do muito o mais um pouco, de marcos nunes

 

De acordo com a narrativa bíblica, depois de criar o primeiro homem, o deus único estimula sua criatura a nomear as coisas que compõe seu paraíso; morar nele não bastaria, mas sim tê-lo mais diante de si, dentro de si mesmo, e como a palavra criou o universo, por meio dele o primeiro homem teria através dela o domínio das coisas, mesmo que ilusório, de maneira humana, demasiadamente humana.

Narrativas bíblicas são sempre exemplares; procuram metaforizar para sintetizar, e assim séculos de história são tratados em um texto sintético, simples, que oferece aos próximos homens aquilo que seu deus único lhe presenteou, o poder sobre as coisas.

Acontece que o homem não se fortalece apenas nas palavras que inventa e marca os objetos, ele reflete sobre si mesmo, sobre as próprias palavras que criou, e quer saber no que consiste o que conhece das coisas, e aí a dialética desenvolve um fio sem fim de novas palavras, fórmulas e formas que as acompanham.

Observa-se que, na narrativa bíblica do gênese, ao desafiar seu deus e provar dos frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal, instigado pelo seu outro, íntimo e oposto, a mulher, o homem foi alijado de sua condição protegida, e exposto para sempre ao bem e ao mal, sem o controle da autoridade que lhe outorgava meios poderes, ou apenas o pequeno poder de nomear para criar, em si mesmo, o universo que está à volta e revoluteia sem necessidade dos nomes que lhe impomos. Talvez ciente da impotência contida na leveza das palavras, e na incongruência que representa o recriar o que lhe é externo por meio de símbolos compostos arbitrariamente, o primeiro homem violou o interdito, e passou a caminhar pelas próprias pernas, ou seja, quatro pernas, as suas e as da mulher, que ainda foi penalizada a carregar em seu ventre os próximos homens, ingressando assim no mundo natural.

A afirmação de si através da violação das normas que, através da metafísica, realizam a organização de poderes nada metafísicos, está representada em todos os livros tidos por sagrados, em todas as civilizações que criaram a escrita, e também em todas aquelas que transmitiam seus conhecimentos pela oralidade. A metafísica, já foi dito por alguém, é um defeito da imaginação, um desvio das palavras, ou uma forma de fazê-las pairar sobre as coisas mesmas, deixando-as para usufruto daqueles que as dominam de maneira menos sutil, pelo meio da força, dos exércitos organizados, dos mecanismos burocráticos de um estado que se constitui em instrumento de uma elite dominante, que os metafísicos legitimam através de seus textos mais ou menos tidos por sagrados (embora também se embrenhem por caminhos mais terrenos, como a economia, política, sociologia, etc.).

Mas a afirmação de si é também a afirmação do outro, enquanto significante aberto à espécie que totaliza essa sede de afirmação; essa insurgência é patente e existem dela muitos exemplos; deles, neste oportunidade, colhemos alguns.

Em seu livro Histórias Apócrifas, Karel Tchapék tratou de propor novas versões para velhas narrativas; são quase todas deliciosas, mas entre as melhores está um tratamento humano dado à destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Neste conto, também retirado do que chamamos no Ocidente cristianizado de Antigo Testamento, Lot recebe, em sua casa, a visita de dois anjos, que asseveram que a cidade será destruída, e instiga o dono da casa e sua família a partir, sem olhar para trás, tudo isto porque a cidade de Sodoma é dominada por homens extremamente pecaminosos, dados à luxúria desenfreada e a todo tipo de violência. Lot tenta argumentar com os anjos, dizendo que não, que em muitos aspectos os habitantes da cidade são adoráveis, que são capazes de realizar muitas coisas belas, e que mesmo seu caráter lúbrico demonstra a capacidade de amar. Não logra convencer os anjos; ao contrário, vê-se na obrigação de partir para livrar sua família da morte certa. De fato, pouco depois de partirem, ouve-se um estrondo, sucedendo-se desabamentos, explosões, gritos, um inferno. Lot hesita até não mais poder, e enfim decide dar às costas à família e partir de volta para a cidade, respondendo àqueles que lhe perguntaram porque agia daquela maneira: "Vou tentar salvar os habitantes de Sodoma".

Maior desafio faz o pássaro Vicente, no conto homônimo de Miguel Torga. Como um dos animais presos na Arca de Noé, aguardando o fim do dilúvio, Vicente resolve, por si mesmo, partir à procura de terra firme. Todos tentam demovê-lo do ato, lembrando principalmente que isso constituiria um grave desafio aos poderes celestes; mas Vicente não pensa em outra coisa senão satisfazer a sua vontade imperativa, mesmo que venha a morrer por isso. Mas Vicente não malogra, e seu desafio às forças da natureza e de seu deus recebe o reconhecimento daqueles que, medrosamente, optaram por ficar na embarcação, à espera da bonança.

