manga com leite
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n. 10 - último sermão (?) A literatura é uma atividade sem sossego. "Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras - quais? Talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo." Este parágrafo, que retiro do livro Um sopro de vida, de Clarice Lispector, serve muito bem para fechar a primeira fase desta coluna. O escrever não pode e não deve ser visto como um simples capricho, uma brincadeira sem consequências. A literatura é coisa séria e perigosa, nas palavras de Antonio Candido: "... ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração." Outro ponto importante, também colocado por Clarice, é a necessidade profunda, visceral, de escrever, de arrancar o próprio sangue para colocar no papel uma viva parte de sua alma, em busca de uma resposta. Assim, a literatura não apenas exige uma grande responsabilidade, como, antes de tudo, exige do escritor um sacrifício vital, uma vontade maior que ele próprio, que o impele com uma força inexplicável, rumo ao mistério das coisas, da vida e do próprio ser. Esta responsabilidade da literatura e esta força criativa, inefável, que leva a construção do texto, devem ser pensadas como antecessoras dos valores colocados por Calvino e contrapostas ao que chamei de palhas e umbigos da literatura virtual. Escrever não deve ser um simples desabafo, nem mesmo a defesa de um ponto de vista particular, mas sim a busca de uma verdade possível, para o eu e para os outros. Fecho este número com mais um trecho de Clarice, e com ele as colocações morais e ideológicas sobre literatura, pois nem você, muito menos eu, quer ouvir sermões disfarçados de crítica, ou seja lá o que for que faço nesta coluna. Deste modo, pretendo, no próximo número, iniciar uma análise dos métodos de criação e composição literária, tentando contribuir com aqueles que querem percorrer este duro caminho que é o escrever. "Escrever existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê - é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim: ?" Daniel Gomes |
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