Diário da Aventura
"Se eu sair daqui
vivo, juro que nunca mais faço isso". Foi o que pensei num
instante, quando me percebi pendurado em um paredão de rocha
pura. Voltado para cima, praticamente deitado no ar, eu estava
suspenso por uma corda presa ao meu peito e cintura. Nessa
posição eu via a corda que me prendia esmagada contra a
extremidade do paredão pelo qual descíamos, também via o céu
azul com leves nuvens brancas sopradas pelo vento e, ainda mais
assustador, girando a cabeça eu podia ver, muitos metros abaixo,
o chão, que aparecia por entre rochas menores e as copas das
árvores.
Como cheguei nessa
situação, o que me moveu na minha condição de paraplégico e
amputado de ambas as pernas acima do joelho a encarar essa
aventura, é o que tentarei explicar agora.
Espere, antes de me
chamar de maluco, deixe-me contar o contexto no qual essa jornada
nas alturas aconteceu. Fiquei totalmente paralisado nas pernas
quando em 1968, aos nove anos de idade, uma hérnia na minha
medula resolveu estrangulá-la e acabou com a festa. Além da
paralisia, problemas de incontinência, de atrofia, de
circulação, etc. passaram a fazer parte do meu dia-a-dia. Essa
rotina, além de me retirar da escola regular, foi a
responsável, anos mais tarde, devido ao agravamento da atrofia e
da má circulação de sangue, pela amputação de ambas as
pernas. Foram procedimentos diferentes, primeiro a perna direita
em 1976, um ano depois aos 19 anos, e lá se foi a esquerda.
Descrevo esses fatos
hoje, sem nenhum sentimento de dor ou perda. Era uma questão
muito pragmática naquela oportunidade, as pernas não serviam
para mais nada, ao contrário, eram dois importantes
complicadores da minha qualidade de vida e, no limite,
colocavam-na em risco. No fundo era mais uma questão de
estética do que funcional. Sem pernas eu não ficaria mais
bonito.
Foi mais ou menos por
essa época que eu, que já participava da ARPA desde 1971,
iniciei a praticar esportes adaptados para deficientes físicos.
O primeiro foi o tênis de mesa, depois veio o basquetebol e
após o atletismo. Ao longo desses mais de vinte anos da prática
desportiva obtive importantes conquistas individuais e coletivas.
Fui por várias vezes campeão regional e brasileiro em provas de
pista e também de campo, cheguei até a vencer um campeonato
sul-americano. Pelo esporte tive a oportunidade de conhecer
praticamente todo o Brasil e alguns países vizinhos.
Existem inúmeras
histórias acontecidas ao longo dessas duas décadas, algumas
hilariantes e outras comoventes, mas esse é um outro papo. Vai
daí que, passado todo esse período, nós da ARPA chegamos a
conclusão que a prática dos esportes tradicionais já não é
mais novidade. A maioria das pessoas já viu ou já ouviu falar
deles e, portanto eles deixaram causar o impacto esperado no
sentido que romper com o senso comum, com o preconceito e a
discriminação, segundo o qual o portador de deficiência
física é um pobre coitado, um infeliz, dependente e incapaz das
coisas mais comuns da vida.
Concluímos então que,
sem deixarmos de praticar as modalidades esportivas tradicionais,
abriríamos uma nova frente de ação – os esportes
radicais. Pensamos que assim procedendo e, principalmente por
tratar-se de atividade praticamente inédita no Brasil,
recuperaremos a visibilidade e o impacto pretendidos.
Bem esse é, de forma
bastante resumida, o histórico desta aventura. Agora voltemos ao
diária da mesma. Para não alongar muito essa narrativa, vou
pular a descrição de como a idéia surgiu e se desenvolveu,
idem para como encontramos as pessoas que na prática a tornaram
possível.
Domingo 29 de março,
manhã de sol, o telefone toca conforme combinado às 8h30min,
ainda sonolento eu converso com o instrutor Elton e com o
fotógrafo Neco. Acertamos os últimos detalhes já previamente
combinados. Ligo após para o casal de amigos Rose e Uli, também
combinamos os detalhes da carona que me dariam até o local da
aventura. Com a minha movimentação e barulho, Márcia desperta,
sorri e, espreguiçando-se, levanta-se da cama e anda em
direção ao banheiro. Confesso que, ao vê-la assim nua e linda,
lembrei daquela piada machista do italiano que após discutir com
a mulher para poder ir ao futebol, irado a põe no colo e quando
vai dar-lhe umas palmadas diz: "Mas que futebol que
nada...". Mas como sou MUITO forte e determinado, resisti e
fui à luta!
