letras noturnas impressas num pêssego fresco, de Fabiano Moreira
Aquela teria sido a noite mais negra
daquela vida? Provavelmente. De modo algum isso tem uma
conotação negativa. Os piores momentos consistiam de
uma ambientação clara, de uma luminosidade doente que
gargalhava de fora para dentro... e ecoava de volta.
Quando a noite cobre os homens e também as mulheres com
aquele manto aconchegante, a ternura toma conta do transe
que se sucede, o transe ao qual chamamos sono. E quando
esse transe não é captado dessa maneira ele pode se
tornar insônia e há um tipo de insônia criativa que
afeta certas pessoas. Como se a voz doce da noite, que
não é anjo nem criança, sussurrasse as idéias, soltas
na neblina que envolve a metrópole ciclópica da mente
dos que escrevem. Não por estarem desocupados, visto que
a escrita pode se tornar o alimento e o ar, o sexo e o
cansaço de sexo, o beijo e a poltrona dos que choram,
sob a luz de um amanhecer entrecortado que só promete o
prolongamento daquelas lágrimas ou a obscuridade
abajuresca que conforta a dolorosidade. Para alguns a
noite sussurra... e a escrita, torna-se vida. O risco é
muito grande, a ameaça de frustração fatal pode virar
a última página, de uma vez, e aí a escrita torna-se
morte. Mas nada disso importa de todo. Para aqueles que
escrevem universos, vida e morte são meras palavras a
serem utilizadas, com o devido respeito que merecem as
letras, as letras que se juntam para se metamorfosearem
naquela palavra e esta palavra tornar-se significado.
Para esses, para os que entendem, a escrita é amor. A maioria das pessoas sente algo por alguém, algo que há uns milhares de anos atrás poderíamos definir como sendo instinto reprodutivo. Hoje isso se chama paixão. Para se chegar no beijo e nas declarações melosas foram necessários séculos de aperfeiçoamento na dialética dos relacionamentos. O que antes era puro instinto e prazer, hoje pode ser muito mais. O amor é inventado, os rituais do amor são inventados. O fato que todos ignoram é que a literatura desenvolveu o "apaixonar "e seu papel é tão significante quanto o papel da lua, mesmo que ignorado. Aqueles que escutam a noite sabem. Poder-se-ia perguntar aonde estamos indo, para onde estamos andando. É quase como se estivéssemos ao léu, sob esse luar frio, temperado de sereno, em busca de algo que não se sabe, numa estrada que aos poucos vai se criando, a cada passo, que se dá. Até que tudo vai ganhando forma e se tem acesso ao todo, ao panorama, num indefinível susto, sem pontos ou parágrafos, exatamente no instante em que ele apertava o papel protegido em suas mãos com suado nervosismo zen, tenso de tanto reler aquela página, temendo continuar. Ele acariciava o papel e tinha imenso medo, terrível vergonha de si mesmo. Se virasse a página confrontaria o fim da história, o fim do livro, voltaria para fora do papel. Diante das opiniões alheias que insistiriam em molda-lo e em lhe dizer que estava insano. Desprotegido lá fora, ele não queria voltar, se sentia bem dentro do livro. Todos os sentidos compenetrados... o nariz, captando o cheiro das páginas, criava uma ilusão de sabor na boca; as mãos nervosas, uma acariciando a capa de couro e a outra alisando aquela página. Os olhos fixos, andando em círculos, indo e voltando e voltando de novo, em torno das mesmas frases, aprisionado de propósito na última cena, a mais importante e dramática. A única cena. Às vezes voltava um pouco as páginas, bem devagar, se esforçando em ouvir o som delas se movendo, como o descruzar de exóticas pernas. Os sentidos concentrados. A imaginação rodeava a ambientação apresentada. Um apartamento em Singapura, num prédio alto e confortável. Todos os sentidos concentrados. Rodeava cada pensamento com as mãos delicadas da reflexão, envolvido e ao mesmo tempo relaxado, sentindo o formato distante e familiar de cada um daqueles móveis tão bem descritos, aquela tapeçaria maravilhosamente azul e prata, as paredes verde claríssimas e a noite se projetando lá fora, pregada naquela alta janela de vidro, onde os prédios se empunham bem perto. A paisagem noturna como parte da decoração. A mente é hábil o suficiente para às vezes descrever coisas extras e ele sentia grandissíssimo prazer nesse tipo de liberdade. Nada disso era tão importante, nada era mais importante naquela sala espaçosa daquela cobertura, sob a camada sonolenta daquela noite negra em puríssimo nanquim. E daquelas estrelas. Não. Somente um cenário. As