ecdíase, de Roberta Azambuja

  Até que enfim tinha conseguido economizar durante três meses e dez dias o dinheiro necessário para a aquisição daquele exemplar. Abstivera-se das saídas noturnas com os amigos, das idas aos bares. Distraíra-se com outros livros de autores menos capazes. Nem acreditava ainda que realmente havia comprado o livro de Jean Duval, o último que escrevera antes de sua morte. Foram os cento e setenta e sete reais mais bem aproveitados de sua vida, mesmo ainda não tendo lido o livro o sabia. Certamente iria mostrar para seus amigos o seu mais novo tesouro; todos iriam se morder de inveja, mas seria ele que iria degustar o conteúdo daquela obra.

Com o livro em suas mãos, nem reparava no que estava acontecendo ao seu redor. Apesar daquela grande livraria, famosa por seu vasto acervo, estar cheia com obcecados leitores que desesperadamente buscavam seus sonhos nas estantes, não escutava nenhum barulho, ou se escutava não sabia decodificar os inúmeros sons que permeavam todo o lugar. Diante das prateleiras dos autores franceses, estava parado, seus olhos castanhos arregalados e sua boca de lábios finos e rosados um pouco aberta. Lia e relia o título: "Ecdíase". Lembrava-se do significado daquela palavra das aulas de biologia que tivera no segundo ou talvez terceiro ano científico. Sair do exoesqueleto. Sair de si mesmo para se tornar si mesmo de outra forma. Ecdíase. Romper as próprias barreiras; se libertar de si mesmo para se tornar. Achava fantástico como Jean Duval conseguira metaforizar um termo biológico e quase técnico. Em cima do título, o nome "Jean Duval" escrito em letras grandes e douradas, quase tão grandes como as do título. Estava certo. Para ele o título da obra deveria ser Jean Duval, ou Jean, ou Duval. O autor era a obra em si. Mas aquele escritor cada vez o enfeitiçava mais com sua genialidade: ecdíase!!! Somente Jean poderia ter pensado nisso.

Na contracapa, uma foto do escritor quando ainda novo. Cabelos lisos caindo sobre o rosto fino, quase esquelético. Um cigarro no canto da boca. Jean olhava para uma folha sobre a mesa e escrevia. Sua camisa social branca com seus dois últimos botões desabotoados. Realmente era magro. Não devia ter tempo para comer, pensou. Morrera por uma virose tola. Talvez porque não comesse. Sua vida era ser gourmet dos leitores.

Debaixo da foto em preto e branco, uma nota da editora fazendo a sinopse do livro. "ECDÍASE foi o último trabalho do reconhecido e renomado Jean Duval, terminado seis meses antes de sua morte...". Não!!! Sérgio não iria ler aquilo. Podia estar escrito naquela maldita sinopse o resumo infiel de todo o livro. Não podia perder a chance de saborear cada página, cada capítulo de Ecdíase. Iria se surpreender e saborear cada nova mensagem que Jean expusesse ali, com cada gemido de dor pela saída do exoesqueleto, com cada lágrima do choro que permeasse o novo nascer. Leria depois de tomar uma saudável xícara de capuccino. Não. Não perderia tempo com isso! Também não tinha tempo para comer. Tinha que ser a testemunha do romper das barreiras de Jean; tinha que ser o cúmplice da morte do velho Duval; seria o companheiro do nascimento do novo.

Olhou mais uma vez o livro. Com os dedos correu as duzentas e trinta páginas. Olhou ao redor (sim... esquecera que ainda estava naquela cara livraria, na bookstore, como estava escrito em sua entrada). Uma mesa no centro com três cadeiras vagas. Indiferente às demais pessoas e aos demais livros, foi com o Ecdíase em direção àquele assento. Sentou-se confortavelmente. Pensou no capuccino. Colocou a obra em cima da mesa. Na capa, o título gritava: "ecdíase". Jean morreria e renasceria ali, naquele pequeno exemplar; Jean tornar-se-ia Jean, mas um outro Jean, um sem os velhos limites, e ele estaria ali, vendo o ressurgir, coexistindo no nascimento. Também ele romperia suas barreiras, também ele não sairia o mesmo depois daquele leitura, após o estourar da placenta. Jean seria também seu progenitor ali. Seu coração pulsava acelerado. Abriu-o e começou a ler.