O último conto não está ligado à tradição bíblica, e não representa uma contestação a seus axiomas e às suas fábulas; na verdade não é um conto, mas uma novela, ou um romance curto. Foi assim, de Natalia Ginzburg, narra, em primeira pessoa, as agruras de uma mulher que acabara de matar o marido, depois de uma infeliz vida em comum. Inventário dos pequenos horrores domésticos, da vida urbana e suas asperezas, da impossibilidade de reconhecimento do outro, da incomunicabilidade, a história percorre paisagens inóspitas, próximas ao aterrorizante. Contém, no entanto, em seu bojo, uma triste história de esperança malograda, mas de uma forma (mesmo que sinistra), afirmativa.

Incerta dos rumos de seu casamento, a protagonista parte em uma pequena viagem à costa, acompanhada da única (e doentia) filha, e de uma prima, não nomeadamente às voltas com sua própria prostituição. No balneário a saúde da menina se agrava, e ela vem a morrer vitimada pela meningite. Enquanto definha, a criança manifesta seu tênue gosto pelos sabores da vida, e a mulher se lembra obsessivamente das poucas palavras ditas pela filha, tão logo se acabavam as delícias do sorvete: "Nana mais!", ela pedia sempre. Quase um grito primal, esse "nana mais!" sintetiza o desejo humano afirmativo, que exige a satisfação e a própria vida, mesmo considerando os limites engendrados pela sua própria sede de linguagem (e poder); quer-se mais, do mesmo ou do que venha a se poder ter, mesmo diante da certeza da morte e do vácuo das realizações humanas, muitas das quais tão ilusórias quanto as palavras que as sustentam e expõe.

Preso às histórias que conta, pelas palavras que as compõe, mesmas e outras palavras empurram escritores e leitores ao desapego das normas estabelecidas; o interdito é suspenso pela incisividade do desejo de conhecer, de saber, de provar, de fruir, de gozar. Mesmo que em contínuos tropeços, temos a impressão de avanço, e mesmo que essa impressão seja ilusória, ela nos move, como move-se o planeta em torno do sol não como quis, mas como provou Galileu, à revelia daqueles que não queriam saber, porque acreditavam-se dotados do saber absoluto, por meio das palavras exatas de um deus criado à imagem e semelhança dos desejos humanos, esses desejos que, sempre ultrapassados, criam palavras e novas formas de discurso; mesmo que nem todas derivem para o conhecimento (a maior parte, na verdade, carrega imposturas), há ao menos essa impressão sempre afirmativa, condicionada ao futuro, à utopia.

Certamente outras histórias seguem o rumo exato de todas as vidas, ou seja, se encaminham à inevitabilidade da morte, e concluem pela inutilidade da experiência humana, do seu desejo de conhecimento e da sua maneira ímpar de tentar estabelecer parâmetros novos através de novas palavras ou combinações delas, sem esquecer das fórmulas matemáticas, dos compósitos de expressão química e biológica (na verdade mais determinantes para o conhecimento humano do que a literatura e outras teorias). Tudo resultaria inútil, pois diante da morte não há argumento ou ciência. Esse gênero de pensamento se curva ao sujeito, à emergência do ser-em-si-mesmo, ao individualismo que se nega ao outro, à própria espécie e a tudo mais que existe, como se o mundo girasse ao seu redor e tudo fosse uma representação criada para satisfação de sua própria existência.

O próprio livro da italiana Natalia contradiz a vida, imersa em tédios e impossibilidades várias; mesmo que o crime indique um desejo de supressão dos erros, que vão se multiplicando até que nem a violência última possa estabelecer novos possíveis começos, na verdade, em Foi assim o crime é mais um ato perdido do poço sem fundo de uma vida enclausurada; a violência é o fim que nada propicia, como a morte que ceifa a menina e seus intermitentes pedidos, "nana mais!".

Os argumentos da violência e da morte não impedem a insistência do viver, e portanto não podem condicionar a vida em todos os seus múltiplos aspectos e gêneros. São mais um subproduto cultural, do mesmo tipo que esquadrinha, qualifica e limita para melhor controlar o desejo de viver e conhecer, que nem a concretude da morte impõe a extinção permanente, inexaurível que é a vida e tudo o que dela não sabemos.