Saímos do Centro de
Porto Alegre lá pelas 9h15min, seguimos para Canoas, onde
apanhamos o Elton e seus equipamentos de montanhismo. Também
encontramos com a Karen, a prima, como diz o Elton, que nos daria
um importante apoio, providenciando nosso transporte na volta.
Assim, em "comboio" seguimos para o morro Itacolomi na
cidade de Gravataí, palco da aventura propriamente dita.
Na chegada fomos
recepcionados pelo caseiro, um homem simples de modos e
aparência rudes. Ele perguntou-me se eu já havia estado ali e,
após a minha resposta negativa, ficou me olhando incrédulo, o
que me levou a imaginar o que ele deveria estar pensando: "o
que esse aleijado maluco pensa que vai fazer, escalar um
morro?"
Iniciamos a subida, Elton
ia atrás empurrando minha cadeira de rodas, atrás dele iam
Karen, Rose e Uli. Após um trecho curto mas bem íngreme fizemos
uma parada para descansar e, neste momento chegaram Neco o
fotógrafo e seu amigo Felipe. Assim nosso grupo de sete estava
completo e reiniciamos a subida. Aos poucos a trilha ia ficando
cada vez mais fechada e de difícil acesso. Já não dava mais
para apenas empurrar a cadeira, por sugestão de Rose nós
amarramos uma corda no centro da cadeira para permitir que ela
fosse também puxada. E vencemos mais um trecho. Até que
encontramos uma bifurcação na trilha a partir da qual,
tornou-se impossível continuar dali na cadeira. A alternativa
encontrada foi eu me segurar nas costas de Neco, que passou a me
carregar como se eu fosse uma mochila, enquanto Elton carregava
minha cadeira sobre os ombros, o restante da equipe carregava
todo o resto do equipamento.
Esse trecho da trilha
até o sopé do morro Itacolomi foi tão difícil de ser superado
como a escalada propriamente dita. Houve trechos nos quais eu
tive que sentar nas pedras e, ou me puxar ou ser içado para o
patamar mais acima. Minha cadeira de rodas foi deixada escorada
em uma árvore pois não teria mesmo a menor serventia naquele
terreno e, para podermos avaliar a que foi a subida pela trilha,
quando estávamos voltando já no final da tarde, ao
reencontrá-la na árvore constatamos que estava com um pneu
furado.
Bem, finalmente chegamos
ao sopé, dali a vista para o vale abaixo já é muito bonita, o
que forma uma bela paisagem se incluirmos o morro propriamente
dito. Após vários preparativos e ajustes, iniciamos a escalada.
Eu estava usando a tradicional cadeirinha de montanhismo, uma
fixação feita de tiras presas na cintura e coxas. Elton tinha
prendido no topo do paredão a corda que eu usaria como
segurança. Iniciei a subida, após os primeiros metros fiz uma
pausa e olhei para trás. Percebi então a dimensão do que eu
estava fazendo, toda a nossa equipe e mesmo outros grupos que já
estavam naquele lugar me olhavam fixa e silenciosamente. Elton
que ia abaixo de mim e Neco que fotografava desde um ponto
lateral do paredão, eram os únicos que falavam comigo, me
instruindo sobre o que e como fazer. Devo dizer que as vezes suas
instruções pareciam incompreensíveis para mim, como a de usar
as "pegas" ou pequenas saliências na rocha onde os
montanhistas se apoiam na escalada. Acontece que isso é
possível quando se usa as pernas para subir, onde um mínimo
apoio na ponta dos dedos é suficiente para permitir um movimento
elevatório, mas quando se usa apenas e tão somente os braços
é impossível elevar o corpo com um apoio mínimo desses.
