginável. A consciência seria apenas um instante desta totalidade em
que o tempo se torna fixo, dando condições à capacidade simbólica. (id, 1998,
75-76)
Portanto, o
pensamento faz-se no sentir e forma-se através de um conjunto de vibrações com
tensão e direção definidas no instante da consciência (...)”
Em seu trabalho, “Psicossomática: um novo
paradigma”, (Ramos, 1999), descreve os
dois momentos da relação analítica:
“Em qualquer
trabalho, que envolva relações humanas, ocorrerão dois momentos: 1) o primeiro
momento é o da vivência do sentir; 2) o segundo momento é o da versão dada ao
sentir.
A
estrutura das nossas teorias humanas iniciam-se no segundo momento. O primeiro
momento, aquilo que o (psicanalista) sente para encaminhar seu trabalho, esta
base, as teorias existentes não atendem e foi a este momento que a Ciência do
Sentir se propôs.
Quando observamos um outro
ser humano, o fazemos: “1) sempre do referencial de nosso sistema perceptivo;
2) sempre processando em nosso complexo macromicro a voz (onda mecânica), a
visão (onda eletromagnética) e outras vibrações captadas do outro observado; 3)
sempre não isolados, até porque fazemos parte do meio que observamos”(id, 1998,
144).
Portanto, um ser humano
macromicro não pode observar um outro ser humano macromicro sem interferir e
ser interferido. Assim, por princípio, a Ciência do Sentir demonstra que o
(psicanalista) estará sempre regido pelo Princípio da Interação (...)”
Ramos
acrescenta que estes dois momentos irão variar de psicanalista para
psicanalista e de sessão para sessão.
“O segundo momento, assim como o primeiro,
irá variar de profissional para profissional, do seu tipo de trabalho e dos
objetivos da dupla e, ainda, mesmo em se mantendo a dupla, cada encontro nunca
será repetido, poderá sim produzir-se várias vezes, mas sempre será único, pois
nada se repete em um universo em permanente expansão e evolução.”
E também acentua, a importância do profissional não se imbuir de um sentimento de que possui a verdade do outro, devendo sempre buscar, de alguma maneira, a confirmação do outro para a compreensão do que se passa na relação.
“Penso ser
importante assinalar que se faz fundamental o outro poder ou não confirmar de
alguma forma, o que dizemos; e, se não confirmar, devemos continuar buscando a
nomeação do sentir na interação, caso contrário, (...) realizaremos o
eruditismo ou o ato invasivo, o que será altamente improdutivo.”
Dentro
da concepção macromicro, mesmo um analista, estará trabalhando com o nível
somático de seu paciente.
“Ao
trabalhar-se o nível psíquico está se trabalhando a totalidade macromicro,
assim, como também, ao trabalhar-se o nível somático está se trabalhando a
totalidade macromicro, o psicossomático.”
Adota
o nome de Consonância Analítica, para a busca do soar junto de forma afinada,
na interação analista-paciente, aonde estariam incluídos os sentimentos e as
sensações que ocorrem na transferência e contra-transferência.
PARTE II
CASO CLÍNICOS
I - UMA
ABORDAGEM CLÍNICA PRIVILEGIANDO O PARADIGMA MACROMICRO
F é atendida por mim, no ambulatório de uma Instituição Social para população carente, há quatro anos. Ela foi encaminhada pela terapeuta de sua filha adotiva, uma criança psicótica, atendida na mesma instituição, que com um mês de vida fora abandonada por uma mendiga em sua porta. Embora F já tivesse dois filhos homens, que criava com dificuldade, sentiu-se tocada pelo estado de total desamparo da criança, resolvendo, assim, adotá-la. Juntou-se, a isto, o fato de que sempre desejara ter uma filha.
A paciente chega a mim com o
diagnóstico de borderline. Foi dito que, por um lado, mantinha com a filha uma
relação simbiótica de total indiscriminação e por outro, embora “cuidasse”
dela, não conseguia lhe fornecer qualquer tipo de contato físico amoroso. Descreverei
a seguir aspectos de sua história que foram reconstruídos, no decorrer de sua
terapia, e que considero importantes para nossos propósitos.