estrelas, somente luzes em um palco, iluminando o centro, a chegada da dama, que vestida em sombra e amarela pele papiro, se sentava fumando numa poltrona. Os cabelos tão macios e encaracolados se misturavam com a superfície arredondada de certas letras. Os olhinhos puxados mal podiam ser vistos de perto, devido à luminescência elegantemente precária daquele apartamento. A noite mascarava seus olhos e destacava seu sorriso, quando ela bebia champagne. Mal se lembrava do que vinha antes, antes de pegar aquele livro. Tinha a vaga noção de algum acontecimento doloroso antes do sol ir embora e lhe deixar só com aquele volume. Desligara o telefone, trancara as portas... disso ele também se lembra. Dera um último beijo em seu filho, pelo telefone, após voltar do trabalho com a maleta na mão. Disso... ele ainda se lembra. O resto se perdeu atrás daquela capa de couro, brilhantemente avermelhada, num vermelho vivo e embaçado, sem ser brega, como aqueles lábios que ele via, os lábios que ele contornava com os dedos de sua mão invisível de leitor compenetrado. Yung Jun In era só sua. O único que se importava era ele... Pobre garota... em sua ingenuidade, em sua frágil segurança de mulher desejada, levada da miséria para os mais ricos ambientes, ao lado de importantes figuras do crime organizado, ela só servia de objeto de enfeite. Não davam a ela nem mesmo a mínima importância. Suas drogas, suas armas, tudo isso era mais importante para aqueles chineses metidos do que aquela almazinha pequena e pálida, vestida sob caros vestidos e inesquecível perfume, escondida sob aquele batom-capa-de-livro. O desfeche lhe parecia claro demais, sempre desconfiava do que era claro, da luz solar, mas a clareza dessa vez era quase cegante. O fato é que ela morreria na mais do que injusta página seguinte, num mais do que certo tiroteio, numa dramática guerra de gangues. Provável, é que seu sangue mancharia aquele tapete, mancharia aquele azul, formando uma nova e assustadora cor. Verdade é que a morte de Yung levaria a uma interminável tristeza, que ele não suportaria. Foi lhe dito certa vez que cada livro lido teria o poder de alterar a vida de quem os lesse. Após cada novo livro, emergiria logo um novo ser. Isso lhe parecia superstição no passado. Claro, ele reconhecia que livro e artefato mágico fossem a mesma coisa, que todo livro exerce profundas alterações na essência individual das criaturas leitoras. Alquimia borgiana, conjuração lispectoriana, necromancia augustiana (ou angeologia necromântica). Mas só agora ele se apercebia do impacto dessa lendária afirmação em seu sentido mais intenso, empiricamente. Ciente de que a literatura criara a paixão e de que a palavra "apaixonar-se" também fosse uma criação de artistas de titânica loucura, quando munidos de caneta tinteiro e papéis lisos, ele percebia agora o lado maldito de tudo aquilo. O leitor Pablo Kundera apropriara-se daquela obra. Deus onisciente e oni-impotente diante dos destinos das personagens, Pablo se dissolvia em sua leitura até deixar de ser Pablo e tornar-se letra, bem perto de sua amada. Era cruel estar apaixonado por Yung Jun, uma verdade tenebrosamente... agridoce dura concreta estreita rarefeita, como o azul/prata daquele carpete de dentro do livro. Desesperado ele estava e acabara de se esquecer de seu próprio nome. O nome do autor ele já não mais lembrava há bem mais tempo. As letras se misturavam diante de seus olhos, numa hipnótica dança, a imagem poética de uma vertiginosa mandala, feita de letras agora brancas (em papel negro). A aura dourada. Separando os dois... ele e Yung Jun, daquela realidade que havia sido substituída, após ter sido derrubada. De Pablo Kundera, só restaram os olhos entrefechados, orientais como os da sua Yung Jun, indiferentes quanto aquelas batidas na porta. Só lhe restara o perfume das páginas, o gosto das letras. Era tudo que lhe restara, porque se aqueles sentidos combinados em frases e parágrafos moldavam a personalidade de sua mulher, aquele livro, o seu delicioso corpo, e nada havia de mais sensual, de mais sincero, de mais pêssego. A porta se arrombara lá fora da leitura. Pablo tranquilamente, sem tirar os olhos do livro, com veneração impassível, virava a primeira página. Ele recomeçara a leitura. Com amor de adolescente. Uma lágrima trêmula pendendo no semi-sorriso de seu lábio inferior. Pablo tranquilamente, com o legítimo ar da descoberta, tornara-se um com Yung. Pablo tranquilamente tornara-se livro. |