hécate, de Fabiano Moreira

 

Hécate, ou Hécata, em gr. Hecaté. Mit. Gr. Divindade lunar e marinha de tríplice forma (muitas vezes com três cabeças e três corpos). Era uma deusa órfica, parece que originária da Trácia. Enviava aos homens os terrores noturnos, os fantasmas e os espectros. Os romanos a veneravam como deusa da magia infernal.

Ana Cristina César

As cenas se refaziam, ininterruptamente, hora num cômodo, hora no outro. Hora dentro, hora fora de mim. O castelo era amplo mas parecia compacto, como um teatro ou como um cenário para um filme, tudo muito bem imaginado. Me lembro muito bem do rosto inocente da lady, já nasceu doente, o vestido simples, o olhar puritano e vacilante. A dama de amarelo a levaria até uma mesa de madeira, retangularmente iluminada por um castiçal aceso. De um lado postada, uma outra lady, de vestido cinzento, de manto nos olhos, o queixo tremeluzindo em sintonia com o tremor da vela, naquela sala sem vento. Ao longe, lá fora, os gritos. As duas ladies, postas uma ao lado da outra, separadas pela mesa. Ambas sentadas. Mãos que se esticam para tocar-se. Um pulso envolto em belos braceletes dourados, o outro todo envolto em correntes plúmbeas. A viva e a morta, o passado e o futuro. A camisola tão ontem se contrapunha ao manto tão empoeirado da velha, trazendo teias e rasgos que ainda virão. E uma terceira, a que se interpõe entre elas, servindo-as de vinho e ajeitando a vela para que pudessem melhor se ver. Essa é o presente, de perto a que mais tem gosto de entardecer. O percurso entre uma e outra. O amarelo que nem tanto se destaca, a que sempre muda, meio definida, meio ainda por definir.

Naquela mesa, em meio à madrugada, protegidas pelas paredes confortavelmente medonhas daquela fortaleza, elas se reuniam. Podia-se ver um sorriso zombador na que portava as correntes, o sorriso imaculado dos que sabem. A de branco, de face pálida e atormentada, olhava para a velha com o canto dos olhos, com medo de encará-la de forma muito direta. A que se vestia de amarelo, aparentemente a mais sensata, esta se mantinha de pé e parecia não se cansar, nem temer. A observação e a preparação para um reagir, era esse o seu trabalho. A vida estava reunida naquela noite. Algo importantíssimo ocorreria em breve. E elas sabiam.

"Porque estamos aqui hoje? É tão melhor estarmos na cama, envoltas em cobertas e em febre, sonhando com seres úmidos e quebra-cabeças desconexos..." Disse a de branco.

"Você convocou essa reunião, Senhora Acorrentada, e deve ter motivos sérios, faz tempo que não nos reunimos. A última vez foi quando da morte daquele velho druida, cuja vida se baseava unicamente em beber incessantemente doses dragonescas de tosco hidromel. Eu entendi seus motivos naquela ocasião mas se dessa vez for mera caduquice prometo ignorá-la eternamente." Disse a de amarelo.

"O sorriso em meu rosto é um sinal de que não estou brincando, Madame Indiferença. E não pense que tenho medo de suas ameaças. Você varia tanto de opiniões quanto variam de lugar os ponteiros do relógio. Escutem, escutem os gritos que vem de lá fora. Sabe que a respeito profundamente Lírio Indumentária, não brincaria com esses assuntos. Percebem o que eu digo? Não estou caducando, não estou devaneando, eles estão lá. E querem esse forte. Querem cada uma das pedras que compõem, pacientemente, as paredes desse castelo, e irão consumi-las como chamas frias, absorve-las e jogá-las ao nada, como um papiro que absorve palavras para em seguida ser jogado pela janela." Disse a de cinza.

Elas silenciaram por breves instantes, olhando para os lados de forma imprecisa, deixando de fingir o que antes fingiam não ouvir. Madame indiferença por indiferente ser e Lírio Indumentária por ter o intelecto nada respeitável de uma flor semi-murcha. A velha tocara o pulso de Madame com sua mão acorrentalhada e a fez se sentar. Finalmente admitindo-se assustada com o fato e também preocupada com sua irmã mais nova, Madame disse, interrompendo o silêncio e fazendo cessar o tremor da vela. "O que se pode fazer? Aconteceu com todos. Dionísio, Cernunos, Thor, Afrodite. Não seria diferente conosco. Já se foi o tempo em que nos divertíamos devorando jovens tolos e crianças tenras. Nem dançar sabemos mais. Eu já me esqueci a bastante tempo. Não há o que ser feito, Acorrentada. Deixe-me levar Lírio para o seu leito febril, deixarte-ei a sós, na companhia dessa trêmula e doentia vela..."

"Estou com medo. Acho que não vamos sobreviver... precisamos fugir, é, o único jeito, é, fugir. Talvez para debaixo da cama, ou então para detrás da lua. Ninguém mais acredita em nós, ninguém mais nos protege ou aceita nossa proteção. Esse é ainda um tempo de homens e breve será o tempo de máquinas sabichonas. Todos trajam belos sorrisos e discursos para disfarçar a maldade inerente. Porque tentam se esconder de sua maldade? É como um pássaro tentar fugir do seu próprio bico..." disse Lírio Indumentária.

"Calem-se vocês duas! Não temos tempo a perder. O que vamos fazer tem de ser feito essa noite. Sei que os outros já se foram, sei que precisamos fugir. Concordo com um pouquinho do que cada uma de vocês disse. E é por isso que as reuni. Sei de um lugar para onde podemos fugir. Onde seremos respeitadas e mesmo veneradas. A religião é pertencente a um passado distante como estrela. Precisamos fugir para um lugar óbvio, de fácil acesso. Onde nos vejam e nos aceitem."