F é a primeira mulher de uma prole de
quatro filhos. Até o nascimento da irmã caçula, aos seis anos, foi cuidada com
toda dedicação e carinho pela mãe. Depois, o investimento materno manteve-se
igualmente intenso, mas com o “sinal trocado”: a mãe passou a maltratá-la e
espancá-la ferozmente; só deixou
que freqüentasse a escola até a 3a.
série, obrigando-a, a partir daquele momento, a trabalhar para ajudar no
orçamento familiar; também a proibiu de relacionar-se com qualquer pessoa que
não ela própria, bem como de ter qualquer atividade prazerosa. A irmã, em
contrapartida, passou a receber todos os carinhos e permissões.
Os
reflexos desta diferença estão presentes de forma gritante na vida adulta de F.
Enquanto a irmã fez curso superior, está bem colocada na vida e trata-se em
consultório particular, F é semi-analfabeta, só consegue trabalho em empregos
desvalorizados socialmente e é uma “carente”, atendida no ambulatório de uma
instituição social.
Na
visão de F, a mãe rejeitava o pai sexualmente, “não gostava de sexo, ou então,
não gostava de homem”(sic) e, por isso, ele passou a usá-la para satisfazer-se.
Quando a mãe descobriu, espancou-a, chamando-a de “puta” e acusando-a de ter
seduzido o pai.
Outro
reflexo da diferença é que sua irmã, que vive com a mãe, é homossexual assumida
e traz suas amantes para dentro de casa, algo que é tranqüilamente aceito pela
mãe. F, casada com um alcoólatra, é frígida, nunca experimentou prazer sexual
(a não ser na infância, em brincadeiras sexuais com amigas), “tem horror de
pênis”(sic) e, para ela, “a relação sexual sempre foi uma tortura” (sic).
O tratamento de F configura-se a partir
de três aspectos marcantes.
No
sentido clássico: 1) uma transferência negativa feroz, que se manifesta através
do ataque ao vínculo, diante de qualquer melhora ou aproximação da terapeuta,
criando, assim, uma “reação terapêutica negativa” de difícil trato; 2) uma
transferência erótica violenta, geradora de muito sofrimento; 3) uma quase
impossibilidade de confiar no outro, que leva a uma utilização maciça de
defesas contra o vínculo. A intensidade destes três aspectos faz com que a
transferência positiva seja sempre frágil e precária e, consequentemente, a
terapia se processe em permanente risco, podendo romper-se a qualquer momento.
No viés da “Ciência do Sentir”: estes
três aspectos, também implicam em uma variada gama de sentimentos. F
experimenta a si mesma em desarmonia, onde a vivência de suas emoções a leva a
agir e falar de determinadas formas que, através da ressonância, geram por sua
vez sentimentos na terapeuta, que também a levam a falar e agir de determinadas
formas. E assim por diante.
Uma possível forma de lidar com este material seria
privilegiando o aspecto pulsional, bastante “gritante” neste caso.
A transferência erótica, latente por trás da
transferência negativa, esteve sempre evidente para a terapeuta. Assim, uma
possibilidade seria trazer a tona e trabalhar a transferência erótica, como uma
resistência ao estabelecimento do vínculo e à conseqüente revivência dos
aspectos traumáticos presentes em F. Isto implicaria em trabalhar o distorcido
Édipo desta paciente.
Sem dúvida, é uma abordagem - embora parcial - que
não deixou de estar presente para a terapeuta. No entanto, não acreditamos que
seria útil para esta cliente, pois no
nosso entendimento, não estaria tocando sua real necessidade.
Neste caso, tivemos a oportunidade de ter uma
comprovação disto, pois a terapeuta da filha de F, que trabalha com a abordagem
clássica, insistia na importância de estabelecer o corte que faltava na relação
mãe-filha. Esta atitude, acabou por acentuar a paranóia, a resistência e a
reação terapêutica negativa de F, ameaçando, assim, também o tratamento da
filha.
A nova abordagem que estamos propondo não privilegia
nenhum aspecto, mas procura, na medida do possível, levar em consideração a
totalidade da situação da paciente: sua história, suas atitudes e posturas não
só verbais mas também corporais, a grande diferença sócio-econômica e cultural
entre cliente e terapeuta. O veículo para tentar captar esta totalidade e seus
pontos emergentes é, no primeiro momento, a interação entre o sentir da cliente
e da terapeuta ou, usando a linguagem do paradigma macromicro, o Princípio da
Interação que ocorre através da ressonância entre o sentir da cliente e da terapeuta,
em busca de uma possível consonância, que permita o fluir do processo.
Assim, como relatei, inicialmente F apresentava uma
transferência negativa intensa: seus ataques, que tinham a habilidade de
dirigir-se a meus “pontos fracos”, provocavam, no primeiro momento, mal estar e
raiva em mim. Mergulhando nestes sentimentos descobri a dor, a dor de minhas
próprias feridas narcísicas, a dor da qual F se defendia com tanta fúria. Este
foi um momento de interação através da ressonância.
