sonetos e eutanásia, de alvarez de azevedo

 

Soneto

Pálida, a luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
- Era um anjo entre nuvens d’alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

 

Soneto

Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbedo passa a noite e dia,
Um tolo pelo valsa viveria,
Um passeia a cavalo, outro namora.

Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia...
Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam, pois, no meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d’alma escuto...
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!

 

 

Soneto

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um espanhol eu vi sorrindo,
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro...
Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!...

Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça... o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?

 

Soneto

Os quinze anos de uma alma transparente,
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, indo inocente...

Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura...
A linda mão na mágica cintura...
E uma voz que inebria docemente...

Um sorrir tão angélico, tão santo...
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto...

É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos,
A visão de minh’alma distraída!

 

 

Soneto

Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!... já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenho os olhos meus na escuridade,

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

 

 

Eutanásia

Ergue-te daí, velho! ergue essa fonte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadáver, onde o simoun do tempo ressicou os anéis louros do mancebo nas cãs alvacentas de ancião?

Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?

Escuta: a lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão, as montanhas se azulam no crepuscular da tarde e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela, quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?

Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. E por que te abismas em fantasias profundas, sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?

Por que pensá-la... a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?

Sonha!... sonha antes no passado, no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas e suas estrelas românticas.

O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...

E quem to disse - que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse - que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse - que a vida não é uma mentira? - que a morte não é o leito das trêmulas venturas?