"Senhora Acorrentada. Percebo que quer nos enviar para uma outra dimensão. Concordo que és uma poderosa bruxa, mas como..."

"Pela penúltima vez, cale-se e me escute que é o melhor que você faz, Lírio Indumentária. Não mais existem bruxos nessa era. Os números pesam mais do que um gigante morto. E aposto que entre um monte de números ocos e um gigante morto, os números seriam mais interessantes para esse bando de imbecis. Há um modo de fugirmos. Existe um lugar onde ainda seríamos aceitas. E para nos invocar bastaria um esforço débil, sem necessidade de fórmulas arcanas ou de um bom sacrifício. Ahh... como adoraria um bom sacrifício feito em nossa homenagem." Disse Senhora Acorrentada.

"As pessoas não mais entendem a poética dos sacrifícios, Senhora, não entendem a beleza de um cabrito morto, o perfume do sangue de um infante..." Disse Madame Indiferente.

"O cheiro do esperma, ohhh, como gosto do cheiro puríssimo do esperma, a mistura dos líquidos seminais, os gritos de gozo na coletividade de uma boa orgia. O deus cristão é tão chato quanto um lagarto indeciso, ainda que o lagarto seja mais interessante." Completou Lírio Indumentária.

"Deixemos Cristo com suas cruzes. Temos coisas mais interessantes sobre o que debater essa noite. Já escuto o som do aríete de encontro a nossa porta. E o sabor desconfortável das tochas. Dizem que Deus Pã morreu sufocado, soterrado sob dezenas de pedras ainda que com um sorrisinho no rosto. Nós não pereceremos como ele. Resistiremos até o fim, irmãs. Com ou sem sacrifícios." Disse a Senhora Acorrentada que prosseguia... "Agilizemos. Lírio Indumentária, pegue folhas pálidas e lisas como sua pele. Irmã Indiferente, corra até os fundos em busca de pena e tinta negra e aproveite para reforçar a entrada de algum modo, temos muito trabalho e pouco tempo."

Lírio Indumentária saiu correndo em busca dos papiros. Com olhar desconfiado Madame Indiferença saiu atrás de tinta e pena com um questionamento descansando em seu olhar. Quando as três jaziam novamente reunidas, já prontas para o estranho plano da Senhora Acorrentada, a dama de amarelo libertara a pergunta... "Não estou entendendo, Senhora, sei que és muito sábia, mas esperaria de você uma poção mágica que transformasse todos aqueles soldados em uma nuvem de gafanhotos ou uma maldição que condenasse 15 gerações de homens ao desespero e à pestilência. No entanto, o que espera conseguir com papiros, pena e tinta?"

Ajeitando os papéis diante de sua irmã do meio e colocando na mãozinha suave e delicada de sua irmã mais nova a pena lambuzada de tinta, a velha disse: "Se eles nos atormentam, seremos seu pesadelo. Se acham que já estamos mortas seremos mais espertas e seremos vivas, vivas por sua própria invenção de mortais, Deusas pela imortalização em suas imaginações. Jamais seremos esquecidas, minhas queridas, meus amores. O temor será para sempre a nossa marca, para sempre... Agora vamos, escrevam o que vou ditar, escrevam antes que eles destruam nosso castelo. Temos muito no que trabalhar, muitos a quem inspirar."

Com uma lágrima no rosto a irmã mais jovem e inexperiente do trio percebera que suas vidas estavam no fim, que aquela seria a última noite. Mesclava de lágrimas a tinta, que ia sendo rabiscada nervosamente no papel a medida que a Senhora Acorrentada ia ditando as palavras. Já Madame indiferente, que também tinha entendido que aqueles eram seus últimos momentos, não chorava. Esboçava no rosto um sombrio sorriso de vitória. Ela entendera agora o plano da irmã mais velha e sabia, excitada de vingança, que mesmo extintas estariam ainda assim vivas, para sempre vivas, no imaginário coletivo. Preocupada mais em ditar o que devia ser escrito do que em sentir pena de si mesma, a terceira irmã, a que estava envolta em correntes e que tinha um queixo que lembrava uma pêra, se rejubilava, de esperança resignada, com o fato de que seriam sempre invocadas, a cada vez que se abrisse um daqueles livros e suas palavras fossem lidas. Porque enquanto um daqueles livros estivessem sendo lidos, seja onde ou quando for, elas estariam sendo lembradas. Essa lembrança as manteria vivas.

E elas escreveram, tanto quanto puderam. Elas escreveram desesperadamente, apaixonadamente, escreveram até que as folhas de papel se empilhassem desordenadamente pelo chão e pelas paredes, até que a vela se extinguisse e o aposento se enchesse de trevas. E muitos sonharam aquelas idéias, alguns grandes sonhadores, alguns menores, alguns que fossem apenas sonhadorezinhos e mais nada. E dentre esses, alguns eram também escritores tanto quanto sonhadores ao ponto de quase serem Deuses. E foi um desses, um tal Willian Shakespeare, quem melhor escutou aqueles sussurros na brumosa escuridão, aquelas batidas na porta, aquela lágrima, aquele sorriso, aquele alento. Naquele mesmo ano, escrevera a peça de teatro a qual daria o nome de Macbeth.

Um calafrio na espinha atinge ainda hoje os homens, sejam crianças, jovens ou adultos. Um desconforto sentido sempre que se apaga a luz, teto baixo de porão, que é quando se escuta o velho tremeluzir morto de uma vela que já se apagou, e as vezes, se ouve também as tenebrosas gargalhadas que ecoam no abismo de nossos inconscientes, gargalhadas exultantes, as gargalhadas de Hécate.