A seguir, quando a transferência erótica latente se
manifestou com muito clamor, suas investidas amorosas provocaram em mim, no
primeiro momento, uma desagradável sensação de invasão. Mergulhando nesta
sensação descobri o meu próprio medo e pude assim compreender, no ápice da consonância,
obtida pela interação e ressonância, que por de trás das investidas eróticas de
F, havia uma criança amedrontada, clamando por carinho e proteção.
Finalmente, através da ressonância de todos estes
sentimentos e da consonância alcançada, atingi o segundo momento (a versão dada
ao sentir), compreendendo a necessidade básica de F: a necessidade de confiar,
através da relação com o outro, na possibilidade de amar sem ser invadida,
usada e abusada.
A diferença que esta percepção gerou em meu trabalho
não se refere tanto às interpretações, mas às atitudes que adotei com esta
paciente.
No primeiro momento, senti que F necessitava que eu
fosse muito paciente, flexível e disponível. Entendo que o meu sentir é difícil
de ser compreendido teoricamente dentro de uma visão da psicanálise clássica,
principalmente em função das características deste caso (transferência negativa
e erótica intensas, borderline com tendência à indiscriminação eu x não eu).
Mas foi baseando-me neste sentir, que
suportei as agressões de F, oferecendo-me, assim, para que desse vazão a seu
ódio defensivo; que flexibilizei as regras da Instituição, que só permite duas
faltas seguidas sem justificativa, permitindo que ela faltasse mais; e que
dei-lhe o telefone de minha casa, passando muitos fins de semana sendo
insistentemente perturbada por F.
Trarei a seguir três vinhetas clínicas:
Nas primeiras sessões, F apresentava-se muito
paranóica. Ficava olhando o tempo todo para a porta, perguntando o por que de
mantê-la fechada. Queixava-se da terapeuta da filha, que também insistia em
fechar a porta, dizendo que a filha não suportava isto.
Naquele momento, uma possível abordagem seria
trabalhar a transferência negativa ou a
transferência erótica subjacente, interpretando as fantasias correspondentes
que, sem dúvida, estavam presentes. No
entanto, privilegiando o primeiro momento da relação, o sentir que ressoava em
mim, optei por não interpretar, mas por tratar a questão objetivamente.
Expliquei a F o motivo da porta fechada e sugeri que colocasse a cadeira de forma
que se sentisse mais confortável em relação à porta. Depois de trabalharmos
algum tempo desta forma, F começou a tranqüilizar-se. Pode então contar-me,
demonstrando que estávamos interagindo e soando juntas e, portanto, em consonância,
que a mãe fechava a porta do quarto para espancá-la e, depois, a deixava
sozinha e trancada.
No final de uma sessão F me deu um presente e faltou
às sessões seguintes. Depois me telefonou muito agressiva, fazendo uma série de
ataques. Também naquele momento, uma opção seria trabalhar a transferência
erótica encoberta pela transferência negativa. Mais uma vez privilegiando o
sentir, após ouvir seus ataques, limitei-me a lembrar o presente, sugerindo que
talvez o que estivesse ocorrendo, tivesse relação com ele. Enfatizei a
importância de tentarmos descobrir isto, estimulando-a a vir. Quando finalmente
F conseguiu voltar, contou-me que, na adolescência, sua única amiga lhe deu um
presente que a fez muito feliz. No entanto, quando a mãe descobriu o presente,
o fez em pedaços e proibiu-a de ver a
amiga.
Em outra ocasião, F me telefonou aos prantos, em
pleno surto psicótico, dizendo que a filha queria levar para a terapia uma
boneca suja, molambenta e horrível. Ela não queria deixar, mas a terapeuta da
filha lhe dissera que tinha que deixar. F chorou e gritou que não ia deixar,
que ia parar com todas as terapias. Poderia aqui ter interpretado sua disputa
de poder com a terapeuta da filha, que sem dúvida existia. Mas, mais uma vez
privilegiando o sentir, optei por tentar acalmá-la, dizendo que não era
obrigada a fazer nada que não quisesse, mas que devia haver nesta boneca alguma
coisa importante para descobrirmos. Durante algum tempo F não foi às sessões,
mas continuou me telefonando. Finalmente voltou e pudemos juntas compreender
que a boneca molambenta é a “filha-F” indigente, que não podia ser exposta aos
terapeutas porque ainda não eram confiáveis.