Aos poucos fui vencendo o
medo e a distância. Quando não dava para apoiar no paredão eu
simplesmente me puxava pela corda de segurança, me içando com a
força dos braços. As vezes quanto fazia um movimento lateral
mais brusco eu girava em "spin" e ficava de costas para
a parede de pedra. Finalmente galguei o ponto, quase no topo,
onde há uma ponta que se projeta para fora da parede, aí fiz
uma "parada de mão" ou seja, fiquei suspenso por uma
só mão que, devido ao ângulo necessário para a foto, foi com
a mão esquerda o que trouxe um grau maior de dificuldade pois
sou destro. Essa é a foto da qual mais gosto, exatamente porque
entre todos os momentos da escalada foi o que me possibilitou o
maior grau de autonomia. Descer foi mais fácil e pude constatar
quando voltei ao chão, pelos cumprimentos da equipe, que havia
feito uma proeza.
Fizemos uma longa pausa,
várias pessoas também escalaram o mesmo paredão, talvez
encorajadas pelo que fiz. Comemos frutas e bolachas e bebemos
muita água, era cerca de 13h30min e o sol estava muito quente.
Ficamos ali sentados à sombra conversando e aguardando que o
movimento do sol fosse propício para melhor iluminar o paredão
maior em frente de onde estávamos e por onde faríamos a descida
ou rapel.
Acontece que para descer
é preciso antes subir, e se a subida pela trilha foi difícil,
escalar esse paredão parecia impossível. Isso só foi viável
porque fui preso à corda de segurança que era puxada de um
ponto no meio da subida pelo Elton, enquanto eu subia novamente
sendo mochila do Neco. Mesmo assim, face a dificuldade da
empreitada, tivemos que trocar de "carregador" com o
Elton assumindo o posto e, mesmo assim houve trechos nos quais
tive que me içar pela corda. Mas quando chegamos lá em cima
todo o esforço foi recompensado. O visual é deslumbrante. A
sensação é incrível, ali me senti mesmo muito poderoso, e
comentei com os demais: - voar deve ser maravilhoso!
Naquela hora outros
grupos haviam chegado ao sopé do morro, de modo que quando olhei
para baixo percebi uma platéia de cerca de vinte pessoas atentas
ao que fazíamos lá em cima. Bem, foi a partir deste ponto que
iniciei esse relato. Eu, como todo marinheiro de primeira viagem,
estava tenso e inseguro de como ela terminaria. Felizmente para
todos nós tudo correu bem, fora alguns esfolados e arranhões
perfeitamente naturais para o caso. O rapel durou cerca de trinta
minutos, contando os cerca de dez minutos nos quais ficamos
parados e pendurados no ar aguardando por Ernesto, outro membro
da equipe que deveria descer ao nosso lado por medida de
segurança no caso de haver alguma emergência, que como visto
não ocorreu.
Quando descemos e senti
novamente o chão firme sob mim, meu primeiro pensamento foi:
" Eu consegui, me safei dessa!" Depois, e aos poucos,
fui me dando conta da significação que meu gesto teria para o
nosso grupo em particular e para os deficientes físicos em
geral, e foi o que me deu a maior satisfação.
Mas não havia ainda
acabado as proezas, a descida pela trilha foi igualmente
notável. Usamos todos os procedimentos que tínhamos usado para
a subida, porém com uma novidade, enquanto eu estava pendurado
na "garupa" do Neco, devido ao extremo declive do
terreno, foi necessário amarrar uma corda em uma árvore, corda
pela qual Neco descia agarrado e de costas, como naquela
posição ele não podia ver para onde estava indo, era eu que
olhava para trás e ia orientando a nossa descida.
Finalmente chegamos no
carro e nos arrumamos para a viagem de volta, fizemos duas
escalas, a primeira para comprar queijo e salamito e beber
coca-cola para comemorar, e a segunda no borracheiro para
consertar o pneu furado.
Entretanto, para mim a
derradeira "prova" ainda estava por vir. Ao chegar em
casa lá pelas 18h30min encontrei Márcia a minha espera, nervosa
pela minha sorte a princípio, depois excitada com meu relato,
ela não teve nenhuma "pena" de mim, de forma que tive
que testar prá valer os limites do meu bom condicionamento
físico.
Humberto
Lippo Pinheiro
Porto
Alegre, 31 de março de 1998.