Nestes exemplos, o fluir do processo analítico e da
interação cliente-terapeuta demonstraram que, a partir de uma ressonância
ocorrida no primeiro momento - o momento do sentir - uma consonância, uma
sintonia fina entre cliente e terapeuta
foi sendo obtida, até que pudemos chegar ao segundo momento - o momento do
compreender e interpretar.
II - UMA ABORDAGEM CLÍNICA
PRIVILEGIANDO O PARADIGMA DA PSICANÁLISE CLÁSSICA
Salomão é basicamente um paciente melancólico, que vem para a análise depois de ter tido uma entrevista muito mobilizante com a analista de seu filho. Chega falando de sua infância sofrida. Foi extremamente doloroso e marcante presenciar as cenas de seu pai espancando sua mãe, que era vista como uma grande sofredora nas mãos de um pai altamente agressivo. O paciente estava com dez anos quando seu pai abandonou a família, indo morar com outra mulher.
Salomão identifica-se com essa mãe sofredora e passa a viver na dor e no sofrimento. Ele deseja saber quem é, de onde vem e para onde vai, ignorância que não suporta. Depara-se com suas falhas, sua impotência diante do outro. Sente-se mal-amado, inseguro, não reconhecido em suas qualidades. Nem mesmo sabe se as tem. Todo o sucesso financeiro e até intelectual não sustenta sua auto-estima. Sente-se frágil e sofre.
Nos meus primeiros contatos com Salomão percebi, a partir de seu discurso, um jogo pulsional no qual Eros apresenta-se sob o domínio de seu oponente Tânatos, que apareceu num sonho como um anjo negro que lutava e dominava um anjo branco, diáfano. Freud admite que as forças destrutivas possuem o mesmo valor que a sexualidade. E o aparelho mental funciona pela fusão e desfusão dessas forças que o levam ao trabalho. As forças destrutivas e as forças libidinais se enfrentam em pé de igualdade.
Salomão ficou tomado de angústia diante de seu sonho, acreditando que poderia ser possuído pelo diabo, por quem sentia simpatia. Em seguida, fala que também não consegue deixar de gostar de seu pai, que foi tão violento com sua mãe. Não sabe porque gosta dele, acredita que não deveria gostar. Não sente culpa por isso, mas admite sentir medo, pois a única coisa de que tem pavor, é ser agressivo como seu pai. Penso que este pavor tem a ver com seu desejo de ser possuído por este pai/diabo.
A solução psíquica para seu medo vem através do processo de formação reativa. Salomão é freqüentemente tomado por pensamentos que o fazem sentir uma total falta de confiança em si mesmo. Isto o leva a agir como se um perigo iminente estivesse sempre presente. Seria este perigo poder tornar-se agressivo como o pai? Seria uma atitude de contra-investimento da consciência de sua agressividade, que ficaria então camuflada por este sentimento de impotência?
Salomão em seu discurso e em suas atitudes, dá sinais de viver em constante sofrimento e demonstra também não poder abrir mão dele, dando mostras da existência de uma fixação libidinal que impossibilita uma mudança no seu aparelho psíquico.
Na realidade, diante da vida, Salomão freqüentemente assume uma posição masoquista. Seu sofrimento é sentido como vindo de fora, vem de torturadores: mulher, irmão, parentes, empresa, crise financeira mundial que o atinge fantasmaticamente. Sente-se atacado. Identifica-se com sua mãe sofredora. Sente-se pobre e desvalido, apavora-se diante da miséria humana, refletida na família materna. Origem certeira e inconfundível. Não há possibilidade de negação. Ele vem do que lhe causa horror.
Como saída, resta-lhe à identificação paterna. Admira e ama um pai tirânico que, no entanto, não é merecedor deste amor. Desamparo identificatório. Salomão vai ao pai, volta à mãe, cai no limbo. Diz Freud: “os efeitos das primeiras identificações efetuadas na mais primitiva infância serão gerais e duradouros”(1923, 45)
Não devemos esquecer do caráter ambivalente da identificação. O pai e a mãe que são amados são os mesmos que são odiados. Salomão, em seu processo identificatório, dá mostras de achar-se aprisionado entre um pai super potente, tirânico e uma mãe desvalida.
Salomão é capturado por um ideal grandioso e vive num eterno engodo. Fala de seu ideal de ser grandioso. Ser apenas bom e reconhecido não é suficiente. Há momentos que chega a sentir-se próximo à Deus, embora na maioria das vezes sinta-se medíocre. Reage com angústia à percepção de não estar à altura de seu ideal de eu, ficando então submetido a um supereu sádico. Esse supereu diabólico poderia espancar, matar, devorar seu eu. Daí seu comportamento melancólico e uma culpa inconsciente.
Esse sentimento de culpa, que é mudo para Salomão, explicaria sua forma sado-masoquista de viver, ou seja, sua resistência em abrir mão do sofrimento.
Sua culpa inconsciente remete-o ao maior dos desamparos, à perda do amor. Perder o amor é como ser expulso do Paraíso.
Salomão busca em sua análise uma saída para seu drama. A porta que se oferece é a transferência. Transferência esta que me remete ao grande desamparo no qual esbarramos a cada dia em nossa clínica.
Foi assim, baseando-me no paradigma da psicanálise clássica, que compreendi a estrutura psíquica de Salomão. Devo, no entanto, dizer que em muitos momentos do percurso de sua análise, acreditava ser a teoria da pulsão insuficiente para dar conta do que ocorria. Refiro-me aos meus sentimentos. Como analista, procurava compreendê-los pelo fenômeno da contra-transferência. Mas, por mais que tentasse compreender como e porque estes sentimentos surgiam em mim, algo sempre restava.
Verifiquei, ao deparar-me com a teoria Macromicro, que os sentimentos presentes no trabalho com Salomão eram resultado de uma interação, da consonância analítica que acontecia em função da ressonância. Compreendi que éramos dois complexos macromicro, diante do princípio da interação e que as interpretações dadas funcionaram, mesmo sem que, naquele momento, conhecesse à Ciência do Sentir, porque as minhas interpretações sempre foram formuladas a partir dos meus sentimentos.
O fato de agora poder contar com uma fundamentação teórica para o Sentir na clínica psicanalítica, permite-me utilizar com mais confiança este valioso recurso técnico, o meu sentir.
AGRADECIMENTO
Agradecemos à Maria Beatriz Breves Ramos por sua colaboração neste trabalho.
Maria Lucia Pilla
E-mail : Pilla@openlink.com.br
Sonia Viana
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ASIMOV, I. Asimov Explica. 4
ed.. Francisco Alves. RJ. 1986.
EINSTEIN, A & INFELD, L.. A Evolução da Física. 3ª Edição. Zahar Editores. RJ. 1976.
FREUD, S. (1923) O ego e o id. RJ: Imago Ed., (ESB, v.19)
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Macromicro - A Visão Psicofísica
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Psicanálise. Rio de Janeiro. 1993. A Psicanálise do Século XXI. Rio de Janeiro.
SBPRJ - ABP, 1993. Vol I.
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Macromicro ¾ A Ciência do Sentir (uma visão revolucionária do ser humano, a partir
da física quântica, da teoria da relatividade, da psicanálise, da biologia e
das artes).
Editora Mauad. RJ. 1998.
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Uma Introdução ao Macromicro – A Ciência
do Sentir. publicado no Boletim do Instituto n° 3, p:139-146, da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro ¾ SBPRJ em outubro de 1998.
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Psicossomática: um novo paradigma. Apresentado na mesa de abertura do IV Fórum
de Psicossomática: “Psicossomática: um
novo paradigma”, do Curso de Especialização da CEPAC/UGF, realizado nos
dias 29, 30/09 e 01/10 de 1999 na UGF/RJ e publicado na apostilha n°1, pp:22-28. do Curso de Especialização em
Psicossomática da CEPAC/UGF – Unidade Downtown/Barra/RJ.
[1] Psicóloga Psicanalista Titular da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro – SPCRJ (Brasil) E-mail : Pilla@openlink.com.br
[2] Psicóloga Psicanalista da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro – SPCRJ (Brasil)
[3] Psicóloga, Bacharel e Licenciada em Física, com Especialização, Lato-Sensu, em Física Moderna com Base na Física Clássica pela Faculdade de Humanidades Pedro II - FAHUPE; Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro – SBPRJ e da International Psychoanalysis Association - IPA; Presidente da Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo do Estado do Rio de Janeiro - SPAG-E.RIO; Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Psicossomática Contemporânea – SBPC; Professora de Psicofísica do Curso de Pós-Graduação, Lato-Sensu, em Psicossomática da Universidade Gama Filho – CEPAC/UGF/RJ; Autora do Livro “Macromicro – A Ciência do Sentir” – Ed. Mauad. RJ/Brasil.1998.
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